sexta-feira, 14 de março de 2014

VIÚVA BEIRÃ

Carrega de negro o corpo, curvado,   
Afunda-se no luto até à alma.
Escureceram-lhe os anos a tez lisa e clara,  
O tremor quebrou-lhe o semblante, já prostrado,
E o traço irrepreensível da face rara,
Outrora rectilínea e alva.

O tempo deformou-lhe, a fina silhueta,
O sublime rosto,
E o angélico perfil.
O lenço descai-lhe agora p’rá fronte, mortalha preta,
E realça as marcas do desgosto,
Como o jugo alquebrou o escravo, servil,
Vergado ao peso da grilheta.      

Antes, forte e vigorosa, hoje dolorida,
Quanto sofredora é a mulher do povo.
Enviuvou há muito,
Atirou-se, dia a dia, ao trabalho duro da vida,
Enquanto pôde, a labutar,
Que o homem morreu ‘inda era novo.

Da alvorada ao anoitecer a moirejar,
Para criar os filhos pequenos. Teve sete!
O sol tisnou-lhe a pele,
Amigo inconsequente, ronceiro,
Sulcando-a como um canivete,
Qual canelado feito por goiva,
Em peça de marceneiro.   

Quando casou, deu uma formosa noiva,
Das mais belas, que há muito não se via,
Como pintura de Rubens.
Flor de laranjeira, na mão,
Perfeita, naquele dia,
No vestido diáfano, branca como as alvas nuvens,
Caminha p’rá igreja, sem tocar no chão.

Não tem desejos, mil,
Como antes, já nem sabe o que isso é!
O corpo envelheceu e acabrunhou-se,
Como uma rodilha de um antigo pano de linho.
Já só espera a tumba negra e vil.
Morrer e acabou-se!
É esse apenas o único caminho?

Acalenta um sinal de esperança,
Nesse ente insondável mais fundo -
A alma - esse impulsivo incorruptível.
Quando o corpo deixa o mundo,
Se a vida, a ele, não se reduz,
- Sua fé firme, irredutível! - 
A matéria corrompe-se, não essa luz.

João Gabriel Saraiva  

3 comentários:

Anônimo disse...

Belo poema que, publicado logo a seguir à notícia do jantar da comemoração do Dia da Mulher (não deve ter sido por acaso), nos remete, inevitavelmente, para a situação de dependência da mulher relativamente ao homem, num tempo ainda recente. Caso enviuvasse, a mulher carregava o luto até à sepultura e toda a sua vida social terminava também no dia da morte do marido.
Estou a lembrar-me da chamada de atenção do José Teodoro, a propósito da lista de óbitos por volta de 1800, para o facto de as mulheres, caso fossem casadas, serem identificadas como mulher de…; dos homens, dizia-se apenas que eram casados com…
A propósito disto, a Tia Eulália contava-me há tempos que uma mulher aqui do Casal lhe disse uma coisa que ela nunca esqueceu: «Sabes, Ilália, (era assim que ela a chamava), uma mulher casada é outra coisa! Quando alguém fala dela, toda a gente diz que é a mulher de fulano assim assim, e guardam-lhe respeito; mas, se é solteira, dizem logo que se não se casou é porque algum mal lhe acharam…».
Apesar da situação ser ainda preocupante, como sugerem relatórios e estudos recentes, parece que vai ficando para trás o tempo em que o ditado «Mãe, o que é casar? Casar, filha, é fiar, parir e chorar…» era uma triste realidade.
Parabéns ao autor do poema. Gostei muito!

M. L. Ferreira

Anônimo disse...

Um País de poetas diz-se, e é verdade, não sei se todos Vicentinos: Ele é o A. dos Santos, ele é o João Gabriel. O estilo é parecido. Poesia erudita e muito bela. Vejam a estrofe sobre o dia do casamento: Um encanto. Acho que devia colaborar mais este João Gabriel. Parabéns. Vale a Pena vir à praça. Ele é poemas, ele é morcelas, ele é crónicas. Um espetáculo...
F. Barroso

Margarida Gramunha disse...

Amei