domingo, 18 de agosto de 2024

O nosso falar: comua

Ontem, de regresso a casa e a este blogue, houve um pequeno problema técnico no avião que me trazia, e a viagem demorou mais meia hora do que as duas horas e meia previstas.

Como vinha no banco fundeiro, local onde se situava uma das casas de banho, na última hora foi tal o acumular de pessoas no corredor, à minha volta, que exclamei para a minha gente:

- Pensam que isto é alguma comua!

Se estivesse em São Vicente da Beira, mandava-os para a Devesa, que era para onde os adultos mais rezingões mandavam as crianças e adolescentes que os incomodavam com correrias, algazarras, jogos da bola ou andar de bicicleta na praça ou pelas ruas da nossa terra.

A Devesa era o nosso baldio na encosta oeste da Ribeirinha, mesmo em frente à Vila. Comua vem de comum e comuna, não tendo esta necessariamente apenas significado o político-ideológico a que atualmente está reduzida. Aliás, o termo e o significado têm já muitas centenas de anos.

A minha mãe usava esta palavra em sentido pejorativo, um local ou uma situação com muita gente, em que se fazem coisas não muito graves, mas negativas, tipo bandalheira, anarquia.

É provável que este significado tivesse origem na campanha do Estado Novo contra a ideologia comunista. A esmagadora maioria das pessoas não percebia nada do assunto, mas a campanha das mais ilustres figuras do Estado e do Partido, mesmo a nível local, era tão intensa que alguma coisa ficava na mentalidade do povo.

Há poucas semanas, fiquei impressionado com as muitas referências deste tipo presentes na poesia do nosso poeta José Lourenço. Mesmo que não viesse a propósito, a certa altura do poema lá conseguia encaixar um louvor a Salazar, à excelência do Estado Novo, que nos salvavam do Mal!

José Teodoro Prata

6 comentários:

Tina Teodoro disse...

Da palavra comua não me lembro, mas esta expressão "vai p'ra Devesa", lembro-me bem de a usarmos quando alguém nos chateava, era uma maneira mais suave de responder, enquanto a "coisa" ainda não estava para explodir, uma alternativa a algum palavrão mais agressivo...

Anônimo disse...

Não é preciso ir mais longe para ver a atitude de subserviência do povo relativamente às autoridades do estado. Basta ver os versos da marcha do rancho do Casal (post seguinte). Mas o pior é que acho que ainda não nos livrámos completamente dela.
Também não me lembrava do termo "comua", mas é bom lembrar estas e outras formas do nosso falar.

José Teodoro Prata disse...

Como professor de História, sempre me impressionou e para isso alertava os meus alunos, para o predomínio da história das elites politico-sociais nos programas da disciplina. Por exemplo, passamos quase todo o oitavo ano a falar das enormes quantidades de açúcar que nos chegavam da Madeira e sobretudo do Brasil e a estudar a flutuação dos seus preços, mas os nossos antepassados só começaram a usar o açúcar durante e sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, isto é, há cerca de 70 anos! Assim, isto do culto das elites é logo incutido nos bancos da Escola!

José Teodoro Prata disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
José Teodoro Prata disse...

Há dias, ouvi parte de um programa de rádio em que alguns estudiosos refletiam sobre o cerco da Assembleia da República, pelos operários da construção civil, em 1975. A certa altura, a entrada no edifício foi forçada, mas uma investigadora que andou a falar com operários que lá estiveram concluiu que aquilo foi um movimento expontâneo de uma minoria, talvez encorajados por alguns sectores da extrema esquerda. Nada de planos diabólicos do PCP, como muitos defende e se vai gritar em histeria no 25 de novembro do próximo ano.
E afirmava a mesma investigadora que a esmagadora maioria desses milhares de operários viva em condições subhumanas, nos muitos bairros de lata que então cercavam Lisboa. A comer mal e a sofrer os rigores do frio e do calor, rodeados de lama e esgotos a céu aberto, esperava-se deles uma reverência para com os poderosos! Tenho refletido no assunto desde então: é impressionantes como a cegueria das elites nos tenta impor, como única, a sua visão do mundo.

José Teodoro Prata disse...

Acerca das elites locais: por convição ou não, durante o Estado Novo, todos os que ocupavam cargos públicos eram "obrigados" a pertencer à União Nacional/Ação Nacional Popular (o partido único) e alguns até a serem informadores da PIDE. Padres e leigos ligados a instituições religiosas, GNRs, professores, elementos da Junta de Freguesia, poucos escapariam aos tentáculos do regime. Por mim, nunca vi isso como um pecado. Muitos dos dirigentes da nossa comunidade, ao longo daqueles anos, desempenharam meritoriamente os seus cargos. Aliás, após o 25 de Abril, alguém de fora me perguntou, a mim e a outros, se queríamos saber quem localmente eram os membros do partido fascista e nós dissemos que não. Isto não excluiu a realidade de que alguns desses dirigentes locais foram de facto verdadeiros doutrinadores do regime a até informadores da polícia política.