Aqui,
sou a única mulher entre vários homens, quase todos partilhando semelhanças,
físicas e de modos, comuns a irmãos, filhos, tios e primos. Estão de copo na
mão, à roda de uma fogueira, perto da pocilga. «Não tem menos de oito arrobas!»,
gaba-se o dono, que andou a engordá-lo a bolota e bagaço nas últimas semanas. Há
quem se ria do exagero.
Esvaziados
os copos, um dos homens entra dentro da pocilga, ata uma corda numa das patas
do porco e tenta arrastá-lo para fora. Mas ele não quer sair, e grunhe, aflito.
Entram mais dois: um empurra o animal pelo rabo e o outro puxa-o pelas orelhas.
Já cá fora, ajudados por outros homens, levam-no até perto de um banco de
madeira, comprido e largo; juntando forças, estendem-no em cima, deitado de
lado, e tentam amarrar-lhe as patas com cordas, mas o animal continua a grunhir
e a estrebuchar, e quase cai do banco abaixo. Os homens enervam-se e berram,
atribuindo culpas uns aos outros, mas, por fim, conseguem imobilizá-lo. O dono
do porco desculpa-se com outros afazeres e afasta-se.
Uma
mulher aproxima-se com um alguidar de barro e coloca-o por baixo do pescoço do
porco, já bem lavado e seco. O matador espeta a faca de forma certeira e o
sangue escorre, farto, para o alguidar onde a mulher o apula e vai mexendo com
uma colher de pau. Depois de muita luta, o animal desiste, e deita cá para fora
o último sopro de vida. Há quem se ria: «Olha, já deitou a morcela!».
Alguns
homens vão chamuscando o corpo do porco com carqueja a arder; outros, por traz,
raspam-lhe a pele com a navalha que cada um traz no bolso. Demoram-se mais nas
orelhas, até ficarem bem limpas, e nos pés, até saltarem as unhas. O cheiro a pele
e a pelo queimado mistura-se com o cheiro a sangue e a medo. Depois de bem
lavado, carregam o animal para a loja, preso no chambaril pelas patas
traseiras, e penduram-no na sonave.
O
dono do porco reaparece; chegam também algumas mulheres; uma com um tabuleiro
de madeira debaixo do braço. É nele que o matador coloca as tripas retiradas através
de um corte feito desde a cabeça até ao rabo do animal. Corta depois um pedaço
de toucinho da barriga e entrega-o a uma delas: é para o seventre. Um homem
reclama a passarinha e as morejas para o petisco a acompanhar a prova do vinho
da última colheita.
Três
mulheres abalam para a ribeira; uma com o tabuleiro à cabeça; as outras com
baldes cheios de laranjas, sal e vinagre, para lavarem das tripas. As outras
juntam-se na cozinha e, enquanto umas se ocupam do almoço, outras pegam em
facas e tesouras, e todas sabem o que têm a fazer. A forma como aproveitam a
carne ensanguentada, a cortam e temperam com sal, cominhos, salsa e sumo de
laranja, tudo misturado no alguidar onde guardaram o sangue, diz bem da
experiência e das memórias colhidas de mães e avós. Na rua, os homens falam
mais alto, alguns já a justificar o dito «Porco morto, aguardente no corpo;
porco virado, mais um copo emborcado; vira-se outra vez….», que cumpriram à
risca.
À
mesa, entre novos e velhos, sentam-se para cima de vinte pessoas; quase só
homens, que as mulheres, depois da sopa, não param de encher travessas com
arroz de bacalhau, feijão baqueado, batatas cozidas, ervas e seventre, que vão
servindo aos homens. «E o vinho, já se acabou? Tragam mais vinho, não quero copos
vazios em cima da mesa!» reclama o dono da casa.
O
cheiro à morcela da prova, acabada de assar, espevita o resto da gula de todos.
- Parece que este ano ainda estão melhor!» Comenta
alguém.
- Cá na minha casa é tudo bom, que eu trato o
ganal como é dado!
- Estás a dizer que eu não trato bem o meu?
- Então quanto é que o teu pesava? Vá, diz lá!
- Cento e dez…
- Pois fica sabendo que o meu há de pesar mais
uns vinte.
- Como é que sabes? Já o pesaste?
-Não pesei, mas avalia-se pelos presuntos, ou
não sabes que é pelos presuntos que se vê?
- O que eu sei é que todos os anos dizes a
mesma coisa e depois vai-se a ver…
- Quando? Quando é que eu disse que o meu pesava
mais que o teu e era mentira?
A
cunhada interrompe:
- Já chega! Mas será possível que sempre que
vocês os dois se juntam à mesa, há discussão?
- Se sou ofendido, não tenho que me defender?
Que diabo!
- Acabem lá com isso e comam as papas, que
estão de comer e chorar por mais.
E a
conversa prossegue durante o café, amolecida agora por mais um copinho de
aguardente «para ajudar a desmoer»:
-Este até me seguia. Era só dizer: «anda,
anda» e ele vinha atrás de mim. Levava-o para o leirão de baixo para comer a
azeitona caída e no fim era só dizer: «Anda embora», e ele vinha.
O matador
não quis ficar atrás:
- Um cabrito que eu lá tinha também era a
coisa mais esperta que já se viu. A mãe rejeitou-o e tive que o criar a biberão.
O corno andava comigo para todo o lado. Eu vinha para aqui e ele vinha, eu ia
para ali e ele ia. Pelo Natal chamaram-me aí numa casa para ir matar um cabrito.
Fui e quando volto o gajo vem ter comigo, que sempre que chegava, ele vinha ter
comigo. Chego-me à beira dele para lhe fazer uma festa e o gajo cheira-me e
começa recuar, desconfiado. Chamo-o “Anda cá”, e ele foge-me. Fiquei preado!
“Anda cá, seu filho duma cabra, que eu já te enxofro”, corri atrás do gajo e
pumba: acertei-lhe mesmo no meio dos cornos. Nem fui capaz de o comer… Isto
para dizer que os animais são espertos… Mais que algumas pessoas.
Depois,
volta-se para o dono da casa:
- Mas
se te custa tanto matar os bácoros, porque é que os crias? Deixa-te disto.
- Já
estava criado, o que é que querias que lhe fizesse? Fazia como a Ti Porquéria
que teve lá um que até já tinha os dentes revirados?
- Eu
sou franco, também não é trabalho que goste de fazer, mas se não sou eu e mais
um ou dois que ainda por aí há, quem é que mata algum porco que por aí se vai
criando? Dantes havia cá muitos matadores: era o Mudo, o Fernando Latoeiro, o
João da Resgate, o Fecisco Ramalho…; no Casal era mais o Jaquim Pique, mas
havia outros que também se ajeitavam. Nesse tempo, por esta altura, não tinham
mãos a medir. Quase que se governavam só com os presentes que recebiam. Tudo do
bom e do melhor; só de lombo, quem desse menos que uma mão-travessa, estava
chapado…
Já
era noite quando o matador foi desmanchar o porco. Depois, ajudado pelo dono,
meteu os presuntos e outros bocados de carne e toucinho na salgadeira, cada
peça devidamente separada da outra com sal: por cima as que se comiam mais
cedo; por baixo as que ficavam para o tarde.
As
mulheres terão ainda muito que fazer durante alguns dias a cortar e temperar as
carnes e gorduras destinadas aos enchidos: primeiro as morcelas, depois as
chouriças e no fim as farinheiras. As varas do fumeiro vão ficar penduradas sobre
a lareira até tudo estar capaz de ser guardado para ser comido pelo ano fora.
ML
Ferreira
Um comentário:
Há quanto tempo! Mas cá estamos, depois de várias peripécias que ocorreram na minha vida.
Lembrei-me de voltar aos 'Enxidros', até porque também estive no último 'Conta-me histórias', no Casal da Fraga.
E, como é costume (porque ela já nos habituou a isso), gostei muito desta prosa da Libânia a contar-nos como decorria uma 'matação'.
E digo 'decorria' porque estes são eventos sociais (económicos e humanos) que, certamente, não mais voltarão a repetir-se, porquanto foram muitas as alterações entretanto ocorridas na nossa sociedade.
Sabemos de muitos acontecimentos históricos porque alguém se lembrou de escrever sobre eles, às vezes até anos depois de acontecerem, como no caso de Estrabão ou Flávio Josefo. E a Arqueologia, hoje muito apelativa, vem muitas vezes, dar uma ajuda a confirmar os factos.
Portanto, escrever para a posteridade, para as gerações vindouras (e muitas de hoje nunca viram uma 'matação'), é quase obrigatório!
Este texto da Libânia, que inclui diálogos de reconstituição, é altamente criativo e leva a recordar, como num filme, uma 'matação' a quem as viveu e a imaginar, com muito realismo, a quem nunca a elas assistiu.
Tudo de bom!
JB
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