Há muitos anos, havia ali para a
charneca um carvoeiro muito pobre, coxo e que ainda p’ra mais gostava da pinga.
Logo de manhã, o mata-bicho era uma malga de sopas de cavalo cansado. O vinho,
o mais das vezes, já meio azedo; o pão, só broa ou centeio, quase sempre duro
que nem pedras. Mesmo assim, até dava gosto vê-lo a comer as sopas de pão
mergulhadas no vinho e, no fim, a escorropichar a malga até ao último pingo.
De barriga aconchegada e alma
aquecida, abalava de casa muito antes do nascer do Sol. Com a jaqueta e o
boucheiro às costas e o podão pendurado à cintura, lá ia ele, umas vezes até às
Rebardeiras (Ribeiro de Eiras), outras pela serra do Ingarnal (Engarnal) acima.
Era para esses lados que havia a melhor esteva e torga da taluda para fazer
carvão de primeira. Depois andava a oferecê-lo a ferreiros ou ferradores que
lho pagavam mal e a más horas. Às vezes, nem dava para o sabão. Devia ser por
isso que andava sempre tão enfuscado que mais parecia que tinha vindo da
África. Até os ganapos, mais por medo que por maldade, faziam pouco dele.
Quando o viam passar, de saca às costas, seguiam-no à distância e,
arremedando-lhe o mancar, provocavam:
O preto da Guiné
Lava a cara com café,
Envergonha-se de ir à
missa
Com sapatos de cortiça.
Ele, de tão cansado, fazia que não
ouvia e continuava o caminho, curvado debaixo da saca; mas às vezes, só para os
assustar, parava, voltava-se para trás e, com grande esforço, levantava a
cabeça onde só os olhos revirados lhe luziam. Era vê-los a correr e a
esconderem-se nas portas ou nas esquinas mais próximas! Mas não tinham emenda,
os demónios: mal ele se virava, continuavam a provocação.
Uma manhã, ou por o vinho ser mais
forte ou porque lhe tivesse caído na fraqueza, viu-se perdido para subir o
carreiro, encosta acima. Dava dois passos para a frente, vinha um para trás;
queria ir a direito, cambaleava para a banda. Não havia meio de sair do mesmo
sítio. Pasmado e sem descortinar a razão de tal fenómeno, sentou-se no meio da
vereda e, com a cabeça entre as mãos, pôs-se a dizer para os seus botões: «O
vento na serra não zurra; eu caio, mas ninguém me empurra. Ainda hoje não bebi
vinho, senão passado pelo pão… Sopas de vinho também embebedarão?!».
Nesse dia já o sol ia alto quando
chegou ao destino, todo derreado das costas e a mancar ainda mais…
Torga de flor rosada, abundante no norte e centro do país.
As raízes eram utilizadas para fazer o carvão usado nos fogões de cozinha, nos
ferros de passar e nas forjas. O carvão das estevas era mais utilizado para as
braseiras.
O boucheiro era a ferramenta utilizada pelos carvoeiros para
arrancar as plantas com que faziam o carvão.
M. L. Ferreira