quinta-feira, 24 de abril de 2014

ABRIL - O recruta

Não sendo eu um participante ativo na Revolução de Abril, pois como disse entrei para a tropa no dia 24 de Abril de 1974, aí vão umas coisinhas que me aconteceram nesses primeiros dias. É pouco, mas é de boa vontade:

Cheguei ao quartel do Regimento de Infantaria nº 7, em Leiria, no dia 24.
Se já viste um boi a olhar para um palácio assim era eu. Era eu e mais quinhentos que não faziam a mínima ideia do que estava para acontecer na noite seguinte.  Nesse dia recebemos o fardamento, a roupa de cama, o armário e a cama.
No dia 25 de Abril de manhã, estranhámos que não nos viessem despertar, pois já não era cedo. Um colega que tinha um rádio minúsculo (para ouvir a bola), disse-nos que estava a haver uma revolução. Na altura, achei que aquilo não era nada comigo. Soube mais tarde que durante toda a noite e parte desse dia tínhamos sido o alvo dos canhões do Regimento de Artilharia n.º 4 sediado no castelo do outro lado da cidade de Leiria e cuja guarnição era a favor do Marcelo Caetano!
"Nós" éramos contra!!!
Tivemos sorte, porque as bocas de fogo nunca chegaram a disparar, senão este vosso herói talvez não estivesse aqui para contar.

Durante esse dia 25 não saímos do quartel (talvez tivessem medo que nós matássemos alguém errado) e assim foi até ao dia 30. Víamos movimentações de tropas, víamos as notícias da T.V. e era só.

No dia 30 de Abril fui para Lisboa!! Fiquei em casa do meu Tio Joaquim Caio, o Assobiador do Chico  Barroso. No dia 1 de Maio, saímos os dois para a rua a ver as manifestações. Lisboa estava em festa. Nunca vou esquecer.
Nesse dia também vi uma coisa estranha:  Gente do Povo revoltada  a perseguir e prender certas pessoas.
Disse-me o meu Tio que essas pessoas eram pides.

E.H.

Um dia, o Ernesto, vindo lá da revolução, ensinou-me a mim e a outros uma canção do Zeca que não conhecíamos.


  José Teodoro Prata

quarta-feira, 23 de abril de 2014

ABRIL sem prisões

Rebentem-se as correntes
Cortem-se os grilhões
Cortem-se ao agrilhetado
Liberte-se o amarrado
Abram-se as prisões
Nunca te deixes amarrar
Luta pela liberdade
Não calquem tua vontade
Nunca te deixes agrilhetar
O mundo do capital
Traz miséria. traz fome
Tanta gente que não come
Mesmo que morram não faz mal
Fora com a servidão
Fora com o capitalismo selvagem
Fora com esta sacanagem
Rebentemos o grilhão
Querem novamente a criadagem
Estes senhores sem coração
Tratam o povo abaixo de cão
Rebente-se com o agrilhoamento
A liberdade é uma condição
Não a podemos perder
Então que devemos fazer...
Guardá-la com amor e paixão
Somos livres, gritemos
Tu e eu somos irmãos
Povos da terra demos as mãos
É isto que nós queremos
Para a lixeira a sujeição
A liberdade seja respeitada
Que nunca nos seja tirada
Rebente-se com o grilhão
A minha liberdade deve terminar
Quando piso o meu semelhante
Passo a ser um praticante 
Que só penso em dominar
Não nos deixemos amarrar
Pela fome, dominação e pela guerra
Haja paz em toda a terra
Alegria, saúde e pão em todo o lar

                  Zé da Villa



Este poema foi escrito por José Afonso, em 1973, na prisão de Caxias.

José Teodoro Prata

terça-feira, 22 de abril de 2014

ABRIL, Sempre

Primavera de Abril

Manhã radiosa
Manhã florida, maravilhosa
Manhã esperançosa
Manhã libertadora
Manhã criadora
Manhã salvadora
Manhã sem grilhetas
Manhã de festa...
Manhã sem tretas 
Manhã como tantas outras de Abril
De repente...Aqui comando da revolução
Sai a tropa para o regime derrubar
A caminho da capital, mais de mil
Soldados equipados com armas na mão
Há muito que tinha morrido Salazar
Governava Marcelo, mais liberal e menos vil
O povo com alegria chorava
O povo com alegria cantava
O povo com alegria se abraçava
O povo unido dançava
O povo unido mandava
O povo unido rezava
O povo saiu à rua, somos livres

Todo Portugal gritava; liberdade, liberdade
Em uníssono...nunca pode ser vencido
Quarenta e sete anos de fascismo e ditadura
Chegou ao fim a opressão à aldeia, vila ou cidade
Alegria, queremos o fim das guerras, o povo unido
E os militares com alegria, coragem e lisura
Derrubaram o governo, grande alegria e amizade
Começou a haver mais igualdade
Caiu a tirania a ditadura, entrou a democracia
Terminavam e caiam as grilhetas da opressão
Criava-se o associativismo e a fraternidade
Nascia uma nova esperança, um novo dia
Grândola vila morena foi a senha, a canção
E o povo gritava; liberdade, amizade
Foi um dia importante para Portugal
Graças ao capitão patriota e libertador
Maia era o seu nome, militar bom e honrado
Depois de morto transformaram-te em herói nacional
Homem corajoso, libertou-nos do tirano do opressor
Destemido, que saudades do bom soldado
Dialogante, nunca quis sangue, nem fazer mal
Otelo, Spínola, Vasco, Soares ou Cunhal
Azevedo, Gomes e tantos outros libertadores
Soldados e capitães, homens valentes e corajosos
Em democracia começaram a governar Portugal
Livrando-nos dos antigos ditadores e opressores
Gente de fibra, patriotas, democratas valorosos
Abril sempre...aqui ou em qualquer outro local
                 Zé da Villa

José Teodoro Prata

segunda-feira, 21 de abril de 2014

ABRIL - Guerra Colonial


José Teodoro Prata


COMBATENTES

Combatentes do Ultramar,
Como é repugnante
Vós sois maltratados e
Esquecidos por toda a gente.

Vós que deixastes vossas famílias,
Para interesses defender,
Cumpristes vossas promessas,
Pensando que era vosso dever.

Para defender a nossa Pátria,
E que te fez ela afinal?
Alguém se esquece,
Do que é defender Portugal.

Como foi tão triste,
Quando o navio navegou.
Quantas foram as tristezas,
Que o pobre soldado marcou.

Olhávamos com tristeza
E com olhos a chorar:
Será que eu volto,
Para a minha família abraçar?

Só quem por isto passou,
É que pode avaliar.
Quanta era a tristeza,
Quando fomos para o Ultramar.

Tantos foram os colegas,
Que nós vimos a tombar.
Quantas foram as lágrimas,
Que nos fizeram derramar.

Nós não íamos com intenção,
De outros ir matar.
Mas para nós não morrermos,
Infelizmente tínhamos de os matar.

Para que serviu tudo isto?
Nunca cheguei a compreender.
Talvez com esta guerra,
Bolsos se viessem a encher.

Para terminar esta desabafo,
Uma coisa quero dizer:
Deram uma migalha ao combatente,
Mas que não veio a prevalecer.

Qual foi o meu espanto,
Quando vim a verificar,
Que já não eram 150 euros,
Que ao combatente estavam a dar.

Reduziram 50 euros,
Com desculpa tão mordaz.
Não dá para compreender.
Senhores políticos, isto não se faz.

Esta importância simbólica,
É apenas anual.
Os políticos actuais,
Esquecem quem luta por Portugal.
  
José Bernardino

   
Nota: José Afonso trabalhou em Moçambique, como professor.

José Teodoro Prata

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Boas Festas

Em meados dos anos oitenta do século passado a nossa Vila andava num borborinho.
Tudo tinha a ver com o contencioso entre o nosso Padre Branco e uma parte significativa  do povo de São Vicente, assunto de que já falei anteriormente. Quero esclarecer que nada me move contra o Digníssimo Senhor. Continuo a achar que o respeito é uma coisa muito linda.

Naquele tempo chegou-se ao ponto de dizer:
“O que falta em São Vicente
É mesmo um Padre novo
Um que em vez de engenharias
Ensine a doutrina ao Povo”

Numa atitude de reparo à maneira como o nosso Padre conduzia os atos religiosos, a nosso ver, muito mal, saiu no “ O Vicentino “ nº 11  de Maio/Junho de 1986 o seguinte “IN ILLO TEMPORE”:

«A paróquia de S. Vicente da Beira anda agitadíssima. 
Estamos na Semana Santa e todos os paroquianos se preparam para assistir e participar no maior fenómeno religioso do ano. É sempre assim em S. Vicente da Beira.
Já passou o Domingo de Ramos. Foi um dia de muita alegria. A Igreja estava apinhada de fiéis com os seus ramos de oliveira e loureiro, mais parecendo uma floresta cerrada onde era difícil romper.
Estamos em Quinta-Feira Santa. Já se realizou a cerimónia do Lava-Pés. A Igreja estava à cunha e os Doze Apóstolos muito compenetrados no seu piedoso papel.
Todos se retiraram para comer qualquer coisa e regressar para a procissão do “ECCE HOMO”.
Quem passar pela Praça neste intervalo de tempo notará a grande quantidade de pessoas que, vindo de longe, das anexas e outras terras em redor,  ali se encontram para participar nas cerimónias. Gente de muita fé.
A procissão começou. Longas filas de gente silenciosa peregrinam pelas ruas em adoração ao Senhor sofredor.
De vez em quando uma matrácula, uma ladainha, uma marcha triste; além disso só o silêncio, a oração.
Todos se preparam para o grande dia: A Sexta-Feira Santa. Já se trocam ideias de como melhor decorar o seu Paço, onde estão as flores mais bonitas, onde está o confessor que livre os atrasados das suas culpas.
Sexta-Feira Santa será um dia triste mas também o dia em que São Vicente mostrará mais uma vez ao mundo como o seu povo é profundamente religioso. Os capuzes negros, as bandeiras deitadas, as longas procissões o grande respeito, a oração; São Vicente é um povo de grande religiosidade.
No próximo Domingo será Domingo de Páscoa. Haverá missa na Igreja às 10 horas e depois a procissão com o Sírio Pascal. A seguir o almoço: um almoço para tirar a barriga de misérias; foram muitos dias de jejum. Depois começará a cerimónia que é o coroar desta Semana Santa: As Boas Festas.
O Senhor Vigário irá entrar em todas as casas de São Vicente. Levará a todos o Senhor. Levará a todos também uma palavra de conforto, de fé, de amizade, de Paz.»

Semana Santa dos anos cinquenta em S. Vicente da Beira.


E.H.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Semana Santa

I
Início dos anos 60 do século XX.
Naquela época, a Vila fervilhava de gente.
Mas os ventos da história, não sopravam muito por ali. A vida, cujo sustento provinha, quase exclusivamente, da agricultura, corria com a normalidade do costume. Cerca de uma década antes, já se tinha constatado alguma emigração para o Brasil. Mas nada que se comparasse à sangria desatada, que se lhe seguiria, especialmente para França. A maior parte das casas de família, porém, ainda albergava 6 a 8 pessoas.
Toda esta gente era uma grande riqueza humana que contrastava com os parcos recursos materiais disponíveis. Quem tivesse um bocado de terra tinha alguma fartura, mas apenas em produtos a ela ligados.
Havia muita criação de gado mas, paradoxalmente, o acesso à carne era difícil. Para não falar na de vaca que, essa, era quase desconhecida na mesa dos beirões. Ora, isto parece um pouco estranho. 
Mas creio que essa dificuldade derivava, no fundamental, do seguinte: a maioria das pessoas não podia dar-se ao luxo de abater regularmente animais para consumo próprio. Na verdade, quem tinha algumas cabras ou ovelhas, só matava uma rês de vez em quando, para renovar o conjunto com um animal mais jovem. De resto, consumiam-se ou vendiam-se, em parte, apenas os frutos desse pequeno rebanho: os cabritos ou borregos, o leite, o queijo e algumas peles. 
Daqui resulta que se mantinha, no essencial, a dieta mediterrânica, com todas as virtualidades que lhe são reconhecidas. Na base dos vegetais, ovos, azeite, leite, queijo, pão de gramíneas, hortícolas, fruta, ervas aromáticas e carne de porco que se criava para consumo caseiro, ajudando no tempero da panela durante o ano. Matava-se ainda uma ou outra galinha. E havia o borrego para a Festa. A dieta de peixe era assegurada por empresas do Ribatejo, cujas camionetas iam abastecer à costa de madrugada e chegavam à praça a meio da manhã, uma ou duas vezes por semana.  
A liturgia da igreja era a grande marca nos costumes das populações e, apesar das dificuldades no acesso à alimentação, estava-se ainda obrigado ao jejum e abstinência em dias e períodos determinados.
Caminhava-se para a catarse das comemorações da Semana Santa.  
Desde Quarta Feira de Trevas, tinha-se acentuado mais o retiro espiritual. A gravidade das horas ia-se aproximando. 
Estamos na Quinta Feira Santa.          
Já era dia grande. O dia da Eucaristia. Por isso, a maioria das pessoas confessava-se nesse dia. 
Cessam os trabalhos agrícolas, acomoda-se o gado mais cedo. Se o tempo estava bom, despovoavam-se então para a praça todos os lugares das redondezas. Os acontecimentos religiosos mais importantes não eram apenas da Vila. Por esses caminhos de terra, pó e lama e por essas estreitas veredas, a pé, de burro ou de muar, vinham de perto, das Quintas, dos Caldeiras, do Casal da Fraga e do Casal da Serra; mas também das outras povoações mais distantes da freguesia.
II
Enquanto isto, o padre Tomás, poderoso pároco da freguesia, andava já às voltas como uma dobadoira. Punha e dispunha sobre as regras da celebração dos ofícios sagrados, enquanto os seus coadjutores e outros sacerdotes visitantes, confessavam.
Muitos ainda o conheceram. Era de uma família com vários irmãos dedicados à causa religiosa.
Não era muito alto, mas tinha uma figura larga. A sua palavra era firme, quase ríspida, por dever de foro, quando falava das coisas da religião. Por isso infundia respeito aos adultos e ainda mais a nós, pequenos. 
Quando 'apareceu’ a aurora boreal, era ver a população da Vila a correr para a igreja, pensando que 'aquilo' era o fim do mundo! O padre Tomás ao ver o povo a dirigir-se à igreja encaminhou-se para lá, em passo rápido. Tomava a dianteira a uns e a outros e ia dizendo, em jeito de ralhete, mas sem abrandar o andamento:
"Pois, pois, agora vindes a correr para a igreja! Porque pensais que isto é o fim do mundo e que ides morrer todos. Medo tendes vós, mas muitas vezes, aos domingos, não enxergais a porta da igreja! Só vos lembrais de Santa Bárbara quando faz trovões!”
E porque assim e porque assado. Ouviram o raspanete, mas não se atreviam a censurá-lo! O momento não era propício. Além disso, falava a autoridade religiosa. Ele é que sabia. Assunto encerrado!
Não era pregador, mas desempenhava-se bem das homilias de domingo. Como todo o homem, teria as suas fraquezas. Mas nunca o vi vacilar nas convicções. Era um sacerdote à antiga. Aceitou essa condição. Doutrinariamente íntegro e talvez, por isso, de sorrisos pouco largos. O respeito à Bíblia exige sisudez! O Bem e o Mal digladiam-se ali por todo o Eterno.
O seu discurso roçava, por isso, a ortodoxia. Mais de uma vez o vi, em plena igreja, a retesar os olhos ao pregador, sobretudo se este era jovem e deixava escapar aqui ou ali, alguma ideia mais liberalizante ou uma palavra menos canónica.
Fora das coisas da religião, o padre Tomás era pessoa de muita bonomia.
III
Ti' Jaquim do Vale de Caria (Chequim do Balcaria, para os amigos) apanhou-o nas andanças desse dia da semana santa, da igreja para a sacristia, a distribuir ordenanças e a procurar conversar com o Provedor da Misericórdia, entidade que super entendia na vertente organizativa das acções religiosas da quadra festiva.
Um pouco a medo, porque era precisa uma boa razão para lhe tolher o passo e ele sabia como 'elas queimavam', ainda a uma certa distância pôs-se a titubear: 
" Eh, Senhê Vegário !  Senhê Vegário! Este ano temos Semana Santa Completa ou não?!"
O padre Tomás andava seguramente pelos 70. A acuidade auditiva já não seria a melhor. Não lhe respondeu. Mas viu o outro ir na sua direcção a fazer sinais e apercebeu-se, mais pelos gestos que pelas palavras, que ele lhe queria dizer alguma coisa.
"O quê?! O que é que tu queres Joaquim? Não vês que ando aqui na função de combinar a hora das procissões e que se está a fazer tarde para as exéquias? O que é que tu dizes, homem?"
Embora o Ti’ Jaquim já esperasse por esta impaciência, o martelo só faz mossa quando bate. E principiou mesmo a gaguejar:
"Se …se … este ano há Semana Santa Completa, cá na Vila!"
"Quem é que te meteu isso na cabeça?!”
"Dizem p’rá aí, nas vendas.”
"Olha, Joaquim, quem to disse bem te enganou ou quis chasquear contigo! E tu, alma de Deus, deixaste-te cair na esparrela. Há lá agora Semana Santa Completa! Eu disse-o na igreja?"
E o Ti' Jaquim já meio atrapalhado: “Não… não...  me lembro!   Quero dizer, saiba o Senhê Vegário, que nada não!”
"Então, aí tens!
Ó Joaquim, mas onde é que andas tu com a cabeça, alma de Senhor? Que raio de cristão me saíste!
Pois se eu não o anunciei na igreja, como é que poderia haver Semana Santa Completa? Não me dizes? Não vês que fica tudo muito caro? Temos que pagar aos pregadores que vêm de fora! Há lá dinheiro para isso! Não penses nisso, homem! Contenta-te com pouco, que é virtude contra a avareza. E dos pobres é o Reino dos Céus!”
E já tinha reiniciado a passada rumo ao seu destino, quando atirou:
“Adeus Joaquim e não te esqueças de fazer as tuas orações diárias porque a oração é o poder mais eficaz contra o Maligno”.
Dito isto, foi à sua vida, deixando o interlocutor especado no meio da praça, com a mão em concha a cofiar a barba de quatro dias, pensando de si para si:
“Toma lá Jaquim, que é p’rá aprenderes. À próxima toma tento no que se passa à tua volta.
E quando fores à missa, vê se estás com os sentidos bem assentes! Porque, se Deus te observa em qualquer lado, que fará em Casa D’Ele! E não ficará nada agradado com essas tuas distracções.”
Mas se já se sabia por omissão, ficou-se a saber por explicitação. Naquele ano, como acontecia em quase todos os anos da curadoria do padre Tomás, não ia haver Semana Santa Completa!
IV
O adro estava quase à pinha.
A multidão, trajava de negro ou predominantemente de escuro. E movimentava-se aos magotes no amplo largo, de semblante sorumbático e rosto mais circunspecto que o habitual.
O tempo era de recolhimento.
As próprias imagens dos santos participavam desse retiro. Encontravam-se, desde o princípio da Quaresma, tapadas de alto abaixo com crepes de pano. De roxo a simbolizar a paixão, de negro a significar a morte.
A identidade dos santos e as cores claras dos paramentos só iriam reaparecer no Domingo de Páscoa.
O repicar alegre dos sinos, a chamar para a igreja, deixará de se ouvir na Sexta Feira Santa. Cristo morreu nesse dia e, até à Aleluia, apenas as matracas, instrumento de paixão e tortura, se farão ouvir, a partir daí, na convocação e na celebração dos actos religiosos.
Uma espécie de manto de silêncio e negridão cobrirá, então, toda a vida da comunidade.
Os de longe vinham apenas à confissão e às cerimónias da tarde. Não podiam ficar para a procissão. Era tudo muito penoso, senão mesmo impossível, por causa dos caminhos.
A massa de gente acotovela-se em vários pontos da igreja, na sacristia ou até na Misericórdia, em filas intermináveis, para a confissão. Os padres não têm mãos a medir. E se eles, naquele tempo, eram muitos! Todos os fiéis querem limpar a ciscalhada de pecados acumulados que a condição humana carrega.
V
“Vamos a despachar! Vamos a despachar!” Sentenciava o Ti’ Manel do Balcão para a mulher. “Vamos a aviar!”  
Tinham vindo do Mourelo, de burro. Ela, mais acabadota, a cavalo. Ele a pé, a guiar o animal que não aguentava com os dois em cima. Para quem  o  conhecia, a  alcunha  era óbvia. Vinha-lhe do balcão de pedra da sua casa, que dava acesso directamente ao piso principal da habitação. Por baixo, situavam-se as lojas dos animais.
“Tem paciência, criatura do Senhor!” Exclamou, agridoce, a Ti’ Constança para o marido. “Olha que as coisas da igreja não são para pressas nem para excessos.”
“Ó mulher, deixa-te de lamúrias. Vai-te à igreja a tratar da tua vida. Bem sei que amanhã ainda é dia santo. Mas os animais não conhecem os feriados nem os domingos. Ainda não é de madrugada e já estão a chamar o Manel para lhes pôr o almoço na manjedoura. Toca a andar!” Insistia.
Se a noite os apanhasse no caminho de regresso a casa, só podiam contar com uma pequena lanterna.
“Vamos lá, que o caminho que para cá nos trouxe é o mesmo que para lá nos há de levar. Mas aquilo é o damonho dum caminho excomungado! Nem a lanternazita chega para nos acudir se houver algum percalço!”
“Olha lá, homem, tu devias era ir também confessar-te!”          
“Eu ...eu… não roubo nada a ninguém, nem trato mal o meu semelhante. Só dirijo imprecações ao rebanho das cabras, quando andam transviadas, a querer roer os talos das parreiras do vizinho. Mas como as cabras não têm alma, não há ofensa. Assim, estou limpo de pecados.”
“Mas ofendes-te a ti mesmo, homem. E as cabras não são também criaturas do Senhor?”
“São! Mas sempre te ouvi dizer que gostas muito de um bocadinho de chanfana de cabra bem temperada com azeite e vinho.”
“Ora, ora, uma coisa não tira a outra. Deus mandou que o homem reinasse sobre todos os outros animais. Podemos comer alguns, mas temos que os respeitar em vida e mesmo na morte.
E aquilo que tu me dizes às vezes? Pensas que não é pecado?”
“Mau! Homessa! Espera se queres ver. Agora temos ladainha.
Vai daí, desta vez, venho com o espírito pouco tranquilo para me confessar e ir à sagrada comunhão em paz e sossego. Tu sabes. Aquela questão que temos com o nosso vizinho sobre a água da regadia, deixou-me a mente perturbada. Aquilo há de resolver-se, mas ainda não chegou o tempo certo.”
O vizinho era o Zé Patoleia. A alcunha do ‘Patoleia’ vinha-lhe do facto de andar sempre a repetir a história daquela guerra civil, narrada num velho livro que ainda andava a rebolar lá em casa. E que ouvira ler a um familiar que tinha andado p’ra padre.
“Mas diz lá, mulher, o que é que eu te digo que é pecado e que tu achas que deve ser confessado ao Senhê Vegário?”
 “Por que é que tu, quando andas com a cabeça espavorida me dizes: ‘Vai-te para o rai’ que ta parta!’, se eu gosto tanto de ti, Manel?”  
Rai’s te coma e mais ao teu bem-querer, mulher! Não me digas isso que me fazes subir soluços aos gorgomilos! É verdade, em certos dias, ando com a cabeça desarvorada, com atarantações. É cá a vida!”
“A vida é de nós os dois, não é só tua.”
“Pois é. Tens toda a razão. Mas, que queres? Muitas vezes ponho-me a engolir em seco para dentro e depois digo coisas disparatadas. É o diacho!”
“Por isso é que, nestes dias, devias pedir a Deus que te ajudasse.”  
Mas o Ti’ Manel, um pouco mais recomposto daquele abanão emocional, respondeu-lhe:
“Bem, bem, mas vai lá tu tratar de ti, mulher, que eu rezarei as minhas orações cá fora, enquanto te espero. Entrementes, vou dando um punhado de palha ao burro. Vai, vai mulher.”
A Ti’ Constança percebeu que o marido continuava com o coração um pouco duro. Calou-se, dirigiu-se à igreja e foi direita a uma das filas para se confessar.
VI
O facto de não haver Semana Santa Completa, não tirava que na Semana Santa Simples, não tivessem lugar os actos principais. Com destaque para o Lava Pés, à tarde, e Procissão do Ece Homo, à noite, na Quinta Feira Santa. Adoração da Cruz, à tarde e procissão do Enterro do Senhor, à noite, na Sexta Feira Santa.
Tudo com a austeridade própria de cada um desses eventos. Antes, evidentemente, da magia do ‘aparecimento’ da Aleluia na madrugada de Domingo.
Nas procissões e ladainhas levavam-se, dantes, archotes feitos das seiras velhas dos lagares, ainda embebidas em azeite. As ladainhas não levavam padre. Eram organizadas apenas pelos leigos.
Mas as procissões tinham alguns ritos diferentes de todas as outras manifestações religiosas nas ruas da Vila, supõe-se que por exigências de solenidade.
Assim, na Quinta e Sexta Feira Santa, à noite, respectivamente, a procissão do Ece Homo e do Enterro do Senhor, após terem início na Misericórdia, ninguém mais podia entrar ou sair em nenhuma confluência de ruas ou largos; ou ia-se a tempo e horas para integrar as filas penitenciais da procissão ou ficava-se fora ou à janela; entrar e sair durante a procissão é que não era possível.
Pois, a tapar a boca de cada rua com cruzamento ou entroncamento com a rua da procissão, postava-se uma equipa de rapazes novos, escorreitos, de pé, atitude marcial. Braços na vertical ao longo do tronco, pegando na extremidade de umas varas, tipo cabos de enxada, colocados na horizontal, em cadeia transversal, vedando o local. 
As procissões continuaram a fazer-se, mas esta tradição, como a dos crepes de pano a esconder a face das imagens, na Quaresma, não existem há décadas; outras se foram perdendo. O curso dos tempos foi fazendo a sua erosão. E foram-se traçando diferentes caminhos.  
Os tempos são outros. Culturalmente, muita coisa mudou. Pode pensar-se que as religiões perderam fiéis. E parece ser evidente que nunca houve um mundo tão materialista como o de hoje. Mas mesmo assim, julgo que, no essencial, apenas se perderam alguns ritos para se adquirirem outros.
Porque a religiosidade é inerente ao Homem. 
E Deus Super Omnia.       

JB.