terça-feira, 18 de março de 2014

O nosso falar: esburgar

No intervalo entre leituras, às vezes para desenfastiar, volto ao Redol, ao Aquilino ou ao Torga. E ando assim uma semanita, abro ao calha e leio umas páginas.
Desta vez peguei nas Terras do Demo, do Aquilino Ribeiro, e apareceu-me a palavra esburgar, saída do fundo dos tempos, pela boca de uma mulher de língua afiada, uma bruxa daquelas muito más que lançam maldições e depois o pobre de deus tem de se haver com elas.
No caso particular, amaldiçoava alguém que até havia de esburgar os ossos dos seus antepassados. Um horror!
E, como os pensamentos são como as cerejas, lembrei-me de quando a minha mãe me mandava ao tio Albano Jerónimo, a pedir uns ossos. Era num dia de matança de cabritos no açougue, uma loja do outro lado da rua, mesmo em frente à porta da sua casa. E os meus primos da Tapada iam comigo.
Descíamos a quelha, depois o Cimo de Vila, e ainda o Fundo de Vila, até chegar quase à paragem da camionete da carreira. A casa do tio Albano era a penúltima, à esquerda, antes da estrada. Chegados lá, fazia o pedido e ele punha cara séria e mandava-nos esperar.
Havia muita gente na rua, em frente ao açougue. Uns de passagem, outros à espera e alguns de um lado para o outro, atarefados. Víamos os cabritos a serem mortos, esfolados até à ponta das patas e depois abertos. As carnes passavam depois para a loja da casa. E ouvíamos as sentenças de quem não tinha nada para fazer.
Muitas horas depois, às vezes mesmo já rente à noite e com dores nas pernas de tanto esperar, o tio Albano chamava-nos e entregava-me um embrulho de jornal a mim e outro aos meus primos. Lá dentro, 4 ou 5 ossos das patas dos cabritos, da parte abaixo dos joelhos.
Voltávamos a casa aliviados pela missão cumprida e a minha mãe fazia uma sopa com os ossos e massa. Comíamos aquele caldo aguado, com um osso no fundo. E acreditem ou não, ainda conseguíamos esburgar dele qualquer coisita, umas peles brancas que revestiam o osso e as cartilagens nas pontas.
Tempo dum filho da p…, como diria o meu pai!

José Teodoro Prata

6 comentários:

Anônimo disse...

Este texto com uma descrição tão rica, deixou-me triste, por imaginar esses tempos tão difíceis em que as mães para matar a fome aos filhos, tinham que se socorrer de todos os meios, às vezes sem grandes resultados.

Como eu te admiro mãe e todas as outras mães que criaram tantos filhos naquela época.
Também aos pais que fizeram a sua parte merecem ser homenageados.
Hoje principalmente que os recordemos de uma modo especial neste dia.
Obrigada, pai.
Tina Teodoro

Anônimo disse...

Não sei se o significado é exatamente o mesmo, mas acho que nós por cá dizemos esprugar (esprugar batatas). É esta nossa “mania” de trocar, acrescentar ou cortar letras às palavras…
Também me lembro do açougue do Ti Albano, ao fundo da rua Nicolau Veloso, onde íamos, de ralo em ralo, comprar a carne para comer nos domingos especiais.
Quanto ao tempo dum filho da p…, (quase dá vontade de escrever a palavra com as quatro letras a negrito), um velhote contava-me há dias parte dos trabalhos por que passou ao longo da vida. Foi uma vida tão dura que, no fim, não resisti a perguntar:
- Porque é que, com tantas dificuldades que passaram, ainda há quem diga que antigamente é que era bom?
A resposta foi pronta:
- Quem diz essas coisas, não tem memória!
Para além de todos os outros méritos, estes relatos são também importantes por avivarem a memória dos mais esquecidos…

M. L. Ferreira

medronheira disse...

O que os tempos eram rapazes... Agora anda tudo com o cú cheio, como se diz na vila, para descrever a fartura. Carne a 2€. Onde é que já se viu?
Nesses tempos antigos, vivia eu na serra e no Inverno armava os cústis para apanhar melros e tordos. Um dia, vou dar a volta, só um mocho, que trago para mostrar ao meu pai. Quando me aproximo, ele: então? Eu: hoje nada. Mas trazes aí qualquer coisa.É um mocho, digo. Ele, se o depenares e o assares com umas pedras de sal ainda bebemos um copito. Bem, foi a coisa mais horrivel que já comi, e para tirar o gosto... mais um copito e outro ainda...iamos apanhando uma recheca.
De maneiras que era assim.
Abraço ao pessoal da Praça
F. Barroso

Margarida Gramunha disse...

Eu que não vivi nesses tempos tão duros admito não lhes saber medir a dor.
Adoro ouvir estes relatos e sinto neles, mais do que as agruras, a próximidade entre os elementos das familias e o tempo que tinham para estar uns com os outros, para transmitir conhecimentos e educar, até mesmo para sofrer juntos.
Eu que só vivi nos tempos modernos tenho muitas duvidas sobre esta modernidade. Há dias puz-me a fazer contas e conclui que disponho apenas de cerca de 30 horas semanais para educar e fazer dos meus filhos homens de bem ... E é inevitavel perguntar-me se serei capaz.

José Teodoro Prata disse...

Estive em São Vicente, falei com a minha mãe e a minha irmã Celeste e, afinal, não era bem assim.
As patas dos cabritos, ainda tenros, cozinhavam-se com a pele, depois de estonada.
Mas, de facto, eu lembro-me de trazer as patas esfoladas, talvez uma vez, de cabritos maiores.

Anônimo disse...

Para meter polemica aqui nesta coisa, ou apenas para dizer que li.
O escriba acaba sendo um 'pintor'; também já se deu com uma pessoa que eu conheço bem. O que não deslustra, não põe mancha em quem escreve, nem lhe tira um cabelo. Patas pra diante!
Da outra ex-futura reverência, mais acima (FB), apanhar um mocho? Nunca se viu tal; bem feita que lhe soube mal. Aqui a minha namorada também apanhou um - sim, um mocho - mas à mão; estava à beira da estrada a ver se nos via passar. Levámo-lo à Guardia Civil de Medina Sidónia; ficou lá preso. Numa leitura genealógica o caso, diria tratar-se de um familiar afastado do desafortunado que coube ao Chico.
Fica a amizade, pronto. Vai abraço.
jmt