domingo, 20 de maio de 2018

Museus a céu aberto

A propósito das últimas publicações e respetivos comentários, lembrei-me de Figueira, uma aldeia velhinha a dois ou três quilómetros da Sobreira Formosa.
Quando a descobri, já lá vão uns anos, ainda avistávamos gente à conversa na rua ou a tratar das pequenas hortas nos quintais, à roda das casas; as galinhas, nas capoeiras, agitavam-se à passagem de estranhos; ouviam-se os chocalhos das cabras a pastar ali por perto e outras a balir na corte, por baixo das casas, que vinham cumprimentar-nos; o ar cheirava a pão acabado de cozer. Não havia café ou taberna, mas a água fresca da fonte matava a sede de quem passava.
Quando lá voltei, uns anos depois, já se via menos gente pela rua; a capoeira, logo à entrada, já não tinha galinhas, e as hortas tinham ficado mais pequenas. Paradoxalmente, uma das casas do largo principal estava em obras; disseram que era para um restaurante.
Voltei lá há tempos e o processo de desertificação é ainda mais evidente: os moradores contam-se agora pelos dedos das duas mãos, quase todos já muito idosos, a viver sozinhos, ansiando pelo dia da visita dos filhos, que vivem longe; muitas casas com os telhados abagados e as paredes esbarrondadas; os campos, à roda, sem gente para os tratar. Senti que Figueira se transformara num museu a céu aberto, sem gente, mas revelando-nos bastante do que foi a vida dos seus habitantes ao longo do tempo.


Construída de forma a ficar fechada sobre o seu próprio interior, a aldeia tinha um sistema de portas que a protegia durante a noite. As cancelas simples, construídas em madeira, tinham como principal objetivo evitar a entrada de lobos. Estas portas protegiam tanto a população como os animais que viviam sob as casas. (Retirado da tabuleta)

Ruas estreitas, labirínticas, com casas de xisto e balcões de acesso ao piso de cima, que servia de habitação. O vão deixado pelas escadas e outros recantos junto às casas eram aproveitados para capoeiras. Durante o dia as galinhas andavam à solta, bicando pelas ruas de terra, mas à noite todos os animais eram recolhidos para evitar ataques de raposas e lobos. (Retirado da tabuletas)


O forno comunitário é o centro da aldeia e continua em utilização. Chegou a ser aquecido para cozer pão uma dezena de vezes num único dia, obrigando a um sistema de marcação que se mantém visível. Cada família tinha uma peça em madeira e metal, com as suas iniciais, com a qual era marcada a ordem em que iria utilizar o forno. Esse sistema de marcação é ainda visível na trave de madeira com 33 furos que se encontra suspensa na parede. (Retirado da tabuleta)

 
As casas tinham dois pisos: o de baixo servia de curral ou de furda; o de cima era para habitação ou servia de palheiro.

Métodos muito rudimentares utilizados nas portas dos currais, quer nos batentes, quer nas fechaduras (tranca, neste caso, mas também há cravelhas(?)).

E o restaurante lá está. Chama-se Ti Augusta e deve o nome à antiga proprietária da casa, uma pessoa das mais bem remediadas da terra. Tinha também um coração grande: ninguém que lhe batesse à porta abalava com fome ou de mãos a abanar. Lá dentro sentimo-nos a recuar no tempo, pelas paredes de xisto, as sonaves à vista, os nichos nas paredes ou o ranger do soalho. Para além do afogado da boda, dos maranhos e do plangaio, tudo acompanhado de muitos legumes, também serve o cabrito ou borrego no forno.
Como museu, vale a pena a visita. Fica a pouco mais de uma hora de viagem e, felizmente, o fogo andou lá perto, mas foi atalhado a tempo.

M. L. Ferreira

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Dia dos Museus

Instalações do futuro museu de arte sacra, na casa que foi de Hipólito Raposo (à esquerda). 

J. M. S.

terça-feira, 15 de maio de 2018

Breves mas importantes

1. Feira Medieval
Há meses, a Câmara Municipal  apresentou à comunicação social as linhas mestras das festas nas freguesias: Sabores, Natureza e Património.
Acho que nos calhou a Natureza, embora já tenha havido desenvolvimentos após esta informação me ter chegado.
Assim, este ano não haverá feira, nada de medieval, mas certamente manter-se-ão os comes e bebes. E sim, haverá Natureza.

2. Javalis
A minha irmã Celeste avisou, por cima da Tapada, uma vara de perto de duas dezenas de javalis. O Inácio Pereira também já os vira a descer para  o ribeiro das Lajes.
Será que após a destruição das culturas nos chega a insegurança das pessoas? Andam numa zona já muito frequentada por pessoas!

José Teodoro Prata

sábado, 12 de maio de 2018

Flores silvestres


 


 

 


 





José Teodoro Prata

quarta-feira, 9 de maio de 2018

A lenda da Gardunha


A nossa lenda começa quando Idanha-a-Velha era a mais florescente cidade de Egitânia, a qual foi pátria do famoso rei Vamba. Cobiçada pelos Árabes, várias vezes estes haviam tentado destruir a cidade. E é nesta época que entram em cena os protagonistas da nossa história. São eles: Ildefonso, viúvo, casado segunda vez com uma linda mulher chamada Alberta; Alberta, ambiciosa, péssima madrasta para a pequena Lília, filha de Ildefonso; e, Lília, uma pequenita órfã de mãe, contando apenas dez anos, cuja companhia favorita era o seu cão.

A tarde não era das mais famosas. Nem sol brilhante, nem calor. Uma tarde vulgar num dia mais vulgar ainda. 
No terraço da casa de Ildefonso, Alberta, rubra de cólera, gritava para Lília todo o seu desespero. 
— És um empecilho! Não serves para nada e só consegues aborrecer-me! 
Humilde, Lília desculpava-se: 
— Não tenho culpa de que o meu cão a tivesse mordido! 
Desesperada, Alberta tornou: 
— Mas mordeu! Por isso o odeio! 
— Ele só morde naqueles que lhe batem sem razão... 
A mulher desesperou-se ainda mais. 
— Achas então que não devo bater nesse rafeiro! Pois fica sabendo que esta noite hei de mandar matar o teu maldito cão! 
A pequena Lília agarrou-se aflitivamente ao pescoço do animal, pedindo entre lágrimas: 
— Não! Não faça isso ao meu cãozinho! Ele gosta tanto de mim... até chora comigo! 
Alberta teve uma gargalhada forçada. E desdenhosamente comentou: 
— Pateta! Já se viu um cão chorar ou rir? 
Lília, com o rosto banhado em pranto, sentiu-se forte para defender o seu amigo. 
— Sim, senhora! Eu vi! Chorou no dia em que a minha mãe morreu! E olhe agora para os seus olhos... Está chorando comigo! 
Interrompendo-a, Alberta gritou: 
— Cala-te! Não digas mais disparates! 
— Mas o meu cão está a chorar, veja! 
— Cala-te, já te disse! Senão conto ao teu pai o que se passou: que ele me mordeu e que tu me faltaste ao respeito... 
Lília continuava a chorar, suplicando: 
— Mas não mate o meu cãozinho, não o mate!... Gosto tanto dele!... 
— Hei de matá-lo! Mordeu-me! 
— E a senhora bateu-lhe! Bate-lhe sempre que o vê! O meu pai... 
Alberta vociferou: 
— Se contas ao teu pai a nossa conversa, mato-te também... como se mata um cão! Ouviste? 
Lília então revoltou-se. Mas não gritou. 
As lágrimas secaram-se-lhe nos olhos. Sentia-se ofegante e disse apenas, numa voz baixa onde ia todo o seu desprezo: 
— Como a senhora é má! Como é má! 
Alberta olhou-a uma vez mais com ódio e, num gesto imperativo, ordenou: 
— Sai imediatamente da minha vista! E não me perguntes mais pelo teu cão! 
Lília obedeceu. Afastou-se, sem pressa, daquela má mulher. O cão rosnou. A pequenita, porém, recomendou-lhe, baixo: 
— Não faças barulho! Ela não te há de matar... Vamos fugir os dois! Vou buscar o merendal... Espera aqui por mim. 
O cão acenou com a cauda, como se a tivesse compreendido. Lília voltou depressa. Trazia a merenda e um manto que colocou sobre os ombros. Lado a lado, os dois amigos atravessaram rapidamente a cidade. Lília olhava de vez em quando para trás, a verificar se teria ou não sido descoberta. Mas ninguém os seguia! Para onde iria esconder-se? A pequena olhou o céu, num pedido de proteção. De súbito, o seu olhar descobriu a serra que se elevava lá no fundo, cheia de rochedos e grutas. Teve um sorriso de esperança. Acariciou a cabeça do cão e falou-lhe: 
— Vamos! Já temos morada. Vamos subir a montanha! 
O cão agitou a cauda, de contente. A sua dona e o ar livre eram tudo para ele!

A noite começava a cair, quando a pequena Lília chegou ao cimo. Agora já não podia voltar para trás. Só tinha um caminho: procurar abrigo seguro. E encontrou-o nas grutas, que mais pareciam fortalezas. 
Lília sentou-se, aconchegou o manto, puxou o cão para si, comeram ambos do mesmo farnel, e ambos adormeceram lado a lado. 
A noite veio espreitar esse quadro de inocência no alto da montanha. E ficou também ali, até que a aurora veio lembrar-lhe que era tempo de partir. Então a noite foi-se embora, sorrindo aos adormecidos... 
No momento preciso em que a noite deu lugar ao dia, Lília sentiu que mão invisível lhe tocava num ombro. Levantou-se sobressaltada, mas o seu cão latiu de contente. A menina olhou em volta. Uma luz azulada cobria a montanha. Ela perguntou ao seu companheiro: 
— Viste quem me acordou? 
Então, uma voz bonita de mulher chegou aos seus ouvidos, enquanto sobre um rochedo uma senhora envolta num manto branco lhe sorria: 
— Lília! Tens de voltar lá a baixo... 
A pequena surpreendeu-se. Nunca vira uma senhora tão linda, nem ouvira voz tão meiga. Perguntou, na sua inocência: 
— Senhora! Quem sois? 
Sorrindo sempre, a dama de branco respondeu, serena: 
— Sou do Céu. Nada temas! 
Os olhitos de Lília abriram-se mais, numa ingénua curiosidade. 
— Se sois do Céu... porque viestes à Terra? 
— Para te falar e proteger. 
Lília aproximou-se da senhora de branco. A sua vozita soou magoada: 
— Sabeis então que ela queria matar o meu cãozinho? 
Cariciosamente, a senhora tornou: 
— Sei, sim. Mas maior perigo corre agora o teu pai e todo o povo de Egitânia. 
Assustada, a menina perguntou: 
— Ela quer matá-lo também? 
A senhora pousou os seus dedos de luz nos cabelos doirados da menina. 
— Não, Lília, não se trata agora da tua madrasta. Refiro-me aos infiéis que estão quase às portas da cidade. O combate vais começar. Dentro de algumas horas Egitânia será destruída pelos Mouros.
O rosto da menina traduziu o seu alarme. Perguntou com ansiedade, na sua voz juvenil: 
— E o meu paizinho morrerá? 
A senhora volveu: 
— Tu poderás salvá-lo. 
— Como, senhora? 
— Corre lá a baixo à cidade e tenta falar com teu pai. É preciso que ele acredite em ti. O povo terá de reunir tudo o que puder de comida e agasalhos para vir refugiar-se nesta montanha. Compreendes o que te digo? Terão de vir todos para aqui, se querem salvar-se! 
A menina acenou com a cabeça em sinal afirmativo. A senhora de branco continuou: 
— Repara bem neste local, Lília! Parece uma fortaleza. Aqui os Mouros não conseguirão vencê-los. Poderão destruir a cidade, mas não destruirão os corpos desta gente sã, nem sequer a fé nas suas almas fortes. Vai, pois, Lília, e avisa o teu pai. 
A menina, num à-vontade de criança, perguntou ainda: 
— Quereis que os traga todos para aqui já? 
A senhora respondeu com firmeza: 
— Não há tempo a perder! O alarme já se espalhou. Os Mouros preparam-se neste momento para atacar. Vai depressa! Eu te protegerei. 
Aflita, Lília pediu: 
— Então... tomai conta do meu cãozinho! Não quero que ele volte lá a baixo! Irei sozinha. 
Serena, a senhora tornou: 
— Lília! O teu cão já não merece preocupações. A esta hora, Alberta, a tua madrasta, chora de horror e julga que a invasão é um castigo do Céu. Porém, os outros não poderiam sofrer por ela! Jamais o céu a castigaria, castigando também inocentes. Vai, e traz essa gente para aqui! 
A pequena Lília olhou agradecida para a senhora de branco. 
— Vou já a correr! 
Depois, com ar duvidoso: 
— Posso então levar o meu cãozinho? 
A senhora sorriu. 
— Leva sem receio o teu cãozinho. Ele ajudar-te-á a encontrar o caminho mais seguro.

Sem mais dizer, a menina começou a correr pela montanha a baixo, acompanhada sempre pelo seu amigo. Quando chegou à cidade, só viu gente correndo como alucinada, de um lado para o outro, soltando lamentos! 
A todos perguntava pelo pai. Só ao pai podia transmitir o recado da senhora do Céu. Quando o encontrou, ambos ficaram por um momento estáticos. Foi Ildefonso quem reagiu primeiro: 
— Lília! Tu aqui?... Julgava-te em casa dormindo. Vai já ter com a tua madrasta e não saiam para a rua! 
A menina olhou-o com firmeza: 
— Pai! Preciso dizer-lhe uma coisa! 
Ele enfadou-se: 
— Estamos em guerra, compreendes? Não os ouves ao longe? São muitos, muitos... dez vezes mais que os nossos homens!... 
Lília insistiu, serena: 
— Mas a Senhora quer que eu lhe conte o que ela me disse! 
— Qual senhora? 
— A Senhora do monte, lá em cima... 
Ildefonso olhou a filha com perplexidade. 
— A senhora do monte?... Mas... que ideia é essa? Estás doente? Tens febre? 
— Não. Estou apenas cansada porque vim a correr. A Senhora disse que tinha de vir depressa avisar o pai. 
Ildefonso pegou-lhe nos ombros: 
— Mas quem é essa senhora? 
— A que me apareceu lá em cima esta manhã. 
O homem abanou a cabeça. Não entendia o que a filha tentava dizer-lhe. 
— Ouve: não tenho tempo para pensar com calma. Tu estiveste lá em cima? Além, nos rochedos? 
— Sim, meu pai. 
— Porque foste sozinha? 
Lília hesitou. Ildefonso gritou quase: 
— Responde! Porque foste para lá sozinha? 
Olhando o cão que se encostara às suas pernas, como a dar-lhe alento, a menina explicou: 
— A minha madrasta queria matar o meu cão e eu fugi ontem com ele. 
O pai gritou-lhe, surpreendido: 
— Ontem? Mas... então não estavas a dormir quando eu cheguei? 
— Tinha fugido com medo!
— Para onde? 
— Para o cimo da montanha. Escondi-me nos rochedos. E foi ali que esta manhã a Senhora me falou... 
Ildefonso olhou a filha e escutou a algazarra que se aproximava. Baixou-se para lhe falar, olhos com olhos. Não havia tempo a perder. 
— Lília! Que te disse essa senhora? 
— Que vinha do Céu e que eu devia correr até aqui, para dizer ao pai que fugissem todos... 
Ildefonso interrompeu a filha: 
— Que fugíssemos? Para eles destruírem tudo?... Creio que não escaparemos... Mas hão de encontrar-nos pela frente! 
Lília insistiu, firme: 
— Mas a Senhora diz que ali, nos rochedos, é como se fosse uma fortaleza onde os homens maus não poderão chegar! 
Ildefonso levantou-se de súbito. Levou uma das mãos à testa. No seu rosto passou uma expressão quase de triunfo:
— É isso mesmo! Começo a ver claro! Isto foi uma bênção do Céu! A Virgem Mãe de Deus vai ajudar-nos! 
Agora, parecia já indiferente à algazarra que se ouvia cada vez mais próxima. Voltou a baixar-se ao nível do rosto de Lília. 
— Que mais te disse Ela, filha? 
— Que o pai desse esta nova ao povo de Egitânia. Que arranjassem comida e agasalho e fossem todos para a fortaleza da serra! 
Ildefonso ergueu-se. No olhar brilhava-lhe uma chama de fé. Murmurou: 
— É isso! Louvado seja Deus! 
Depois, beijando a filha: 
— Meu anjo da guarda! Vai imediatamente a casa e diz à tua madrasta que vá aprontando as coisas, que daqui a pouco irei buscá-las! Vou reunir os meus homens e falar-lhes! 
A nova espalhou-se rapidamente. Hinos de louvor subiam ao Céu enquanto o povo de Egitânia — hoje, Idanha-a-Velha — subia ao cimo da serra. E quando o invasor chegou, numerosíssimo, destruindo tudo à sua passagem, ficou pasmado com a ideia dos egitanienses. Tentaram subir também a montanha, mas não conseguiram desalojá-los de tão forte castelo natural. 
Na impotência dessa vitória que já chamavam sua, os mouros bradavam, então, uns para os outros: «Gardunha»! «Gardunha»! 
E assim era, na verdade. O povo da Egitânia encontrara, pela mão de Deus e da inocência, o melhor refúgio na serra que o cercava. Daí se começou a chamar-lhe — serra da Gardunha. E lá no alto, o povo construiu uma ermida com a imagem duma Senhora envolta num manto branco —  a Senhora da Gardunha — num comovente gesto de ação de graças!

Fonte Bibliográfica MARQUES, Gentil Lendas de Portugal

Jaime da Gama