sábado, 30 de janeiro de 2021

A festa de aniversário

 Era novembro. O dia acordou frio, mas tornou-se mais ameno, à medida que o sol ia subindo no céu. Uma boa ajuda para que a festa corresse bem.

Deram-lhe banho logo de manhã. Agora, despida do pudor que carregara desde menina, já não protestava quando lhe tiravam a roupa e metiam na banheira, tinha-lhe até tomado gosto; mas ao princípio, quando a filha mais velha a trouxe para casa dela, depois da morte do marido, era um castigo, agarrada à combinação:

 - Há lá precisão duma pessoa ficar toda encarrapata para se lavar? Foi preciso chegar a velha para me verem nestes preparos. Até é pecado! É por isto que o mundo anda como anda, que Deus Nosso Senhor não dorme…

Depois vestiram-lhe a melhor saia, preta desde há muitos anos, e a blusa, também preta com uma mosquinha branca. Fizeram-lhe a trança, já toda branquinha e muito minguada, uma sombra do que tinha sido, e enrolaram-lha na nuca, presa com ganchos, como usara desde nova. E sentaram-na no sofá da sala, onde ultimamente passava a maior parte das horas, de terço na mão, muitas vezes a dormitar. Daí a pouco viram-na de pé, a olhar à roda:

 -Precisa de alguma coisa, minha mãe? – Perguntou-lhe a filha da porta da cozinha.

 - Falta-me o avental. Onde é que ele se meteu?

 - Hoje é dia de festa, minha mãe! Fica mais bonita assim, sem avental.

 - É dia de festa porquê?

 - Então não é o dia dos seus anos? Noventa! Que conta tão linda! Já lhe cantei os parabéns quando a fui levantar. Não se lembra? Vai ser uma grande festa!  

 - Ah, não me lembrava. Esta minha cabeça já anda muito esquecida. Mas põe-me o avental, que não me sei ver sem ele. E traz-me também o terço e um lenço, que já tenho o nariz a pingar.

Dai a pouco chegou outra das filhas, a que vivia mais perto.

 - Dê cá um beijinho minha mãe. Muitos parabéns!

 - Parabéns porquê?

Tiraram tudo da sala de jantar, estenderam a mesa elástica e aumentaram-na com a da cozinha. Cabiam à vontade umas vinte pessoas sentadas; os mais novos comiam em pé.

Ao longo da manhã foram chegando os que viviam mais longe; alguns vieram até de Lisboa. Dos nove filhos só não estava o primeiro, que morreu à nascença, e mais outros dois, que morreram antes de chegar a velhos, levados por um mal ruim. E vieram também muitos dos mais de trinta netos, quase todos já casados e com filhos.

Chegaram alegres, ruidosos, aos abraços e beijos uns aos outros, depois de terem felicitado a aniversariante e oferecido os presentes que traziam. Alguns já não se viam desde o enterro do avô, há três anos. A vida nem sempre é o que a gente quer, e chega uma altura em que as famílias já quase só se encontram nos funerais. Mas desta vez não era o caso. Nem toda a gente se pode gabar de festejar os noventa anos duma mãe ou duma avó, e não queriam perder a oportunidade de se juntarem todos à roda dela; quem sabe se seria a última vez, que a saúde e a cabeça viam-se fugir de dia para dia.

A última a chegar foi uma das netas. Trazia uma criança ainda de colo. Uma menina que mais parecia uma boneca, com um vestido de veludo verde e um grande laço na cabeça, a condizer.

 - Olhe aqui, minha avó, é a minha filha. Chama-se Mariana, como vossemecê.

 - Que cachopinha tão desenxovalhada! De quem é que ela é?

 - É minha, avó. Fez seis mesinhos.

 -- Não sabia que já te tinhas casado.

 - Então não se lembra de ter ido ao meu casamento? Ainda o avô era vivo, e foram os dois; estavam tão bonitos que até pareciam os noivos.

 - O teu avô, onde é que ele se terá metido? A casa cheia de gente e ele ainda por lá. É capaz de ter ido deitar as cabras, que não se calam na loja.

 - Se calhar foi… – respondeu a neta, sem saber se eram estas as palavras mais certas.

 

Cada um trouxe a sua especialidade culinária: salgados, doces, pratos frios, pratos quentes, bolos de toda a qualidade; e tudo com fartura. À medida que iam chegando iam compondo a mesa, que em pouco tempo se encheu com tudo o que era bom. Ao centro, o bolo de aniversário, grande, colorido, as noventa velas cor-de-rosa a toda a volta. Nem um banquete de casamento!

Sentaram a aniversariante à cabeceira da mesa e serviram-lhe um prato:

- Coma, minha mãe. Está tudo tão bom! Vai ver.

E cada um tomou também o seu lugar. Provavam um bocadinho daqui, um bocadinho dali e conversavam e riam alto, lembrando histórias antigas, muitas alegrias e algumas tristezas, fazendo promessas de novos encontros. Passado um pouco repararam que a aniversariante mal tinha tocado no que lhe tinham posto no prato.

- Então não come, minha mãe?

 - Tenho tempo de comer. Temos que esperar pelos que ainda não chegaram.

 - Mas já cá estamos todos. Não falta ninguém.

 - Ai isso é que falta. Ainda cá não vejo a minha mãe.

 - A sua mãe já morreu há tanto tempo!

 - Como é que ela morreu e ninguém me disse nada? E o que é que lhe vestiram, se eu é que lá tenho a mortalha na mala da roupa.

 - Vá comendo, minha mãe. Está tudo muito bom! Vá lá.

E ela foi comendo, devagarinho, de olhos quase fechados a saborear. De vez em quando abria-os e olhava à roda, como se lhe faltasse alguma coisa ou estivesse à espera de ver aparecer alguém que se tivesse atrasado. E o que muitos não viram foi que, à medida que lhe iam pondo comida no prato, ela ia escondendo alguns pedaços nos bolsos do avental.

 - É para os que cá faltam, que também precisam de se consolar – respondeu, quando a filha lho perguntou, depois de todos terem abalado.

 

M. L. Ferreira

4 comentários:

José Barroso disse...

Esta história só continua outras do mesmo género, a que a autora já nos habituou! Recheada de tão simples quanto bela escrita; a pôr a nu a grande carga humana da principal personagem; a descrever o ambiente de uma festa de aniversário típica de alguém que viu partir para outras paragens a maioria da família (ao contrário do que dantes acontecia, quando as pessoas envelheciam com filhos e netos a viver na mesma aldeia)!
Para além da rigorosa e inexorável realidade que é o envelhecimento e as suas consequências, a história faz ainda lembrar uma outra face da nossa sociedade: a pressa da vida moderna. Afinal, a festa, ainda que intensa, foi só e apenas por uma parte do dia! À tarde, os familiares que não moravam na terra foram saindo, voltando a idosa a ficar na casa da filha que dela cuidava. Ainda assim, tinha sorte em não ter ido logo parar ao lar! E, mais ainda, faz lembrar nesta altura, sobretudo, a infelicidade de muitos idosos, que não podem festejar da mesma forma o seu aniversário, abraçando filhos, netos e bisnetos.
Um belo quadro familiar que parece cada vez mais arredado das nossas vidas! Pelo menos por enquanto! Mas há sempre uma esperança. Vamos lá ver o que nos reserva a vacinação.
Abraços, hã!
JB

José Teodoro Prata disse...

Felizes os que chegam a esta idade e reúnem tantos em seu redor. E depois há aquela espiritualidade de esperar por quem já não está e guardar-lhes comida no bolso, para quando chegarem. É que não é simplesmente demência, mas muito mais que isso: afeto, respeito..., no mínimo.

Anônimo disse...

É pa que história tão Linda e que me toca tanto com à minha mãe que já não sai do Lar à dois anos. Fez agora 93 anos e nem poderamos festejar. Esta história tirou-me lagrimas de saudades porque antes era mesmo assim.
João Maria CRAVEIRO

Anônimo disse...

Um encanto esta escrita. Não preciso de ver o final porque mal começo a ler identifico logo o Autor. Já foi tudo dito pelo JT e pelo JB