quinta-feira, 21 de novembro de 2019

José Mário Branco, 1942-2019

«Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe. No fundo deste mar encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a chegar do lado de lá para ir convosco: tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos, o meu canto e a palavra. O meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram. A minha arte é estar aqui, convosco, e ser-vos alimento e companhia, na viagem para estar aqui de vez.
Sou português, pequeno-burguês de origem. Filho de professores primários. Artista de variedades. Compositor popular. Aprendiz de feiticeiro. Faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto: muito mais vivo que morto. Contai com isto de mim para cantar, e para o resto.»

Travessia do Deserto, do album Ser Solidário:

Que caminho tão longo
Que viagem tão comprida
Que deserto tão grande
Sem fronteira nem medida
Águas do pensamento
Vinde regar o sustento
Da minha vida
Este peso calado
Queima o sol por trás do monte
Queima o tempo parado
Queima o rio com a ponte
Águas dos meus cansaços
Semeai os meus passos
Como uma fonte
Ai que sede tão funda
Ai que fome tão antiga
Quantas noites se perdem
No amor de cada espiga
Ventre calmo da terra
Leva-me na tua guerra
Se és minha amiga
Que caminho tão longo
Que viagem tão comprida
Que deserto tão grande
Sem fronteira nem medida
Águas do pensamento
Vinde regar o sustento
Da minha vida
Este peso calado
Queima o

José Teodoro Prata

2 comentários:

M. L. Ferreira disse...

É um lugar comum, mas é verdade que há pessoas que, pela obra que deixam à humanidade, nunca morrem verdadeiramente. No caso do José Mário Branco, como no de Adriano Correia de Oliveira, Zé Afonso e vários outros, o nosso contributo para a perpetuação da sua memória é continuarmos a ouvir as suas músicas e permanecermos inquietos e vigilantes ao que se passa à nossa volta, seguindo o exemplo que nos deram.

José Barroso disse...

A Libânia fez-me lembrar aqueles famosos versos dos Lusíadas:
"E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando,"... etc.
É um facto que, esses, de certa forma, nunca morrem; pelo menos, enquanto houver alguém que deles não se esqueça, bastando, neste caso, citar um verso ou trautear uma canção!
A propósito do José Mário Branco, li justamente, hoje, numa revista, que ele morreu desiludido com o PCP e com o BE (com cujos ideários políticos - teoricamente - mais se identificaria). Ora, um espírito inquieto e nunca satisfeito (isto é, um poeta!) não poderia nunca sentir-se satisfeito com um concreto projecto político que nunca é perfeito e acabado, como sabemos. A história recente da Europa bem o demonstra. Portanto, o facto de ter essa desilusão só lhe fica bem, ainda que isso pareça contraditório. É isso que faz dele um autor e cantor romântico. E ele, com certeza, que não desdenharia que no seu epitáfio possam constar estes atributos!
Abraços, hã!
JB