quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Gente e histórias da nossa terra

Joaquim Rodrigues Marques

O tio Joaquim nasceu em São Vicente da Beira no dia 28 de junho de 1853. Era filho de António Rodrigues Marques e Maria José Raposa.
Eram muitos filhos em casa, mas o pai, homem humilde, mas de grande sabedoria, mandou-os todos à escola. «Não há melhor ferramenta que saber ler, escrever e fazer contas.» - dizia muitas vezes. Mesmo assim, pela vida fora, não se livrou do cabo da enxada e do trabalho à jorna, sorte de quem não tinha terras suas para sustentar a família.
Casou com Josefa Augusta, uma mulher trabalhadora, que herdara da mãe a arte do governo da casa e do tear, e tiveram nove filhos. O primeiro foi um menino, todo desenxovalhado; puseram-lhe o nome do avô. Seguiram-se sete raparigas que se fizeram todas mulher; por último, outro rapaz; esperto que só visto, mas quis Nosso Senhor levá-lo ainda criança, mesmo à justa de receber os Sacramentos da Santa Madre Igreja.
Foi sempre um homem rijo, o tio Joaquim. Nunca perdia um dia, se lho davam a ganhar, quer fosse na ceifa, na azeitona ou a cavar. E quando não era à jorna, era nos bocaditos que tinha herdado do pai ou comprado com o pouco que ia apurando. Com a ajuda da mulher e dos filhos, era lá que colhia um pouco de tudo para o governo da casa.  
Viveu num tempo de grandes acontecimentos e, a propósito de tudo aquilo que tinha visto e ouvido contar, tecia um enredo. Os netos, pelavam-se por o ouvir. Sempre que os pais davam ordem, fosse de inverno ou de verão, mal acabavam a ceia abalavam de casa para irem seroar com ele. Para além das passas e das castanhas, tinha sempre uma história.
Eram quase sempre histórias de arrepiar, as que contava: Vidas de santos mártires; bandidos que saltavam ao caminho de quem passava, e roubavam e matavam quem lhes fizesse frente; almas penadas que atormentavam quem cá ficava, por promessas por cumprir; bruxas que deitavam maus olhados a quem se cruzasse com elas; trovoadas com raios que deixavam num tição rebanhos inteiros e pastores; lobos que desciam da serra, no tempo das neves, e até gente comiam; moléstias que vinham de repente (lembrava-se bem das bexigas, era ainda criança, e da pneumónica, já entrado nos anos. Casa onde entrassem, levavam tudo a eito. O dobrar de um finado misturava-se com o do outro a seguir, e nem terra sagrada já havia para enterrar tanta gente. Dizia-se até que, por serem males tão pegadiços, se enterravam os mortos à pressa e, por mais que uma vez, se ouviu gente já amortalhada a gemer por uma pinga d’água). Eles, mesmo que já soubessem de cor essas histórias, ouviam-nas com olhos arregalados de susto, como se fosse a primeira vez; e tinham os mesmos arrepios quando voltavam para casa, à luz da lanterna, e dobravam uma certa esquina onde se lhes afiguravam vultos negros à espreita, ou passavam à porta da casa onde morara uma costureira, morta há que tempos, mas de onde saía ainda o som cadenciado do pedal da máquina de costura.    
Contava também uma, passada com ele, que nunca mais tinha esquecido. Era uma manhã fria e enevoada de janeiro, a Vila quase deserta, que em tempo de azeitona só ficavam em casa sapateiros, alfaiates, ferreiros e pouco mais que algum porte tivesse. Calhou também ele estar de cama por causa duns febrões de três dias. De manhã bem fez por se pôr de pé, quando ouviu o búzio a chamar, mas nem acolheu as pernas fora da cama.
Naquele tempo morava numa casa na rua Nicolau Veloso, mesmo na esquina com a Manuel Mendes, e, quando foi a meio da manhã, começou a ouvir um serrabulho que parecia o fim do mundo. Veio-lhe logo à ideia uma história que o avô contava, que a ouvira já do avô dele, quando uma corja de castelhanos entrou Vila adentro, roubou tudo o que havia para roubar, matou e prendeu quem quis e, ao fim, atearam fogo ao que não puderam levar. Muitas casas ficaram reduzidas a cinzas, até a Casa da Câmara. Inteira, só escapou a Igreja da Misericórdia, mesmo ali ao lado. «Milagre do Senhor Santo Cristo!» - clamava o povo, e dizem que foi a partir daí que começaram a fazer-Lhe a festa, todos os anos, no mês de setembro (ou terá sido por causa da nuvem de gafanhotos que desceu sobre o renovo e, não fossem as preces ao Santo Cristo, tinha deitado a perder toda a colheita desse ano?).
Não era homem de ter medo, o tio Joaquim, mas foi com alguma cautela, e a muito custo, que saiu da cama e foi assomar ao postigo: até metia medo, tal era o mar de gente a correr rua abaixo, tudo com paus, forquilhas, foições e machadas no ar, aos gritos: «Fujam que vem aí a tropa!» Quando se meteu para dentro encarou com um desconhecido, mesmo ao lado dele. Era um velho, pr’aí a meio entre os sessenta e os setenta, de pernas bambas amparadas a um pau, enfiado num gabão que o cobria da cabeça aos pés. Arfava que até parecia que lhe saltavam os bofes p’la boca. A porta estava sempre no trinco e, com a algazarra, nem tinha dado conta d’ele entrar.
- O qu’é que vosmecê quer?
- Deixe-me aqui descansar um bocado, que nem me tenho nas pernas.
O tio Joaquim, ainda mal afeito aos acontecimentos, nem sabia o que dizer, mas lá se resolveu. Apontou-lhe o mocho com o queixo «assente-se aí», e enfiou-se a ele debaixo do fato, que já estava a bater o dente.
Mais calmo, o velho pôs-se a contar: Era de Almaceda, e para aqueles lados da serra andava o povo preado por causa da cobrança das contribuições, aumentadas para mais do dobro. Nas tabernas e à saída da missa (o padre sempre a louvar a ordem e a obediência ao rei e às outras autoridades), não se falava noutra coisa. Era demais, desta vez! Ainda por cima gostavam de saber para onde é que ia o dinheiro de tanto imposto, que para proveito do povo não era: só se lembravam deles quando era para cobrar. Era mas é para encher o bandulho dos que não faziam nada, mas viviam à tripa forra - o rei, lá por Lisboa, e os condes e viscondes, por cá.
Como é que se faz, como é que deixa de se fazer… Cada cabeça sua sentença. Diziam uns que não se pagava, e pronto; que fossem lá os ladrões da Vila, que haviam de levar que contar. Diziam outros, a maioria, que não bastava; tinha era que se armar uma revolta e cortar o mal pela raiz. Ao fim, concordaram todos que o remédio só podia ser um: «Vai o povo até à Vila, toma-se a Câmara de assalto e queima-se a papelada toda. E ai de quem se meta à frente! Depois muda-se a gente para Castelo Branco, se for preciso, que mais mal servidos não hemos de ficar.» Assentaram o dia e passaram a palavra às terras todas das redondezas.
De madrugada, mal passava da meia-noite, Almaceda começou a encher-se de gente vinda de toda a freguesia, e marcharam por aí arriba, com as armas que tinham à mão. Quando chegaram aos Pereiros já lá estavam à espera os da Partida, do Violeiro, do Mourelo, do Tripeiro e da Paradanta. Para cima de mil homens, novos e velhos. À frente ia o Almeida Afonso, um ricalhaço de Valbom que era quem dava as ordens. À entrada da Vila começaram a rufar tambores e tudo a bradar «Morte aos ladrões! Abaixo as contribuições!» Assim que chegaram à Praça, uns, mais valentes, meteram ombros à porta da Câmara e deitaram-na abaixo. Depois foram-se à papelada, atiraram com tudo cá para fora e chegaram-lhe lume. Uma fogueira que só visto! Dabanão, começou-se a ouvir o búzio e alguém aos gritos, que vinha lá a tropa, e pôs-se tudo a correr, rua abaixo. Ninguém queria ser apanhado e metido na enxovia, que ainda havia a azeitona para acabar de colher.
- E vosmecê, c’a idade que tem, com’é que se meteu num trabalho destes?
- Inté parecia mal fequer na cama. Já estou velho, mas não sou intrevado e inda sou homem com’ós outros. Nem que fosse a últema coisa que fezesse na vida, tinha que vir. Os de cá da Vila chamam-nos charnecos, como se fossem mais que a gente, mas tomaram muitos! Em brio e união, ninguém nos chega aos calcanhares. Quando os sinos tocam a rebate, seja pró que for, acode o povo todo, novo e velho; não é com’em muito lado, cada um por si… Bom, e agora vou andando, que, não tarda, é noite.
 - Beba um copito d’aguardente. Tem ali a garrafa ao despor, não se acanhe. Olhe qu’é da boa!
Meteu a garrafa à boca, bebeu um golo e ao fim até estalou os beiços.
- Ó diabo, esta aquece!
- Beba mai um golo.
- Bem-haja, mas vou-me indo. Até outro dia! E perdoe lá aquelas palavras d’ há pouco. A gente sabe qu’em todo o lado há bom e há mau, que, ao fim e ao cabo, somos todos do mesmo sangue…
- Vá com Deus!

Teve alguns desgostos, o tio Joaquim. Para além da morte do filho mais novo, e depois da mulher, uma das coisas que mais lhe tinha custado na vida foi não poder ir ao casamento da filha mais velha, a sua Maria de Jesus, que tinha ido servir para Lisboa e por lá arranjou namoro. O pai bem lhe escreveu a pedir que viesse casar-se à terra, mas ela teimou que fosse ele lá.
Não foi difícil convencê-lo, que era um sonho já antigo que tinha, ir a Lisboa. Queria ver o mar que tinha ouvido dizer que era tão grande que não se lhe via o fim. E também queria ver se, como se dizia, as ruas à noite eram tão alumiadas que até aparecia sempre dia. E amontar no comboio, que só o tinha visto de longe, e era assim como uma bicha a deitar fumo como a chaminé das fornalhas dos carvoeiros.
Uns tempos antes da data do casamento mandou fazer umas botas novas no sapateiro mais fino da Vila. Tirou também as medidas para um fato completo, com colete e tudo para meter o relógio de bolso. Nas vésperas preparou a bilha de azeite e um cesto, o maior que tinha, com tudo o que havia de melhor em casa para levar à filha. No dia marcado saiu de casa de madrugada, tão excitado que parecia uma criança a antecipar uma aventura. Mas quando chegou a Castelo Branco e viu uma lambança que ninguém se entendia, ficou com o coração nas mãos. Quando lhe disseram que não havia comboios, que estavam em greve, até sentiu um frio na alma. Estava-se nas entradas de 1914, e o tio Joaquim já tinha ouvido falar em greves, por alto, mas lá longe. Por modos, também já cá tinham chegado, e logo agora, nas vésperas do casamento da filha...
De regresso à terra, quase lhe vieram as lágrimas aos olhos, mas, pensando bem, não fora o transtorno que esta greve lhe dava, até louvava a coragem daquela gente, que era uma vergonha a miséria em que o povo vivia. Ele era muito religioso, não faltava a uma missa nem à desobriga na Quaresma, mas tinha as suas dúvidas sobre algumas passagens dos Evangelhos. Não acreditava que Deus, um Ser tão bom e tão justo, estivesse de acordo com o estado do mundo: uns poucos a viver à grande, com terras que a vista não alcançava, e a maioria, com jornas que começavam com a aurora e se espichavam para lá do sol-posto, mal tinham com que encher a barriga aos filhos. Quando acabaram com a monarquia, os republicanos bem se tinham fartado de fazer promessas; houve esperança que as coisas mudassem para melhor, mas continuava tudo na mesma. Até que enfim, que o povo estava a abrir os olhos e a levantar-se contra a escravidão em que sempre tinha vivido.

A melhor coisa que inventaram, o comboio! Por onde quer que passasse, quem o via ao longe sonhava com mundos maiores. Mundos que não acabassem, para lá das serras que se avistavam ao longe. O pior foi quando o ladrão começou a levar para Lisboa a mocidade das nossas terras, despejando-a depois em navios que a levava para a guerra, lá longe; primeiro para África e depois para a França. Só da freguesia tinham ido uma tormenta deles. Não houve família de onde não tivesse abalado alguém, fosse filho ou parente chegado. Um pranto que era o fim do mundo, quando abalavam! Na igreja, as velas estavam sempre a arder, e as novenas e ladainhas eram umas a seguir às outras. Pelo que contaram, morreu por lá tanto soldado que nem davam vazão a enterrá-los todos. Deve ter sido milagre do Senhor Santo Cristo e da Nossa Senhora, que tinha aparecido em Fátima, que, dos nossos, só por lá ficaram dois. Quando regressaram foi uma alegria tão grande que os sinos não se calavam, horas a fio a badalar a festa!   

Para cima dos oitenta, se o tempo deixava, o tio Joaquim ainda saía todos os dias até à fazenda, que mais não fosse para dar campo à moucha, sempre a balir na corte: nascida e criada na serra, nunca se avezara às quatro paredes e ao lusco-fusco da loja. À noite, à luz da candeia ou da ala das cavacas, lia tudo o que lhe chegasse à mão, fossem as páginas de algum jornal já atrasado «para saber as novidades» - dizia ele, alguma pagela, um livro de orações ou vidas de santos. E quando morreu, aos 87 anos, dizem que ainda nem precisava de óculos para ler!

M. L. Ferreira

5 comentários:

Jaime da Gama disse...

O tio Joaquim era descendente da família Lobo, pois o pai dele (António Rodrigues Marques) quando nasceu a 31 de agosto de 1814 no registo de baptismo era filho de Manoel Lobo e Maria do Carmo, de São Vicente da Beira
Avós paternos: Joze Rodrigues Marques e Izabel Matheus, de São Vicente da Beira
Avós maternos: Joze Duarte Galecho e Pulqueira Maria, de São Vicente da Beira. mas o Apelido Lobo nesta linhagem não perdurou.

José Teodoro Prata disse...

Das guerras, temos normalmente o ponto de vista de apenas um dos lados. Por exemplo, da II Guerra Mundial sabemos a História contada pelos Aliados, mas só raramente aparece informação sobre o dia a dia dos alemães (o livro A Rapariga que roubava livros, não o filme, é um bom retrato da Alemanha durante a guerra).
No caso da revolta dos papéis, assim designada pela documentação oficial de então, sabemos do lado dos "vencidos", mas pouco conhecemos do lado dos "vencedores". Este trecho em que se relata o caso do charneco que se acolheu em casa do ti Joaquim é um naco saboroso de prosa.

Jaime da Gama disse...

Tudo tem uma razão de ser: a personagem principal desta narrativa era primo direito do pai do escritor José Hipólito Raposo e da avó paterna do Sr. Eduardo Cardoso (Augusta Hipólito de Jesus). Hipólito Raposo nasceu numa casa na rua Velha nº 47 que pertence hoje à Sra. Maria de Jesus dos Santos (do NITA) que era neta do Tio Joaquim. A mãe de Joaquim Rodrigues Marques, "Maria José Raposo" era irmã da avó do Dr. Hipólito Raposo (Anna Raposo) e irmã de Catharina Emillia Raposo (mãe da Tia Maria Neta). Bisavô de João Paulino, Mila e Zezinha filhas do Sr. João da Resgate e de Maria do Carmo dos Santos Candeias filha da sra Maria de Jesus e do Sr. João Candeias(NITA) casada com José Nicolau...

José Barroso disse...

Como sempre, gosto de ler tudo isto (texto principal e comentários)! Por várias razões: pela história propriamente dita, pela escrita, pelas informações acerca das raízes familiares do protagonista (que vêm até aos nossos dias); e, por último, pelo contexto em que decorre este episódio, que retrata uma época de muito má memória para Portugal e, em particular, para S. Vicente da Beira.
As difíceis condições de vida do povo português no início do séc XX com a instabilidade política entre 1910 e 1926 (causa principal para o aparecimento da Ditadura Militar e de Salazar), são patentes. E sabe-se que nas democracias, em tempo de paz, quando começa a haver desmandos, os apologistas da ditadura estão à espreita... É preciso, pois, que os políticos tenham juízo! E isto tem que ser levado muito a sério sob pena da total descredibilização das instituições democráticas.
Mas já antes, com a monarquia constitucional, Portugal andava mal! É o tempo em que se dá (creio eu) o episódio da "queima dos papéis" na Câmara de S. Vicente da Beira, pouco antes de 1895, ano em que formalmente se declara extinto o nosso concelho. E a razão de tudo isso, pelo que se sabe, também foram os desmandos da elite vicentina! Haveria, porém que apurar melhor os factos históricos, porque como diz o ZT, a História é quase sempre a história dos vencedores; logo, muitas vezes, não corresponderá, certamente, à realidade.
Porém, muito provavelmente, os munícipes do nosso concelho tinham bastantes motivos de censura no que concerne à dureza dos impostos (embora a quebra do elo, não sei porquê, se viesse a verificar em Almaceda e Valbom, etc). Pois, a própria história aqui contada, sugere uma grande mobilização de gente; e isso só fazia sentido se houvesse um grande descontentamento! Nós sabemos como era a gente do poder naquela altura! Só, pois, as provas em contrário, caso seja possível obtê-las, poderão levar uma outra leitura dos acontecimentos.
De uma maneira ou de outra, o que se sabe também é que a elite da Vila, mais uma vez, como tem sucedido ao longo dos tempos, falhou. E falhou ao ponto de o poder central se ver constrangido (creio eu) a acabar com o concelho! O concelho, com tamanha agitação, teria ficado ingovernável...?! Mas não foi só a elite, foi também o povo; fomos nós!
Abraços, hã!
JB


Acacio Peres disse...

Para aqueles que pretendem analisar outra fonte:
- https://valbom-portugal.blogspot.com/2008/06/revolta-dos-gabes-2.html
- https://valbom-portugal.blogspot.com/2008/06/revolta-dos-gabes-3.html
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Acácio Peres
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