Na última sessão do projeto Conta-me histórias, realizada no Casal da Fraga, o Marinheiro e o Chico Insa falaram da descamisa, nas Quintas, onde houveram nascimento e criação. E a Teresa Marcelino cantou as cantigas que nela se cantavam. Depois a Libânia escreveu este texto, com as histórias que contaram e outras informações que recolheu.
Gosto
de broa. Tanto que, em tempos, quase achava estranho o desabafo de quem, como os
nossos pais e muitas gerações de avós, não teve outro pão em criança: «Quero cá
agora broa! Enchi a barriga dela em novo, que era o pão que havia: broa e
centeio; trigo, só nas Festas.» Quase achava estranho porque me lembrava dela
ainda a fumegar, aberta pelas mãos da minha avó, logo à saída do forno, regada com
um fio de azeite. E era um regalo, nos dias em que passava a Ti Palmira, o
Maiaca ou o Pinura, uma fatia de broa com uma sardinha assada a pingar por cima,
comida nas escadas da Casa do Casal, entrada de tanta gente…
Não
vão longe os tempos em que, fins de abril, princípios de maio, todos os
lameiros à roda da Ribeira estavam prontos para a sementeira do milho. Era
trabalho para toda a família e, se fosse preciso, podia sempre contar-se com a
mão de algum vizinho. Depois da semente na terra, estando a Lua de feição, passado
pouco tempo era um mar de verde por aí acima.
Durante
meses não havia descanso a arrelentar, sachar, mondar e regar. Em alturas de
seca havia quem tivesse que regar a meio da noite, alumiado pela Lua ou à luz da
lanterna (em tempos idos, o avistamento destas luzes alimentou o imaginário
popular, que acreditava tratar-se de almas penadas a vaguear pelo mundo). Lá
para finais de setembro o milho estava pronto a ser colhido. Nos anos bons,
cada grão deitado à terra dava umas três maçarocas. Não haveria fome na mesa
nem na manjedoura.
Naquele
tempo, entre o Rabaçal, o Vale Caria, a Senhora da Orada, o Ribeiro Dom Bento e
as Quintas viviam para cima de dez famílias, algumas com muitos filhos. Quase
toda a gente tinha terras suas, e quem não tinha arrendava-as ou tratava-as ao
terço, como a Ti Maria Etelvina ou o Ti Luís Teodoro, que eram terceiros do
António Neto.
Era
uma vida difícil e de muito trabalho. As crianças vinham a pé para a escola, às
vezes descalças e mal agasalhadas. Há quem ainda não se tenha esquecido dum par
de reguadas em cada mão só porque, para fugir dum aguaceiro, se demorou num
curral à espera que estiasse. Há também quem ainda sinta o gelo a estalar na
sola dos pés, memórias de quando vinha por aquele caminho abaixo, nas manhãs
frias de inverno.
Os
mais velhos trabalhavam de sol a sol durante quase todo o ano. Domingos, só
para a missa; quando muito, um copo com algum amigo, que o ganal não esperava.
Só se perdia algum dia para ir ao mercado ou à feira do Fundão, onde se aviava
o que era preciso e vendia o que se pudesse, quase sempre alguma cabeça de gado.
Com tanto trabalho, não havia tempo para grandes folguedos, mas qualquer
oportunidade que aparecesse servia para tirar a barriga de misérias. Era assim
no tempo das descamisas.
«Antigamente
as pessoas eram mais dadas e ajudavam-se umas às outras naquilo que podiam. Na
altura de colher o milho, era só dizer:
- Ó Ti Matias (é só um exemplo), amanhã vamos
colher o milho, apareçam para a descamisa.
No
fim da ceia as pessoas iam chegando, as que tinham sido convidadas e outras só
por terem ouvido dizer. Naquele tempo havia poucas ocasiões para divertimentos,
e as descamisas, por serem à noite, eram oportunidades que ninguém queria
perder, principalmente os rapaz e as raparigas. Quando se sabia duma,
passava-se logo a palavra.
À
medida que chegavam, sentavam-se numa roda à volta do monte de milho colhido
durante o dia. Não havia lugares marcados, mas toda a gente fazia por se sentar
ao pé de alguém por quem tinha alguma preferência, às vezes amores secretos.
Arranjaram-se muitos namoros assim.
Os serões
eram sempre animados a contar piadas e anedotas que punham toda a gente a rir;
e quando alguém começava a cantar:
Ó
malmequer mentiroso,
Quem
te ensinou a mentir?
Toda a gente ia atrás:
Tu
dizes que me quer bem,
Quem
de mim anda a fugir.
Desfolhei
o malmequer
Num
lindo jardim de Santarém,
Malmequer,
bem me quer,
Muito
longe está quem me quer bem.
Malmequer
não é constante,
Malmequer
muito varia,
Vinte
folhas dizem morte,
Treze
dizem alegria.
E
atrás desta vinham outras: “Milho verde”, “No cimo daquela serra”, “Água leva o
regadinho”… Mas as mãos não paravam, entre a pressa de acabar o trabalho para
começar a festa, e a cata de uma maçaroca vermelha.
Quando
se ouvia gritar:
- Milho-rei!
Milho-rei!
Calava-se
tudo a ver quem tinha sido o felizardo ou a felizarda. Quem quer que fosse,
levantava-se e corria a roda a dar um abraço a toda a gente. Para os mais novos
era uma libertação, que podiam abraçar-se às claras, sem a censura própria
daqueles tempos. Desconfiava-se mesmo que alguns rapazes já levavam de casa uma
maçaroca vermelha, só para poderem abraçar as raparigas.
No
fim do trabalho, os donos ofereciam qualquer coisa para comer e beber, quase sempre
pão com queijo, passas, maçãs… e aguardente para os homens ou jeropiga para as
mulheres A seguir fazia-se um bailarico ao toque de realejo. Naquele tempo havia
muitos rapazes que sabiam tocar bem, mas o Joaquim Feijão, o João Borrego e o
Manel Primo, que vinha do Casal da Serra de propósito, eram dos melhores e estavam
lá sempre caídos.
O
meu pai é que, mal começava o baile, punha-se logo:
- Ó
meninos, dois palmos, dois palmos!
E
levantava as mãos espalmadas, unidas pelos polegares. Até parecia que se pegava
algum mal, quando o que a gente queria era divertir-se.
E
por aqueles dias havíamos de ter outros serões iguais, quer fosse na descamisa do
António Remualdo, do Francisco Insa, do João Serra, do António Passaraço, ou
doutro vizinho qualquer.»
ML
Ferreira