quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

O frete da farmácia

Todos os vicentinos do meu tempo e mais velhos quando lerem esta historieta vão recordá-la certamente, fez parte da nossa geração.
A vila naqueles tempos era uma pacata povoação rural. Havia meia dúzia de casas ricas que dominavam, os homens eram contratados à jorna. Se por ventura o tempo não estivesse capaz e não pudessem trabalhar não ganhavam nada e alguns ainda gastavam o pouco pecúlio que havia emborcando copos de vinho nas tabernas. Se por um acaso jornaleiro tivesse o azar de adoecer, não havia nada que o protegesse durante a doença; não trabalhava, não ganhava.
Tempos duros, difíceis; alguns pela manhã iam para a praça na esperança que alguém os contratasse para o duro trabalho diário
A vida quotidiana regia-se pelo badalar das horas e pelo toque do sino que chamava os fiéis à igreja. Todos os dias antes de o sol nascer, o vigário celebrava uma missa, o templo na penumbra; bruxuleando somente as velas do altar sacrificial, a igreja acolhia muitas dezenas de jornaleiros, artesãos, criadas, proprietários… assistiam à missa antes de começarem as tarefas diárias
Apesar da pacatez rural, as pessoas viviam felizes, naquele tempo não havia nenhuma habitação pobre ou rica que não estivesse habitada, as ruas fervilhavam de gente, a natalidade superava os óbitos. Na Rua do Beco existiam: um artesão, senhor Fernando latoeiro; uma barbearia, senhor José Craveiro; uma padaria, senhor José Matias; uma farmácia, senhor Segurado; um café, senhora Eulália; mais tarde da tia Tomásia; uma mercearia, senhor Joaquim “boas noites”, atualmente o proprietário é o Rui Pedro; duas tabernas, a do senhor João “arrebotes” e a da senhora Maria “viúva”.  
Para termos uma ideia da população residente, no ano de 1950, segundo os censos, residiam na freguesia 4.185 habitantes. A partir desse ano, a curva inverteu-se de tal maneira que, no último censo de 2011, os moradores em toda a freguesia eram 1.259 almas. Em 61 anos a freguesia perdeu 2.926 habitantes.
Se dividirmos este número por 61 anos, faleceram ou demandaram outras paragens 48 pessoas por ano. A manter-se esta tendência, daqui por vinte e seis anos não mora ninguém na freguesia. “O diabo seja cego, surdo e mudo”.
Se não existirem leis que estanquem esta hemorragia e invertam este estado de coisas, o interior transformar-se-á num enorme deserto e teremos outra vez de volta os senhores “condes”.
Deus permita que nunca aconteça uma coisa dessas, para que as nossas aldeias e vilas não desapareçam do mapa. Oxalá!
Não vou dar continuidade a este pensamento, porque não era nem é o cerne do meu escrito, foi somente uma bucha que meti no texto.
Assim, a estrada nova que hoje faz parte do perímetro urbano da vila, naqueles tempos ficava nos arrabaldes; existia somente uma casa junto à paragem das camionetas e que há muitos anos pertence à família do senhor João Ventura.
Naquela época a malta ia para a paragem esperar a camioneta da carreira da Auto Transportes do Fundão. Lourenço era o motorista, a carreira chegava às cinco horas da tarde à vila. Este autocarro todos os dias partia do Fundão, passava cerca das sete horas da manhã na vila e terminava o seu percurso em Castelo Branco. À tarde saía às quatro horas de Castelo Branco para terminar no Fundão, por volta das seis horas.
À farmácia chegavam pessoas de toda a freguesia, a fim de adquirirem os remédios que o doutor Alves receitava, para a cura dos seus males, alguns medicamentos certamente esgotavam ou havia necessidade de se repor o stock. Todos os dias a carreira trazia uma encomenda.
Um pouco antes das cinco horas, na paragem, começavam a aparecer cachopos na esperança de poderem apanhar o frete e entregá-lo na farmácia. Os mais pequenos raramente conseguiam tal intento, o que valia era o senhor Lourenço de vez em quando dar a encomenda a quem entendia. Só assim alguns de nós conseguíamos entregá-la na farmácia.
À força, aos grandes bastava darem-nos um encontrão e era uma vez o frete da farmácia.
Era assim que chamávamos à encomenda e sabem o porquê de tanta sofreguidão para a conseguir apanhar? O farmacêutico dava dez tostões a quem a entregasse.

J.M.S

5 comentários:

Anônimo disse...

Lembro-me de haver o frete da farmácia, mas eu nunca o fiz. A essa hora andava, a maior parte das vezes, a guardar algumas cabras que o meu tinha. Aliás, os do cimo de vila invejavam os do fundo de vila porque estes podiam ir para a praça brincar, enquanto que a nós arranjavam-nos sempe que fazer, pois os animais e as terras obrigavam a muito trabalho. O meu primo Chico Santos, por exemplo, porque o pai era alfaiate, ia para a praça brincar quase cada vez que queria. Bastava pedir à mãe.
Quanto à questão da desertificação do interior é uma discussão longa. Desde logo, poderia questionar-se o facto de Portugal ser quase um retângulo (atento todo o território da península ibérica) e, mesmo assim, as populações quererem ir ainda mais o litoral!
Por outro lado, era também interessante saber qual a população atual do território correspondente ao antigo concelho de S. Vicente da Beira (à atenção do JMS e do ZT) e a população, também atual, de cada um dos concelhos que foram extintos em 1895 juntamente com o nosso (julgo que foi Penamacor e outros). Assim se podia comparar, em caso de se ter mantido o nosso concelho (como mantiveram os outros), se a população seria ou não, atualmente, idêntica. Se calhar, pouca diferença há!
Nunca ninguém conseguiu opor-se aos parasitas (condes, condessas e essa porcaria toda) que asfixiaram (até fisicamente) a própria vila - quintas dos "pinga" (Pignatelli) de um lado e quintas dos Borralhas pelo outro. Por isso é que a situação chegou a estes termos. Nem mesmo a vitória do Liberalismo em Portugal deu à vila um ar mais leve! Talvez houvesse uma maneira: era ter-lhes dado, na altura, uma boa mão de ensino, localmente, na sua própria casa e nos seus interesses mais imediatos!
Se calhar, razão tinham os de Almaceda, da Partida e de Valbom quando atacaram a câmara, por não admitirem que lhes pusessem os pés em cima! Se calhar, também, devíamo-nos ter unido a eles, contra os verdadeiros "donos disto tudo" e dar um sinal ao poder central. E talvez assim, pudéssemos ter recuperado outra vez o concelho. Era necessário que tudo isto cheirasse um pouco mais a liberdade! Mas não tivemos essa sorte! Foi preciso o 25 de Abril!... E estamos neste estado!
Abraços.
ZB

Anônimo disse...

Ainda ontem, numa aula da USALBI, o professor perguntava como é que imaginávamos a nossa terra daqui por dez anos. A não ser o Adelino, um otimista que ainda por cima tem a sorte de pertencer a uma família numerosa, toda a gente tinha expetativas muito baixas relativamente à questão.
Tenho à frente o jornal “VICENTINO” de Dezembro de 1983 que inclui um artigo do José Miguel Teodoro onde apresenta uma tabela com a evolução demográfica de todas as localidades que compõem a freguesia entre os anos de 1911 e 1980. Até 1940 os números estiveram sempre a subir (cerca de 18%); entre 1940 e 1960 já só subiram 1%, e entre 1960 e 1980 houve um decréscimo de cerca de 1617 pessoas (de 3881 passou-se para 2264). De acordo com o censos de 2011 já só éramos 1259 nessa altura. Agora até já seremos menos e, como diz o Zé Manel, o diabo seja cego, surdo e mudo, mas dentro de alguns anos nem quero imaginar como será.
Quanto ao Frete da farmácia, era mesmo assim. Os cachopitos sempre à espera de poderem ganhar umas moedas (nestes fretes, nos batizados, presentes das matações e casamentos, algum parente que vinha à terra…) para podermos gastar nas feiras ou comprar rebuçados de meio tostão. E dez tostões já davam para um bolso cheio!

M. L. Ferreira

Anônimo disse...

Respondendo ainda que muito ligeiramente às dúvidas do Zé Barroso todos sabemos que o mundo rural cada ano que passa recua mais um pouco, em contrapartida o mundo urbano cresce.
As primeiras eleições a seguir ao vinte e cinco de Abril a freguesia de São Vicente da Beira tinha inscritos nos cadernos eleitorais 1.833 eleitores; Almaceda, 1.291; Louriçal do Campo, 815; Sobral do Campo, 532; Ninho do Açor, 381. Nestas cinco freguesias estavam inscritos 4.852 eleitores...
Os censos de 2011 mostram-nos uma realidade nua e crua da diminuição populacional nestas freguesias assim:- Residiam na freguesia de São Vicente da Beira, 1.259 habitantes. Almaceda, 677 moradores; Louriçal do Campo, 636 almas; Ninho do Açor, 380 habitantes e Sobral do Campo, 366 moradores.
Totalizam:-3.318 fregueses.

Na mesma altura a população residente no concelho de
Vila Velha de Ródão era de 3.521 habitantes
Belmonte:-6.859
Vila de Rei:-3.452
Em 1895 foram estes os quatro concelhos suprimidos. Dois anos depois Vila de Rei, Belmonte, e Vila Velha de Ródão foram restaurados
A vila sempre foi muito conservadora politicamente falando, partidária do miguelismo. Olhem; no dia 22 de Outubro do ano 1837 por volta das duas da manhã a vila foi "assaltada" por um grupo de guerrilheiros partidários de D. Miguel, o objectivo era ocuparem a câmara onde queriam implantar o regime absolutista. Na manhã seguinte imperava em São Vicente o miguelismo, nessa altura já D. Miguel estaria em Viena de Áustria. No dia 1 de Junho de 1834 embarcou em Sines e foi para a cidade de Génova... Vejam só, na política há os que ganham e os que perdem. A vila perdeu.
J.M.S

Anônimo disse...

Por outro lado, na capital, no passado domingo, dia soturno de inverno, no CCColombo, uma cidade futurista em miniatura, as ruas completamente apinhadas de gente. Os grupos de jovens alegres, como em todas as gerações; os mais velhos, com o ar meu perdido e vazio a olhar as montras com centenas de modelos de roupas, de livros, de gadget’s, centenas de CD’s para ouvir e a vida sempre a fugir. São propostas do admirável mundo novo que o capitalismo nos oferece. E a maioria daquela gente não tem paciência nem tempo para ler, não tem dinheiro para comprar roupas sofisticadas, nem conhecimentos para utilizar toda aquela parafernália da gadget’s. Paradoxos da grande cidade…
FB

José Teodoro Prata disse...

Esperei prudentemente, embora com desejo de escrever que o território do nosso antigo concelho, já amputado de Tinalhas e Freixial, mas com Almaceda, era maior do que qualquer um dos outros.
Não é de admirar que o censo de 2011 prove que estava enganado: o dinheiro que estes concelhos receberam foram tantos milhões mais, desde 1895 até hoje, do que o recebido pelas freguesias referidas pelo José Manuel, que deu para segurar mais população. Pelo dinheiro recebido, a diferença deveria ser muitíssimo maior.
Continuo com a posição já aqui manifestada noutra ocasião: estes concelhos minúsculos (o país está cheio deles) não têm razão de existir e a sua existência prova a forma leviana como a classe política gere os dinheiros públicos, nossos. É verdade que são benéficos para alguns, mas basicamente servem clientelas político-partidárias locais.

Como introdução, o José Manel tem sempre umas tiradas bairristas e religiosas. Desta vez ultrapassou-se a si próprio: num mesmo parágrafo, convoca o deus dos cristãos e o deus dos muçulmanos para juntos acudirem à nossa desertificação humana (Deus queira.. e Oxalá).

Mas está-se bem aqui, como diria o Chico.