Nesse tempo trabalhava no Refúgio, a
construir um prédio de três andares, fora a cave. O teu tio andava em Aldeia de
Carvalho, noutra obra, mas veio ajudar-me a deitar o telhado. No fim do dia, o
patrão levou-o de volta e eu fiquei lá sozinho, porque o servente ia a dormir a
casa.
O tempo já andava frio e nesse dia
fazia muito vento. Vimo-nos aflitos para acabar de telhar, sempre de gatas e
sentados, para não sermos levados pelo vendaval. Quando eles abalaram, desci
para a cave do prédio, que era onde eu dormia. Lavei-me e mudei de roupa e
depois preparei qualquer coisa para o jantar. Tinha lá um fogão a gás,
pequenito, mas que desenrascava. Fiquei um bocado a ouvir o rádio e depois
deitei-me, porque estava maçado e já começava a fazer frio. Debaixo das mantas,
com as costas direitas e as pernas estendidas, estava-se melhor. Quando veio o
sono, desliguei o rádio e comecei a dormir.
Acordei com um barulho enorme, não
sei que horas eram. Apalpei a caixa de fósforos e risquei um. Tirei a chaminé
do candeeiro e acendi-o. Vi no relógio de pulso que era quase uma da manhã.
Ouvia-se o barulho de chapas a bater. Devia ser do vento. Deixei-me ficar
debaixo das mantas. Mas o barulho continuava, às vezes ouviam-se coisas a
rebolar.
Levantei-me e vesti uns agasalhos,
para ir ver o que se passava. Fui às escuras, a tatear o caminho, porque não
valia a pena levar o candeeiro comigo, com aquela ventania. Na escadaria, fui
sempre encostado à parede, pois ainda estava em grosso, sem proteção. Quanto
mais avançava, mais claro se via, da iluminação da rua. Cheguei à porta e vi a
razão daquele barulho tudo. Estava um vendaval dos diabos e já tinha derrubado
o taipal que fazia de porta.
Na rua não havia vivalma, nem carros
passavam na estrada da Covilhã para o Tortosendo. O meu pensamento foi logo
para o telhado, que tínhamos acabado de deitar, mas ainda não estava
arrematado. Se o vento pegasse numa ponta, destelhava-o todo.
Saí para a estrada e fui andando até
um certa distância, de onde conseguisse ver o telhado. Estava tudo bem.
Caminhei em sentido contrário, para ver do outro lado. Não havia tanta luz, mas
parecia ver-se uma telha levantada. Andei para o lado, para ver melhor e lá
estava ela. Fiquei à rasca. Mal para me ir deitar e acordar de manhã com as
telhas todas no chão, mal para subir ao telhado sozinho, com tanto vento e um
frio de rachar que vinha da serra.
Voltei ao prédio e subi até ao
terceiro andar. Não foi difícil, por causa da luz dos candeeiros públicos.
Depois trepei por uma janela para o andaime e continuei a subir até ao nível o
telhado. A ventania abanava o andaime todo, abençoado tempo que tínhamos gasto
a prendê-lo bem. Alcei-me para o telhado e fui-me arrastando, deitado, até à
telha levantada. Não podia estar em sítio pior, junto à empena, num lugar
desprotegido do vento.
Cheguei lá e peguei na telha, mas já não
sentia as mãos. Tive de as meter debaixo da roupa, rente ao corpo, para
aquecerem. Depois coloquei a telha no sítio e ajeitei as outras em volta. O
regresso custou ainda mais, porque estava cada vez mais gelado e o corpo já mal me obedecia. Mas consegui
sair do telhado sem novidade e depois desci para a cave.
Ainda me lembrei de acender um caldeiro
de paus, para me aquecer, mas não tinha ação para nada. Meti-me na cama,
vestido e tudo, só tirei as botas. Demorei a aquecer, mas lá acabei por
adormecer.
Podia ter morrido naquele telhado,
sozinho, sem ninguém saber. O meu patrão é que ficou a ganhar, aquele cabeçudo.
Eu e o teu tio chamávamos-lhe o Cabeça Grande.
Mas um dia trabalhámo-nos, porque ele trouxe uma boina dele para o teu tio e
não lhe servia. Ele deu-ma a experimentar a mim e também não cabia na minha
cabeça.
José Teodoro Prata
2 comentários:
Era assim, no tempo dos nossos pais, e não foi muito melhor para muitos dos da nossa geração. Tempos do diabo, em que, para se ganhar a vida, quase tinha que se morrer!
Não terá sido por acaso que a boina do Cabeça Grande não serviu na cabeça dos heróis desta história. Provavelmente também não teria servido na cabeça do meu pai e de quase todos os meus tios...
M. L. Ferreira
Esta história real deixou-me emocionada. Que bom lembrar este homem que tanto trabalhou para nos criar, que bom partilhares connosco estas lembranças.
Uma bela homenagem, nesta data.
Albertina T. Varanda
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