quinta-feira, 5 de junho de 2014

ANTIPATIAS

No mês de Abril, fui a Castelo Branco. O normal é dizer: - Esta semana fui cinco vezes a Castelo Branco. Eu ainda sou dos que dizem: - No mês de Abril fui a Castelo Branco. Tem a ver com poluições e outras coisas terminadas em ões,  tais como:  uma mentalidade obsoleta que teima em não me largar.
Entrei na Livraria Bertrand com a ideia conservadora de comprar mais um livro do Miguel Torga. Os funcionários eram dois jovens com idades muito aproximadas às do meu João e do meu Zé e o que me atendeu, muito solicito, revoltou a livraria à procura do que eu pretendia, mas não encontrou.
Sugeriu-me então um livro que ele estava a promover. O título era esquisitíssimo e o autor um ilustre desconhecido para mim: MAZAGRAN, escrito por José Rentes de Carvalho, um nortenho radicado na Holanda.
Qual é o pai que, tendo dois filhos lá fora, a lutar pela vida, diz não a um rapaz que está cá dentro a lutar pela vida? Dos cinco euritos que eu tinha ideia de gastar por um livro de bolso, tive que passar para  dezasseis e sessenta, mas,  lá diz o outro, “Não há dinheiro que pague a paz do meu coração”. Para mais, o livro que tem como subtítulo  Recordações e outras fantasias, revelou-se uma agradável  surpresa. A prová-lo, junto um dos muitos pequenos textos que integram o MAZAGRAN:

ANTIPATIAS

Tal como o mistério de algumas simpatias, o de certas antipatias também se não pode discutir. Muitas surpreendem pela sua insignificância, mas debalde tentaremos escapar à garra com que nos apertam.
Eu, por exemplo, não consigo olhar o retrato de um escritor de pena na mão, ou com os dedos mergulhados no teclado da máquina de escrever sem que a qualidade da sua obra não sofra logo na estima em que eventualmente a tenho. Escritor que se deixa fotografar assim, diz a minha antipatia,  que não pode ser sério nem valer muito.
Porque se uma pose dessas traduz algo, não é por certo o  brio do talento nem a modéstia que pede a condição humana, mas o espírito frívolo que para se afirmar, necessita dos sinais exteriores do seu ofício.
Também me desagradam, mas por outra razão, creio, os retratos de escritores com as suas estantes a servir de pano de fundo. Desde que nos últimos anos a reprodução fotográfica, mesmo a dos jornais, aumentou sensivelmente a qualidade, mal vejo um desses retratos logo de lupa na mão me ponho a esquadrinhar os títulos dos livros que ele ou ela possui, na esperança de descobrir uma sintonia com os meus próprios interesses ou simpatias.
Recentemente publicado numa revista, o retrato de corpo inteiro de  um conhecido escritor, diante de um colossal e impressionante armário a abarrotar de volumosos tomos, veio agudizar outra das minhas irracionais antipatias.
Desconheço se o intento tinha sido fotografar o escritor em questão ou o aparatoso móvel, certo é que ao atentar nas lombadas dos livros no seu armário me correu pelo corpo o arrepio da descoberta: eu tinha ali sob os olhos a mina de citações do homem, o armazém do seu saber.
Por um instante cedi à tentação, peguei na lupa e comecei a ler os títulos. Mas logo me detive, tomado por um incómodo, a vergonha de penetrar impune no segredo da fraqueza e artimanha de outrem. Porque é talvez por isso que o excesso de citações sempre acorda em mim a irritação. É que me dá o sentimento de surpreender alguém que, por si só, não tem força para andar e que, em vez de se servir discretamente das muletas em que se apoia, acena orgulhoso com elas. De facto para se fazer valer, o hábil não necessita de originalidade nem saber verdadeiro: para ele e para o mundo a prótese já serve.

JOSÉ RENTES DE CARVALHO


E.H.

2 comentários:

Anônimo disse...

Se queres livros baratos, passa por Coimbra, a meio da Av. Fernão de Magalhães, numa espécie de livraria chamada 'Livros em Fim de Edição' e vê se descobres o que queres, mas sujeitas-te ao que houver. Posso dizer que fui lá, exatamente, à procura do Torga (poesia) mas só encontrei o 'Diário XI', 2ª Ediç., de 1991 (já eu estava em Coimbra) e tinha ele o consultório de Otorrino...na Portagem.
Sucede que o livro me surpreendeu: tem pensamentos, poesia e prosa.
Curiosamente, o próprio autor introduziu um pensamento, em francês, logo no início, de um tal AMIEL (ainda não me dei ao trabalho de ver quem é), que me fez lembrar a história da Libânia, do Fernando Namora e do sapato que fica para trás: 'Chaque jour nous laissons une partie de nous-mêmes en chemin'.

Abraço.

ZB

Ernesto Hipólito disse...

ZB.

Se a parte que deixarmos for boa há sempre a possibilidade de alguém a aproveitar.

Um abraço.

E.H.