domingo, 2 de março de 2014

Espigos com morcela

Ano a ano, recordo invariavelmente esses tempos. É quando a primavera se anuncia e as couves dão em espigar. Algumas guardaram-se para semente e nessas não se toca. Às outras, mesmo as já comidas, mas cortadas alto, para deixar alguns olhos que possam desabrochar em rebentos, colhem-se os espigos na urgência de não enrijarem. E como qualquer família plantara, em agosto, um couval suficiente para a consoada e para comer em janeiro e fevereiro, havia espigos com fartura.
Nos finais dos anos 70, eu andava a estudar em Castelo Branco e voltava diariamente a casa cerca das 20 horas. Levara uma merenda de pão caseiro com marmelada, para comer na viagem de regresso, mas repartia-a com alguns famintos como eu, sobretudo um miúdo do Sobral que corria para mim, logo que eu desembrulhava o pão.
Neste tempo de mudança, de seivas congeladas para o desabrochar de gomos e flores, esperava-me, por vezes dias seguidos, uma pratada de espigos cozidos com batatas, um ovo cozido e uma boa talhada de morcela. Vocês já alguma vez comeram um naco de morcela grossa de cozer, daquelas típicas da nossa terra? Meu Deus, o nosso povo sabe fazer coisas tão boas!
Isto é, sabia. Os filhos partiram para outras vidas, a maioria cedo demais, antes do tempo apropriado de transmissão de alguns saberes, como os que se aprendem nas matações de cada um, já com os filhos a exigirem atenções. Vinham as mulheres mais velhas e ensinavam as mais novas, todas atarefadas no meio de panelas e tachos, mais alguidares e bacias cheias de carnes migadas e por migar.
De certeza que ainda há quem faça morcela de cozer daquelas, mas já são raras de encontrar. O talho do Manga fê-las boas, há poucos anos, mas não sei se ainda as tem. Basicamente, a diferença está na carne. No circuito comercial, migam gordura e misturam com o resto. Mas, nas nossas, a gordura estava misturada com carnes ensanguentadas de várias partes do porco e eram essas que davam um toque especial à mistura.
Perderam-se estas coisas boas, ganharam-se outras, não sou fatalista. Mas recordo com saudade esses tempos, já não da fome, como o meu pai chamava aos anos 60, mas ainda de muitas carências, em que um prato de espigos e um bom pedaço de morcela de cozer fazia as delícias de um homem.
Grelos? As batatas é que grelam!

Receita das morcelas de cozer, já aqui publicada em "Culinária da matação", de 20 de fevereiro de 2010:
Morcelas de cozer
Ingredientes: vinho, cominhos, alho, sumo de laranja, sal, sangue, carnes ensanguentadas, rins, bofe e pâncreas e a tripa mais miúda do intestino grosso do porco.
Migam-se as carnes, temperam-se com os restantes ingredientes, picando previamente o alho e a salsa, e mete-se a massa na tripa mais miúda das tripas grossas. Depois de atadas, cozem-se em lume brando, para não rebentarem, e penduram-se na latada do fumeiro.



 Couve espigada

José Teodoro Prata

Em jeito de comentário:
Grelos (ou espigos) são bons com morcela de cozer, mas, para mim, são ainda melhores com a morcela de assar, principalmente quando ainda está fresquinha.
A receita é parecida: fazem-se também com as carnes ensanguentadas e moles, migadas um pouco mais miúdas; não levam sumo de laranja (não me lembro de ter visto pôr) e são enchidas nas tripas mais finas do intestino delgado. Andei ontem de matação e ajudei a fazê-las… Mas acho que só com muitos anos de prática, como era o caso das nossas mães e avós que nesta altura andavam de casa em casa dos familiares mais próximos a ajudar, é que se fica com olho e mão para estas coisas.

As morcelas do Rui Manga ainda são feitas à moda antiga e são bem boas!

Morcela de assar

M. F. Ferreira

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