quinta-feira, 26 de outubro de 2017

O nosso património

As comunidades não podem dissociar-se do passado, mas também não podem e não devem parar no tempo. Quero dizer com isto que a vida é como uma moeda, tem duas faces.
O homem maduro, depois de obter a sua reforma. deve aproveitar o tempo que ainda tem de vida para transmitir aos mais novos valores e conhecimentos que foi adquirindo ao longo do tempo. A memória de alguém considerado idoso nunca pode ser igual à memória de uma pessoa jovem. Os neurónios vão-se perdendo, a memorização é diferente, enquanto alguém jovem apreende algo com uma facilidade tremenda, a pessoa idosa muitas vezes vê-se e deseja-se para captar determinadas matérias, nomeadamente disciplinas que requeiram concentração, aprendizagem.
Sendo assim, suponho que cada geração terá muito para oferecer à outra. As gerações mais antigas podem e devem transmitir ensinamentos vividos e experienciados à medida que os anos foram passando. Ensinar aos mais novos saberes que de outra maneira se perderão para sempre, a partir do momento em que se corte o fio ténue que nos une à vida.
Entre a vida e a morte, o espaço que medeia estes dois momentos é tão pequenino, tão curto, basta um esticãozito, o fio parte-se e tudo termina para este mundo.
Sou daqueles que acredita que não morreremos. O corpo, sim; o espírito jamais, pertence ao Criador.
Já estou a entrar por um caminho que não é aquele que quero apanhar hoje; portanto… Adiante.
Idoso ou não; todos temos muito que aprender uns com os outros, mas cada geração tem o seu tempo.
Este pequeno intróito tem a ver com o tema que vou explanar.
Estava eu sentado num dos cais da nossa praça a ouvir o som da aparelhagem cujos altifalantes iam debitando decibéis incomodativos, (música de arreda cão, para mim), quando ao meu lado se sentou uma simpática idosa. Depressa veio à baila o passado.
Tínhamos que falar um tom acima do normal, o barulho ensurdecedor dos altifalantes…
- Olha Zé, uma parte da minha casa ainda está tal e qual como era no tempo do Hipólito Raposo, os sobrados e os tectos em castanho, são daquele tempo…
- Qualquer dia, vou lá, se me deixar, claro.
- Quando quiseres.
José Hipólito Vaz Raposo nasceu no dia 12 de Fevereiro 1885, numa casa situada na rua Velha, nº 47, na vila de São Vicente da Beira; não teve uma vida muito longa pois, no dia 26 Agosto do ano 1953, faleceu em Lisboa; tinha 68 anos.
Era filho de João Hipólito Vaz Raposo e Maria Adelaide Gama. Aos 17 anos entrou para o seminário da Guarda, “influência do seu irmão padre Domingos Vaz Raposo com certeza”.
Na Guarda permaneceu dois anos, 1902/1904; depois entrou no liceu de Castelo Branco e mais tarde partiu para Coimbra, onde se formou em Direito, 1911.
Não me vou alongar mais com a sua biografia, o José Teodoro e outros já a esmiuçaram amiudadamente.
No passado mês de Setembro, desci a rua da Cruz, bati à porta da senhora Maria de Jesus, que amavelmente me convidou a entrar. Ao fundo das escadas encontra-se uma porta que dá acesso a três lojas onde guarda utensílios de lavoura, pipos, tanque para o vinho… Subi, ao cimo das escadas, à esquerda, entro numa sala repleta de recordações da sua família: quadros, fotografias dos antepassados… O que imediatamente me chamou a atenção foi um Menino Jesus de Malines!
A senhora Maria de Jesus falava, explicava e apontava.
- Olha aqui ó Zé, para esta moldura: São José, Menino Jesus e o São Roque; aquele quadro além é a Senhora dos Milagres, tem os milagres em toda a volta”.
- E este Menino Jesus, perguntei.
- Foi-me dado pela minha madrinha e tia Maria de Jesus; era irmã da minha mãe, viveu 40 anos em Lisboa. Olha, tem dá réis e tudo.
A sala está igual ao que era no tempo do senhor João Raposo, o pai de Hipólito Raposo.
- É a sala de jantar, nunca cá comi nenhum jantar ou almoço.
- Quer dizer, que aqui comeu muitas vezes Hipólito Raposo.
- Com certeza.
- Estas portas que dão acesso aos quartos, são as portas originais?
- Isto não tinha portas; as cortinas fui eu que as pus. O sobrado e o tecto são todos de castanho.
Entrei nos quartos.
- Terá sido neste quarto que nasceu Hipólito Raposo, é o maior. - diz a senhora Maria de Jesus.
Fotografei e seguimos.
Antes de sairmos da sala, apontou para as portas de uma janela que dá para a rua.
- Ó Zé, repara nestas portas, ainda entram num buraco que as segura, as da outra janela já são modernas.
Ao entrarmos no corredor disse-me: - Dava acesso à cozinha, a minha tia tapou a porta, antes via-se logo a porta da rua.
- Esta é a cama onde morreu a minha tia Resgate (catequista, zeladora da igreja).
Na parede de outro aposento, um relógio de sala me chamou a atenção: - É muito antigo!
- Se é, se é… já disse ao meu neto para mo por aqui mais baixo para lhe dar corda; tem um defeito, quando começa a dar horas, quando dá uma, temos que contar logo duas, parece que está a tocar ao fogo; bam…bam…
- Daqui para lá era à telha vã, e não era tão larga, tinha uma porta para o quintal que já era velha, foi o meu homem que aumentou isto, não tinha aquele quarto que é o meu. Aqui havia uma porta, repara nos buracos e no rasgo, era para porem a tranca. O meu homem é que a tirou, porque era muito velha, aqui era tudo à telha vã, era aonde a minha avó tinha o tear; era tecedeira, esta sala não era tão larga, era mais estreita. A minha avó chamava-se Josefa.
Entrámos na cozinha, imediatamente a senhora Maria de Jesus apontando para o chão dizendo.
- O lar era aqui no meio, o Zé companhia é que fez além a chaminé, o meu homem alargou para aqui a cozinha. As pedras do lar eram iguais àquelas (ardosias que se encontram na soleira da antiga porta) Olha, aqui está a dita porta que dava acesso ao corredor…
Entrei no seu quarto, um cruxificado e várias imagens em cima da cómoda.
- Uma vez cai agarrei-me à comoda, caíram os santos todos que estão em cima do móvel; este Senhor que está além é muito antigo, ficou-me em cima do colo atravessado, intacto; foi um milagre do Senhor Santo Cristo.
A tarde já ia adiantada, tinha que ir regar as couves. Agradeci à Senhora Maria de Jesus toda a atenção que me dispensou.
Com os seus noventa anos, continua a ter uma memória invejável. Saí mais rico, porque estive no lugar onde nasceu e viveu durante a sua meninice o escritor vicentino doutor José Hipólito Vaz Raposo.

Corredor; ao fundo existiu uma porta que dava acesso à cozinha.
                             

A porta da janela é do tempo do doutor Hipólito Raposo, diz a senhora Maria de Jesus.

        
Um batente entra num buraco na parte superior; estas portas não tinham ferragens.


 Tecto da sala todo em castanho


Cabides


Quarto onde terá nascido Hipólito Raposo.
O sobrado é todo de castanho, diz a senhora Maria de Jesus.

                                                                          
Menino Jesus de Malines 

J.M.S

7 comentários:

Anônimo disse...

Sou suspeita, porque tenho uma ligação especial com a Ti Jú, desde muito cedo, porque foi ela que me salvou de morrer à fome: a minha mãe ficou muito doente quando eu nasci e, como ela tinha tido a Maria do Carmo na mesma altura, todos os dias me levavam a casa dela para me dar de mamar. Por isso considero-a quase uma segunda mãe e tenho por ela um grande carinho e admiração.
A Ti Jú é uma enciclopédia sobre quase tudo e todos da nossa terra; e, como ainda por cima é de uma grande generosidade, uma ou duas horas de conversa passam a correr e sabem-nos a pouco.
A casa é de facto extraordinária, e cada cantinho, objeto ou fotografia tem uma história que atravessa já algumas gerações da família. Acho que deve ser por isto que o Zé Manel saiu da casa dela mais rico, e não por ter estado na casa onde nasceu o Hipólito Raposo.

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

Trabalho muito importante, este do Zé Manel.
Há um mês que ando a ler notícias das jornadas do património, um pouco por todo o país, e nós, que deixámos de as realizar, involuntariamente aderimos a essa grande iniciativa cultural europeia, através deste artigo.

Anônimo disse...

Gostei. Deve haver ainda muitas casas com a arquitetura antiga (mesmo no interior) e em cuja construção se usavam materiais que duravam imenso. Caso do castanho que, ao enxuto, dura vidas! É um tema interessante para publicar.
Na minha casa ainda existe uma janela que é segura com uma tranca. Num dos lados tem um buraco escavado na ombreira de granito onde se mete uma ponta da tranca e no outro, do lado oposto, uma pequena rampa (o rasgo, que é em segmento circular, vai-se aprofundando). A rampa termina numa parte mais funda. É lá que fica a outra extremidade da tranca (cujo comprimento é superior ao das ombreiras), mas em que a passagem é possível devido à rampa. A curva em rampa é, pois, o segredo desta engenhosa forma de fechar uma porta, por dentro, com muita segurança e sem qualquer chave metálica! Caso se faça força na porta, a tranca bate na parede interna da curva da rampa.
Abraços.
ZB

Anônimo disse...

Conheço uma pessoa que tem um livro em latim (Breviário) (logo, padre), autografado (assinado) pelo seu proprietário, parece-me que com uma daquelas canetas de aparo de metal, para molhar no tinteiro (que ainda usei na escola) (ou mesmo com uma pena de ave?) e que diz: "Domingos Martinho Raposo, S. Vicente da Beira, 1890". Pela data (e nome diferente) não deve ser o mesmo referido no texto. Quem será?.
Abraços.
ZB

Jaime da Gama disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Jaime da Gama disse...

ZB, referente ao seu comentário, o Domingos Martinho Raposo, sim estamos a falar do mesmo Padre Domingos Martinho Vaz Raposo, pois este mesmo nasceu a 11 de novembro de 1873 na rua velha nº 47 filho de João Hypolito Rapozo e Maria Adelaide Gama, foi batizado a 26 de novembro do mesmo ano e o seu padrinho foi Domingos Joze Roballo, proprietário e morador em Castelo Branco e talvez por ter nascido no dia de São Martinho o seu nome ficou Domingo Martinho Vaz Raposo. Foi representado por procuração no dia do seu batizado o Reverendo Manoel Pais de Loureiro, morador nesta Vila de São Vicente.
Mais uma NOTA: O Dr. Hipólito Raposo nasceu à uma da madrugada do dia 13 de fevereiro de 1885.

Anônimo disse...

Obrigado, Jaime.
É importante sabermos a nossa história!
Cumprimentos.
ZB