domingo, 31 de março de 2013

Entre iguais

E passou mais uma Páscoa! Este ano com alguma desilusão, pois a chuva não permitiu que as cerimónias tivessem o brilho de outros anos. Parabéns a todos os que trabalharam para isso. Mas o essencial não faltou: a espiritualidade religiosa e familiar. O resto é mesmo acessório, embora às vezes pareça o mais importante. E, nestes tempos em que sofremos devido à ganância e à incompetência de tantos, é bom saber que nem tudo está nas mãos dos poderosos. Páscoas chuvosas já tivemos tantas!
No início destas festividades, organizámos uma tertúlia na "Taberna do Raposo" e alguém  comentou a minha história da sementeira das batatas na Quinta-Feira Santa com uma provocação:  falta de jeito. Como terá sido a segunda pessoa a duvidar das minhas capacidades para os trabalhos agrícolas, deu-me o mote para escrever esta história em que, pela primeira vez, aos 22 anos, isso me aconteceu.

        O meu primeiro ano de trabalho, como professor, foi no Lombo do Moleiro, freguesia da Serra d´Água, ilha da Madeira. Trabalhei muito e gozei pouco, quase sem sair do meu vale encantado. Às vezes o Daniel vinha ter comigo, a falar das coisas da vida. Eu era querido daquelas gentes, quase parecia um deles, e ofereciam-me copos, pêros e espigas de milho.
Na primavera foram ao Pico Ruivo e levaram-me com eles, da Cumeada ao Pico, sempre pelos picos das montanhas, a encher os olhos de paisagens deslumbrantes. A ida e o regresso demorou o dia inteiro. Cheguei cansado e adormeci como uma pedra. No dia seguinte, só acordei com o barulho de pancadas por baixo do sobrado da minha casa. Era o Daniel, com medo que me tivesse acontecido alguma coisa, pois já era meio dia e eu não dava sinais de mim.
Foi ele que semanas depois me lançou novo desafio: ir com a família dele a arrancar semilhas, mas num sítio muito difícil de lá chegar, caminho mau, quase ao pé do penhasco de onde saía nevoeiro. Partimos de manhã cedo, ele, a mãe, os irmãos mais novos e tias e primas. Os homens estavam na Venezuela e o pai do Daniel morrera em França pouco antes da minha chegada.
Seguimos por veredas sempre a subir, às vezes era preciso agarrarmo-nos aos ramos das árvores, para impulsionar o corpo para a frente. As semilhas estavam semeadas em dois leirõezinhos, como degraus, escavados no meio da floresta verde. As mulheres atacaram com as enxadas e eu a olhar. Ofereci-me para ajudar, mas olharam-me surpreendidos, por entre risos, ninguém acreditava que um senhor professor soubesse cavar.
Emprestaram-me uma enxada, mas era em forma de cunha muito comprida e eu não conseguia que ela me obedecesse, a fugir para um lado ou para o outro. Mas depressa lhe apanhei o jeito e calei os risos,  já impressionados com a perícia na arte da enxada do senhor professor de Lisboa (para eles, Lisboa era  Portugal continental inteiro).
Ao meio dia, parámos para almoçar. Estenderam uma toalha por cima da terra cavada e deborcaram-lhe em cima uma panela de batatas (semilhas) com bacalhau e rama de alho. Sentaram-se ou ajoelharam-se todos em redor e eu também me ajeitei. Que não, o senhor professor não ia comer assim como eles! Deram-me um prato de cobulo de batatas com bacalhau, bem regado de azeite, mais um tanoco de pão e um garfo (azeite, prato e garfo eram luxos que tinham levado só para mim). Limpei tudo: quem não é para comer, não é para trabalhar. Desconheço se eles sabiam este provérbio, mas ainda me esperava uma tarde de trabalho.
Ao largar, havia sacas cheias de semilhas para todos os que já tinham corpo para carregar com elas. Eu, desabituado daqueles caminhos tão difíceis, não tencionava levar nada, nem eles contavam com isso. Mas a última saca sobrava para uma miúda de tenra idade e eu tive de fazer o que tinha de ser feito.
Foi uma descida muito dura e nunca pensei que uma saca de batatas acabasse por pesar tanto. Em alguns locais, descíamos agachados, seguros nos ramos, quase a arrastar com o rabo no chão do carreiro. Cheguei com as pernas trémulas e zonzo de tanto esforço, já no escuro do anoitecer. Vida dura a daqueles camponeses.

José Teodoro Prata

4 comentários:

Anônimo disse...

Um Sr. Professor que maneja com o mesmo à-vontade a esferográfica ou a enxada. Uma pessoa culta e generosa(o blog prova-o)que mantém a mesma simplicidade e disponibilidade, de quando era garoto.
Um exemplo, num país de cagões, que mal sabem escrever (apesar das habilitações)quanto mais cavar.
É este o testemunho que vos deixo.
Francisco Barroso

Anônimo disse...

Bela história que reflete o acolhimento generoso das pessoas da Madeira aos professores dos seus filhos. Ouvi muitas semelhantes, contadas por outros professores que choraram à ida por terem que deixar a família, mas depois também choraram quando tiveram que regressar, deixando para trás as boas recordações e os muitos amigos que por lá tinham feito.
Belas imagens também as da panela deborcada em cima da toalha e a do prato de cobulo de batatas com bacalhau e um tanoco de pão! Devem ter sabido a pútegas!
Mas voltando um pouco atrás, à história da sementeira das batatas, posso confirmar a tua teoria com uma outra história que ouvi contar algumas vezes à minha avó. Um ano em que ela andara ocupada com outras vidas, só teve tempo para se dedicar aos bolos da Páscoa na Quinta-Feira Santa. Lá amassou, tendeu e meteu no forno os bolos em massa (e terá também cumprido todos os rituais devidos), mas quando foi para tirar os bolos do forno estavam todos negros.
De certeza que não foi por alguma falha técnica, porque a minha avó era uma padeira e doceira experiente. Só pode ter sido mesmo coisa do além…

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

Chico:
Não sei se feliz ou infelizmente, a minha vida foi e é igual à tua e às de tantos milhares (milhões) de portugueses. De certa forma, escrevo estas histórias para dar a conhecer um passado bastante diferente deste presente, mas com histórias de vida sempre interessantes, ontem e hoje.
Libânia:
Penso que as batatas semeadas naquela Quinta-Feira Santa não nasceram, porque o comerciante lhes terá deitado um químico para matar os grelos, temendo não as vender a tempo. Ganância...

Ernesto.Hipólito disse...

Ó Tchico!

Sulpa lá mas faço minhas as tuas palavras.
Um grande abraço pra todos e um em special para o nosso Zé Teodoro.

E.H.