quarta-feira, 8 de maio de 2013

A cabeça de porco

Há umas semanas contei-vos a minha participação na arranca das semilhas, na Madeira. Hoje deixo-vos a narração da viagem para lá.

Passara um verão abrasador a remendar estradas, à manivela de uma caldeira de alcatrão a ferver. Naquela sexta-feira, dia 29 de setembro de 1979, pedi ao tio Chico Bernardino que me deixasse na Oriana, para despejar a presa do Calmão. Desci da camioneta e tinha a minha irmã Luzita à espera.
“Chegou uma carta da Madeira, tens de te apresentar na segunda-feira.”
Dei um grito do tamanho do mundo e atirei o saco da merenda o mais alto que consegui. Reguei o milho e fui para casa. Disse aos meus pais que tinha de partir no dia seguinte, na carreira da manhã. Tomei banho, ceei, preparei as coisas e ainda fui telefonar à minha namorada e despedir-me dos amigos.
Bem cedo, os meus pais deram-me o dinheiro que tinham e parti. De mala às costas, desci a quelha e depois as ruas da Vila, direito à paragem da camioneta. Em Castelo Branco, abracei a minha namorada, beijei-a e apanhei o comboio. Cheguei a Lisboa e fui ver as minhas irmãs. Depois, no aeroporto, tirei bilhete para o Funchal, com a mesma tranquilidade com que alguns portugueses, no século XVI, apanhavam a nau da carreira da Índia apenas com uma regueifa debaixo do braço, para uma viagem de seis meses.
O avião levantou voo. Vi Lisboa e depois o mar, cada vez mais fundo e escuro. A hospedeira explicava como fazer em caso de acidente e eu aflito, sem conseguir compreender tudo. Valeram-me as versões em inglês e francês, não que eu percebesse o que dizia, mas por umas tirava outras e assim esclareci as dúvidas que me tinham ficado. Ia junto à janela e olhei para fora. O mar era já um buraco negro. Se o avião caísse, ficava tudo desfeito e de nada valiam os coletes e o oxigénio. Como o que não tem remédio remediado está, recostei-me no assento e descansei.
O meu lugar ficava no fundo da fila de bancos, um espaço aberto, apenas com dois bancos, um de frente e outro de costas para a janela. No outro lugar sentava-se uma senhora meio velhota, cheia de sacos de plástico pelo chão. Contou-me que ia ver o filho, mecânico, a viver no Funchal. Eu também lhe disse ao que ia. Ofereci-me para a ajudar com os sacos, pois só tinha um, além da mala no porão. Ela agradeceu, mal podia com eles. No mais pesado levava uma cabeça de porco, para comer com o filho.
À chegada, era noite cerrada e o meu coração inquietou-se. No desconhecido, ainda vá lá, mas de noite… Apanharia um táxi para o Funchal e ele me arranjaria um hotel.
Aterrámos. Peguei nos sacos da senhora que no sítio das malas me apresentou o filho, a quem contou a minha ajuda com a cabeça de porco. Fez questão que ele me desse boleia para o Funchal e o meu coração, tão apertadinho, ficou um pouco maior.
Seguimos por uma estrada estreita e sinuosa. O filho tinha um bigode bem mais farto do que o meu e cabelo negro encaracolado. Era baixo e um pouco entroncado. Quis saber de onde era, eu próximo de Castelo Branco e ele o mesmo de Coimbra. No Funchal, não me largou sem ter onde ficar. Mas os hotéis estavam todos cheios e andámos mais de meia hora às voltas. Com pena dele, já me arrependia de ter aceite a boleia. Finalmente encontrou um hotel com vaga, caro, mas era o que havia.
Chamava-se EL GRECO. Dormi inquieto, acordei bem cedo e saí à procura do lugar de onde partiam as camionetas para a Serra d´Água. Estavam ali bem perto, junto ao mar, mas chamavam-se horários. A partida não tardou. Andei toda a manhã num sobe e desce, espantado com o condutor que parecia bêbado, no falar e nas maneiras, mas conduzia o autocarro com uma perícia que nunca antes vira.
As encostas eram verdes do mar aos cumes. Junto à água cresciam bananeiras, a meio da encosta havia canas-de-açúcar, mais acima as vinhas e no alto matagais. As casas salpicavam a paisagem e por elas parávamos constantemente. Não existiam ruas, apenas veredas de subir e descer ladeadas de vegetação.
Chegámos à Ribeira Brava e parámos quinze minutos: cargas, descargas, copos e partida. Alguns rapazes vieram à porta da taberna gritar ao motorista, voltaram para empinar o último copo e entraram com o horário já em movimento. A meio da Serra d´Água tive ordem de descida. Perguntei se era ali o Lombo do Moleiro, mas o lugar chamava-se Pomar e mandaram-me seguir a estrada até ao fundo do vale.
O sítio era o paraíso. A aldeia situava-se num beco sem saída, com encostas a pique em toda a volta, menos por onde eu entrara. No alto, havia um penhasco enorme, onde constantemente nascia um rio de nevoeiro que se derramava pela encosta e se sumia no manto verde. Passei a tarde a arranjar casa, aflito sem ter onde pernoitar. Aceitei o que me apareceu e, no dia seguinte, 1 de Outubro, segunda-feira, às 8 horas da manhã, estava à frente de trinta e seis crianças pequeninas. Chegara ao meu futuro.
Lombo do Moleiro, na Serra d´Água, Madeira. 
Na época, a povoação ficava num beco, mas hoje passa por lá a estrada que liga a Ribeira Brava a São Vicente (vertente sul e vertente norte), por um túnel que começa onde se veem as últimas casas.
A ribeira foi uma das que provocou as destruições e mortes de há anos. Um dia não parava de chover e ela começou a engrossar. Então as mães dos alunos foram à escola buscar os filhos, com medo que a ribeira transbordasse (a escola situava-se mesmo ao lado). Na altura achei um exagero, só aquando das últimas cheias é que compreendi.

9 comentários:

Vitor B. disse...

José,
não sabia que tinhas passado pela Madeira. A saída do Aeroporto de Lisboa e a viagem para o Funchal, foi.me deveras familiar. Comecei a ir à Madeira em 1987 e até 2009, fui regularmente à ilha por períodos prolongados e que me permitiram seguir a par e passo o teu trajecto!... nem parei!
Abraço!

Anônimo disse...

Tão bem escrito. Tão bem pintado, que li a tua aventura no desconhecido com um friozinho no estômago.

F. Barroso

Anônimo disse...

Digo aqui o mesmo que disse o meu primo Chico Barroso no comentário anterior; só acrescento que a pintura tem a cor e a leveza de uma aguarela!
Zé Barroso

Isabel disse...

Também me revi nesta descrição de uma viagem para o desconhecido, embora nos separem alguns bons anos. Mas a aventura, seguida da responsabilidade de orientar 25 crianças que nem sequer compreendia, é igual. Tu juntas-lhe os pormenores que posso saborear e comparar com os meus. Um beijo grande!!

isabel disse...

Ah, eu também morei na Ribeira Brava e achava igualmente que era um exagero o nome da ribeira...até á tragédia!

Anônimo disse...

Concordo com o Francisco e o José Barroso quanto às emoções despertadas por mais uma das tuas belíssimas histórias!
Descrições como esta e tantas outras que nos tens deixado (não esquecendo ainda algumas dos colaboradores deste blogue), são documentos sociológicos importantíssimos para a compreensão da nossa História recente, bem ao nível dos melhores episódios da série da RTP “Conta-me como foi”.
Apesar do salto quase no desconhecido, imagino o entusiasmo desses dias, a julgar por aquele “Chegara ao futuro”!
A minha experiência da primeira colocação na rede pública de educação não foi tão entusiástica. A idade era outra; deixava para trás um filho adolescente e levava comigo uma criança de três anos. Só me lembro daquela estrada no Alentejo profundo: uma reta infindável, ladeada por campos a perder de vista que desembocou numa rua com pouco mais de meia dúzia de casas.
Acho que vivi um mês em estado de choque, saindo de casa apenas para ir para a escola que ficava mesmo ao lado.
Quando finalmente decidi começar a limpar o quintal que tinha erva da minha altura e a
conviver com as pessoas da aldeia, lamentei o tempo que tinha ficado a “hibernar”. Aquela gente, duma pobreza quase extrema e aspeto muito sofrido, tinham um coração de ouro. Acolheram-me, a mim e à minha filha, com uma generosidade que nunca esquecerei.
Penso que são experiências como estas, comuns ainda a tanta gente, que nos ajudam a construir a nossa humanidade.

M. L. Ferreira

Anônimo disse...

Já percebi porque é que escreves tão bem, Libânia. Afinal prof. Perdi-te o rasto há tantos anos…mas agora encontramo-nos aqui na Praça virtual do Zé Teodoro. No teu comentário referiste:
“Aquela gente, duma pobreza quase extrema e aspecto muito sofrido, tinham um coração de ouro. Acolheram-me, a mim e à minha filha, com uma generosidade que nunca esquecerei.”
Isto é o que eu designo de solidariedade humana. A generosidade entre pessoas que se sentem iguais. Não aquilo que agora chamam de solidariedade, que é a implementação da esmola da sopa. Da cantina... quero dizer: a solidariedade é sempre um gesto horizontal, não vertical, de cima para baixo.

F. Barroso

José Teodoro Prata disse...

Chico, esta foi em cheio: a generosidade é horizontal!
Há o dar e o receber, mesmo que um dê algo de material e o outro responda apenas com um olhar, um gesto... E é preciso também que o primeiro esteja recetivo a esse retorno, sob pena de o seu ato vir, à partida, despido de qualquer afeto.

Anônimo disse...

Bela imagem, Francisco, da generosidade como um gesto horizontal que acontece entre iguais! Mas, como diz também o José Teodoro, este tipo de relação só é possível e genuína se construída com base nos afetos. É verdade, a par do sonho, são eles que comandam a vida…
Também gosto que chames Praça a este blogue. Tens razão! Cada vez mais vazia, a nossa Praça já não tem, para muitos de nós, a importância social a afectiva de outros tempos. Acho que neste blogue temos conseguido reencontrar pessoas e factos que estavam esquecidos nas nossas memórias. A mim tem-me feito rir, chorar e muitas vezes, pela identificação com tantas das histórias contadas, encontrar o rasto de mim própria, que perdi em tantos momentos…
Acho que é um ato de grande generosidade do José Teodoro utilizar muito do seu tempo para nos proporciona estes momentos de reencontros deliciosos!

M. L. Ferreira