quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Dia internacional do idoso

  «Uma vez por semana não trabalho no barco. Fecho o portão à chave para impedir os primos da Sofia de entrarem na quinta e me expulsarem como da casa de Cascais e vou a Lisboa, à clínica, visitar o meu pai num rés-do-chão de Alvalade onde havia campos e agora existem vivendas e esplanadas e ruas sob as árvores, e lá está ele numa poltrona à janela, sem conseguir falar no meio de outros velhos que não falam também, também de roupão, também imóveis, também de dedos nos joelhos, mirando-me em silêncio num vazio zangado, o meu pai que duas empregadas arrastam à noite para a cama numa aflição de pantufas
   - Fazer oó fazer oó quem é que tem muito juízo e faz um oó lindo quem é?
   lhe desatam o nastro do pijama, desabotoam a breguilha, colocam um bacio entre as pernas magríssimas, só cerdas e ossos
   - Chichi senhor doutor chichi chchchchchchchchch então que é isso vamos lá bravo óptimo bravo hoje não nos vai sujar os lençoizinhos lavados pois não seu maroto?
  O meu pai de queixo pendente, de nádegas bambas, a tentar limpar o nariz com a manga que treme, e elas solícitas
  - Tem o lencinho na algibeira não tem senhor doutor tem sim senhor cá está ele repare no lencinho diga cá à Fernanda para que serve o lencinho
  o meu pai calado, submisso, inútil, sem cigarrilha, sem dentadura postiça, sem lábios, sem chapéu, estendido no colchão como um espantalho de cana, as empregadas a comporem-lhe a coberta
  - Malandreco
  e a sumirem-se no corredor, a repetirem no quarto ao lado, invisíveis, de vozes amortecidas por um roçar de panos, um roçar de esmalte, a grossura de um tabique
  - Chichi senhor major chichi chchchchchchchch então que é isso vamos lá bravo óptimo bravo hoje não nos vai sujar os lencóizinhos lavados pois não seu maroto?
  e outro espantalho de cana num colchão, outro malandreco calado, outro malandreco submisso, outro malandreco inútil, as vozes mais longe, no entusiasmo de sempre
  - Chichi
….. »
 António Lobo Antunes: O Manual dos Inquisidores


« E, sem me dar atenção, continuou a despir-me (…). Era uma moça ainda nova e ela retirava-me peça a peça a minha idade adulta até ficar a criança que ela queria. Eu tomo banho! berrei-lhe para ela acreditar na minha força de homem. E ela disse ora não querem lá ver este menino birrento.
Estou nu e sem razão para ter vergonha de estar nu, que era o que apenas me podia agora vestir. E tinha o coto da perna a atestar isso, porque o meu corpo não estava inteiro para atestar a importância de si.
Então a Antónia manobrou a manivela e a cadeira subiu mais alto que a banheira e depois manobrou ao contrário para a cadeira mergulhar comigo na água. E imediatamente começou a lavar-me. Tão desprotegido, Mónica. Tão despojado do meu ser. Lavava-me a cabeça, o tronco, lavava-me as partes amorosamente. E eu pensei – depois vai pôr-me cueiros lavados. (…) Antónia manipulava-me todo e havia ainda uma presença de mim próprio e sentia que ela me tinha desapropriado do meu corpo.»

Virgílio Ferreira: Em Nome da Terra

M. F. Ferreira

4 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Dois textos soberbos de dois gigantes da nossa literatura.
Retratam a vida, no limite da humanidade. O dia a dia dos que ainda estão, mas já não são. Ou melhor, ainda são, mas não aquilo que eles e nós gostaríamos que continuassem a ser, para sempre.
No fundo, o que queríamos era a eternidade aqui na terra.
Mas a Natureza é que manda: lembra-te homem que és pó...

Ernesto Hipólito disse...

Será muito bom que o governo (qualquer que seja ) faça uma mudança afim de os idosos, em vez de irem para um lar passar os seus últimos tempos de vida, possam ficar com as suas famílias. Basta que o dinheiro que é dado às IPSS seja dado a essas famílias.
Esta ideia é controversa?. Claro que é.Tenho visto muitos filhos desejosos de despejar os pais num lar. Esquecem-se que mais cedo que tarde estarão nas nas mesmas condições.
Lá diz o ditado:
Uma mãe é para cem filhos; cem filhos não são (chegam) para uma mãe.
Não quero terminar este comentário sem dizer que o lar de S. Vicente está a ganhar nova vida.Está a deixar de ser um despejo de idosos.Por um lado devido à nova direcção que conseguiu pagar a pesada dívida que tinha herdado. Por outro lado a escolha para a equipa de uma Senhora que é um ser humano extraordinário.

E.H.

Anônimo disse...

Concordo com o E. H. quanto às políticas para a velhice. Que bom seria se todos pudéssemos passar os últimos tempos de vida acarinhados pela família e que ninguém pudesse morrer sozinho. É que por maior que seja o esforço das funcionárias de um lar, e grande parte delas faz um trabalho notável, mesmo em condições bastante difíceis, nada substitui o aconchego da família.
Quanto ao resto (situação financeira e novas dinâmicas), oxalá fosse verdade. Mas se todos déssemos um pouco do nosso tempo e da nossa generosidade, talvez se conseguisse melhorar alguma coisa (continua a apodrecer tanta fruta nas árvores e tantas oliveiras que ficam por colher…).

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

Calma! Esfriem lá esses ideais que a vida é bem mais complicada.
Mas, por outro lado, pelo sonho é que vamos.
A verdade é que há muitas pessoas que, por diferentes motivos, não podem cuidar dos seus idosos, como não podem tratar dos seus bebés.
Aliás, agora, muitas mulheres nem podem engravidar, sob pena de serem despedidas!
Um problema é a forma como o idoso encara o lar (já sem falar da qualidade dos lares e da formação do seu pessoal). É uma questão de atitude. Se se sentir bem, então o lar pode trazer-lhe muitas coisas boas que os filhos (quem os tem) não têm condições de lhe oferecer.
Claro que o ideal seria o Estado (a sociedade) ajudar as mães a ficarem mais tempo com os filhos e os filhos a ficarem com os seus velhinhos. Em certos casos, como refere o Ernesto, nem era preciso gastar mais.
É uma questão de cultura: focamo-nos nas instituições (a quem pagamos com os nossos impostos) e desvalorizamos a família.
Só um exemplo: dificulta-se a adoção de crianças, para garantir o emprego na instituição em que elas permanecerão. Não sei se é verdade (será nuns casos e não noutros), mas já ouvi tantas vezes esta denúncia!