domingo, 23 de outubro de 2016

O pai

A minha infância foi passada no aconchego daquele cantinho da Gardunha. À frente da nossa casa típica de granito, os leirões estendiam-se pela encosta a baixo, verdejantes e férteis, regados com as águas das várias nascentes das Barrocas. A água era solta das presas, encaminhada através das regueiras até às fazendas e saciava os terrenos cultivados, que eram tão importantes para a nossa alimentação. Por baixo da casa, alojavam-se os animais domésticos; as galinhas com os seus pintos deambulavam pelo campo, à vontade, depenicando aqui e ali. A norte, ficavam os imensos pinhais; do lado nascente as barreiras cobertas de mato que na primavera se pintavam de todas as cores; a poente, os casais e ao sul a vila. No caminho por detrás da casa, era um corropio de gente todo o dia a passar. Vinham da vila, por vezes acompanhados dos seus burritos, cabras e ovelhas, em direcção às Barrocas, para amanho das terras e sustento dos animais. Às vezes, já no regresso, carregavam às costas molhos de lenha ou de comida para o gado. Nós, sempre atentos, corríamos para a quelha e eles cumprimentavam-nos e sorriam quando passavam.
Fui criada num mundo predominantemente feminino: com as minhas irmãs e mais tarde na escola. O meu irmão estava presente só algumas vezes.
A mãe cuidava de todos nós, da horta e dos animais e delegava também tarefas que já podíamos executar.
Lembro-me da primeira vez que tive consciência de ter um pai, que se encontrava ausente desde que eu nascera. As minhas irmãs e irmão andavam agitados e diziam “Hoje vem o pai!” Eu não fazia ideia quem seria e quem viria alterar a rotina e o aconchego dos nossos dias. Eu dizia que não queria, que tinha vergonha. Riam-se de mim e diziam “Esfrega a testa na parede que isso passa.” E eu cheguei a fazê-lo! Deixava-me ficar por casa, apreensiva. Os meus irmãos andavam numa correria, sempre a espreitar na esquina da casa para a quelha, até que por fim, correram pela escada de granito acima a gritar “Já lá vem o pai, já lá vem o pai!” Eu, cheia de vergonha, escondi-me atrás da porta da cozinha.
Ouvi a sua voz de homem, alegre a falar e a rir com eles. Passado algum tempo, perguntou “Então e a mais pequenita aonde é que ela está?” Eles correram à minha procura e descobriram-me. Então vi o meu pai: era alto, forte e bonito e estava muito contente por me ver. Pegou-me ao colo e beijou-me e eu gostei.
Trazia presentes: duas bonecas, tão lindas, uma tinha o cabelo preto e a outra, louro e tinham roupas vestidas muito bonitas. Também trouxe um comboio com carris e tudo, para o meu irmão e um pacote grande cheio de caramelos, que maravilha!
O pai ficou algum tempo connosco e a rotina mudou. Por vezes levava-me com ele à vila, ao lagar, quando era a altura de ir medir o azeite, ou a casa das minhas avós e das tias do Casal. Tínhamos que atravessar a ribeira que por vezes ia tão cheia que a água chegava ao cimo das passadouras. Era assustador e então ele tinha que me pegar ao colo.
Quando à noite nos sentávamos todos ao lume, ele pegava-me ao colo e contava-me histórias inventadas por ele, para me fazer rir.
Depois veio o dia da partida e ele abalou, quelha abaixo. Ficámos todos tristes e a mãe chorou muito, durante muito tempo. Ela diz que eu era muito lareta e que a remedava, talvez fosse por estar farta de a ouvir chorar, pois o meu mundo de criança ainda não alcançava a dor da perda dos que se amam.
E a vida voltou à rotina, até ao seu longínquo regresso.

TT

4 comentários:

Anônimo disse...

Bonita história familiar! Que ao mesmo tempo fala da tristeza da ausência, a que as vicissitudes da vida obrigavam as pessoas!
Os meus avós maternos eram do Casal da Fraga. Enquanto fui criança, a noite de Natal era sempre passada lá. Depois é que vínhamos para a vila. Já tinha sido dita a Missa do Galo e a fogueira já ia a meio. Algumas vezes passámos pelas passadouras com dificuldade ou tivemos mesmo que ir dar a volta pela estrada, devido à invernia.
Gostei daquela ideia do "arremedar" (verbo dantes muito usado na vila) que significa imitar outra pessoa, mas com malícia.

Sobre muitos textos aqui publicados, já temos dito que os blogues são também uma oficina da escrita. E todos vamos fazendo, ao nosso pequeno nível, as nossas apreciações. Então deixem-me espreguiçar um pouco para além destas nossas linhas para dizer que não concordo com a atribuição do prémio Nobel da Literatura de 2016 ao Bob Dylan. Acho que um ou dois livros de poemas (mesmo sendo muito bons) e um livro de ficção de duvidoso valor literário, não podem merecer um Nobel. É certo que o Dylan é um génio da música. Mas as letras do Dylan/poeta, sem o Dylan/cantor, nunca chegaria a este prémio. E isso é música, não é literatura! Então inventem também um Nobel da Música que, esse sim, o Dylan mereceria!
Ora aqui está um assunto cheio de diversidade e polémica (como queria o nosso Baldaque num comentário ao "Veterano campeão").
Abraços.
ZB

Anônimo disse...

Bela descrição rural, o vale é uma maravilha, a água da mina da Barroca onde bebi algumas vezes boa que é. As ervagens, os silvados, aos poucos foram invadindo nateiros que antigamente davam batatas, milho, feijão...
A emigração naquela época era uma aventura,os homens partiam para lugares desconhecidos ganhar a vida, deixavam mulher e filhos, o reencontro era uma alegria.Os presentes enchiam os corações de quem os recebia.
JMS

Anônimo disse...

Que bonito! Deves ter deixado outra vez a tua mãe a chorar… E até eu me comovi porque o teu relato me fez lembrar a minha mãe, a minha própria infância e muitas outras mães e muitas outras infâncias. E os homens que partiam para o fim do mundo? Uns verdadeiros heróis!
Que país o nosso, que tanto gostamos dele e tão mal nos trata em tantos momentos! Foi naquele tempo, obrigando os nossos pais a emigrar para poderem dar de comer aos filhos. E agora a História repete-se, e vemos abalar os nossos filhos à procura de cumprir os seus sonhos.
Se assim não fosse, até a nossa terra seria diferente; as ruas cheia de gente durante o ano inteiro, e não apenas durante o verão, altura em que muitos dos nossos familiares ainda voltam para matar saudades.

M. L. Ferreira

Anônimo disse...

Sentimental esta Albertina. A Ti Luz é também uma heroína porque ficou à frente da empresa familiar, durante anos, rodeada de crianças, que lhe dariam mais trabalho que ajuda e que bem que lhes conseguiu transmitir o amor de família. E isto é visível quando se juntam no verão, no Natal ou noutras épocas. São bravos até na alegria de estar juntos e é muito bonito de ver para quem os aprecia de fora. Talvez eu seja suspeito porque tenho uma relação próxima com eles, mas quando puderem ver.... reparem se não é verdade.
F. Barroso