Mostrando postagens com marcador matação. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador matação. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 20 de março de 2025

A matação


 
É de gelo o ar na alvorada deste fim de janeiro; o céu, coberto de nuvens, talvez para que a falta de claridade encubra um pouco o que está prestes a acontecer.

Aqui, sou a única mulher entre vários homens, quase todos partilhando semelhanças, físicas e de modos, comuns a irmãos, filhos, tios e primos. Estão de copo na mão, à roda de uma fogueira, perto da pocilga. «Não tem menos de oito arrobas!», gaba-se o dono, que andou a engordá-lo a bolota e bagaço nas últimas semanas. Há quem se ria do exagero.

Esvaziados os copos, um dos homens entra dentro da pocilga, ata uma corda numa das patas do porco e tenta arrastá-lo para fora. Mas ele não quer sair, e grunhe, aflito. Entram mais dois: um empurra o animal pelo rabo e o outro puxa-o pelas orelhas. Já cá fora, ajudados por outros homens, levam-no até perto de um banco de madeira, comprido e largo; juntando forças, estendem-no em cima, deitado de lado, e tentam amarrar-lhe as patas com cordas, mas o animal continua a grunhir e a estrebuchar, e quase cai do banco abaixo. Os homens enervam-se e berram, atribuindo culpas uns aos outros, mas, por fim, conseguem imobilizá-lo. O dono do porco desculpa-se com outros afazeres e afasta-se.

Uma mulher aproxima-se com um alguidar de barro e coloca-o por baixo do pescoço do porco, já bem lavado e seco. O matador espeta a faca de forma certeira e o sangue escorre, farto, para o alguidar onde a mulher o apula e vai mexendo com uma colher de pau. Depois de muita luta, o animal desiste, e deita cá para fora o último sopro de vida. Há quem se ria: «Olha, já deitou a morcela!».

Alguns homens vão chamuscando o corpo do porco com carqueja a arder; outros, por traz, raspam-lhe a pele com a navalha que cada um traz no bolso. Demoram-se mais nas orelhas, até ficarem bem limpas, e nos pés, até saltarem as unhas. O cheiro a pele e a pelo queimado mistura-se com o cheiro a sangue e a medo. Depois de bem lavado, carregam o animal para a loja, preso no chambaril pelas patas traseiras, e penduram-no na sonave.

O dono do porco reaparece; chegam também algumas mulheres; uma com um tabuleiro de madeira debaixo do braço. É nele que o matador coloca as tripas retiradas através de um corte feito desde a cabeça até ao rabo do animal. Corta depois um pedaço de toucinho da barriga e entrega-o a uma delas: é para o seventre. Um homem reclama a passarinha e as morejas para o petisco a acompanhar a prova do vinho da última colheita.

Três mulheres abalam para a ribeira; uma com o tabuleiro à cabeça; as outras com baldes cheios de laranjas, sal e vinagre, para lavarem das tripas. As outras juntam-se na cozinha e, enquanto umas se ocupam do almoço, outras pegam em facas e tesouras, e todas sabem o que têm a fazer. A forma como aproveitam a carne ensanguentada, a cortam e temperam com sal, cominhos, salsa e sumo de laranja, tudo misturado no alguidar onde guardaram o sangue, diz bem da experiência e das memórias colhidas de mães e avós. Na rua, os homens falam mais alto, alguns já a justificar o dito «Porco morto, aguardente no corpo; porco virado, mais um copo emborcado; vira-se outra vez….», que cumpriram à risca.

 

À mesa, entre novos e velhos, sentam-se para cima de vinte pessoas; quase só homens, que as mulheres, depois da sopa, não param de encher travessas com arroz de bacalhau, feijão baqueado, batatas cozidas, ervas e seventre, que vão servindo aos homens. «E o vinho, já se acabou? Tragam mais vinho, não quero copos vazios em cima da mesa!» reclama o dono da casa.  

O cheiro à morcela da prova, acabada de assar, espevita o resto da gula de todos.

 - Parece que este ano ainda estão melhor!» Comenta alguém.

 - Cá na minha casa é tudo bom, que eu trato o ganal como é dado!

 - Estás a dizer que eu não trato bem o meu?

 - Então quanto é que o teu pesava? Vá, diz lá!

 - Cento e dez…

 - Pois fica sabendo que o meu há de pesar mais uns vinte.

 - Como é que sabes? Já o pesaste?

 -Não pesei, mas avalia-se pelos presuntos, ou não sabes que é pelos presuntos que se vê?

 - O que eu sei é que todos os anos dizes a mesma coisa e depois vai-se a ver…

 - Quando? Quando é que eu disse que o meu pesava mais que o teu e era mentira?

A cunhada interrompe:

 - Já chega! Mas será possível que sempre que vocês os dois se juntam à mesa, há discussão?

 - Se sou ofendido, não tenho que me defender? Que diabo!

 - Acabem lá com isso e comam as papas, que estão de comer e chorar por mais.

E a conversa prossegue durante o café, amolecida agora por mais um copinho de aguardente «para ajudar a desmoer»:  

 -Este até me seguia. Era só dizer: «anda, anda» e ele vinha atrás de mim. Levava-o para o leirão de baixo para comer a azeitona caída e no fim era só dizer: «Anda embora», e ele vinha.

O matador não quis ficar atrás:

 - Um cabrito que eu lá tinha também era a coisa mais esperta que já se viu. A mãe rejeitou-o e tive que o criar a biberão. O corno andava comigo para todo o lado. Eu vinha para aqui e ele vinha, eu ia para ali e ele ia. Pelo Natal chamaram-me aí numa casa para ir matar um cabrito. Fui e quando volto o gajo vem ter comigo, que sempre que chegava, ele vinha ter comigo. Chego-me à beira dele para lhe fazer uma festa e o gajo cheira-me e começa recuar, desconfiado. Chamo-o “Anda cá”, e ele foge-me. Fiquei preado! “Anda cá, seu filho duma cabra, que eu já te enxofro”, corri atrás do gajo e pumba: acertei-lhe mesmo no meio dos cornos. Nem fui capaz de o comer… Isto para dizer que os animais são espertos… Mais que algumas pessoas.

Depois, volta-se para o dono da casa:

- Mas se te custa tanto matar os bácoros, porque é que os crias? Deixa-te disto.

- Já estava criado, o que é que querias que lhe fizesse? Fazia como a Ti Porquéria que teve lá um que até já tinha os dentes revirados?

- Eu sou franco, também não é trabalho que goste de fazer, mas se não sou eu e mais um ou dois que ainda por aí há, quem é que mata algum porco que por aí se vai criando? Dantes havia cá muitos matadores: era o Mudo, o Fernando Latoeiro, o João da Resgate, o Fecisco Ramalho…; no Casal era mais o Jaquim Pique, mas havia outros que também se ajeitavam. Nesse tempo, por esta altura, não tinham mãos a medir. Quase que se governavam só com os presentes que recebiam. Tudo do bom e do melhor; só de lombo, quem desse menos que uma mão-travessa, estava chapado…

Já era noite quando o matador foi desmanchar o porco. Depois, ajudado pelo dono, meteu os presuntos e outros bocados de carne e toucinho na salgadeira, cada peça devidamente separada da outra com sal: por cima as que se comiam mais cedo; por baixo as que ficavam para o tarde.  

As mulheres terão ainda muito que fazer durante alguns dias a cortar e temperar as carnes e gorduras destinadas aos enchidos: primeiro as morcelas, depois as chouriças e no fim as farinheiras. As varas do fumeiro vão ficar penduradas sobre a lareira até tudo estar capaz de ser guardado para ser comido pelo ano fora.

 

ML Ferreira

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A matação do porco

E que tal a choradela de entrudo modernista ("...por linhas tortas")? Um abraço a todos os visados!
Hoje vamos à matação* do porco, antes que o tempo aqueça e dê cabo dos enchidos.
Concluímos amanhã, com a culinária da matação.


O frio para matar o porco só chegava por alturas do Natal. Mas então a vida fazia-se em volta da azeitona e não havia vagar para mais nada. Entretanto, comprava-se um cesto de bagaço*, para acabar de engordar o porco.
Uma vez, num dia de Outono, o meu pai levou-me com ele à Oles. De saca vazia ao ombro, íamos comprar bolota para a carne do porco ficar mais saborosa. Mas o ti Zé Maria sorriu e lamentou-se, porque os sobreiros eram cada vez menos e há muito tempo que nem havia bolota com fartura para as ovelhas.
Quando a azeitona já ia estando colhida, lá por fins de Janeiro, não havia domingo em que não se ouvissem, logo pela manhã, os guinchos de um porco, a quem interrompiam a rotina da furda*.
Três semanas antes do domingo marcado, ia-se à carqueja ao Cabeço do Pisco, primeiro o meu pai e mais tarde eu, quando já dava conta do recado. Se estivesse bom tempo, deixava-se o molho na rua, se chovia, metia-se na loja.
A matação era trabalho de homens e os homens tinham que beber vinho. Por isso, uma das principais coisas a fazer, dias antes, era arranjar vinho, não o de todos os dias, que se vendia na mercearia, mas fazia doer a cabeça e não se sabia se era de uva. Não, o vinho tinha que ser bom e agradar a quem o ia beber.
O meu pai levava-me com ele ao Caldeira, a casa do ti Jaquim Macedo, que vendia vinho e era amigo do meu pai. Contava-me histórias da tropa, de quando andou a prender frades nos dias a seguir à República. Trazíamos dois garrafões de vinho, que devia chegar para o jantar e para o porco.
No dia da matação, levantávamo-nos cedo, porque era preciso preparar tudo antes dos homens chegarem. Eles eram o tio Zé Candeias, o meu padrinho, que morava ao nosso lado, o tio João Teodoro, o tio Chico Bernardino, o meu avô Francisco e o tio Joaquim, todos do Casal da Fraga. Quem matava o porco era o meu avô Francisco, mas o tio Joaquim aprendeu com ele e passou a ser o matador. Depois dos cumprimentos, almoçávamos café com leite ou vinho e pão com queijo fresco de cabra ou curado de ovelha e azeitonas. E íamos ao trabalho.


As azeitonas

Desde cedo me calhou meter a corda na pata do porco, mas sempre tive medo, das dentadas e das voltas repentinas dele, que me podiam apertar contra a parede. Como ele nunca queria sair da furda, puxávamos pela corda, empurrávamos pelo rabo e agarrávamos pelas orelhas. Em pouco tempo, estava estendido em cima do banco. O tio Joaquim atava-lhe o focinho, para não morder, e a minha mãe chegava com uma colher de pau e uma bacia com um pouco de vinho e uma mão cheia de sal.
O matador espetava-lhe a faca e a minha mãe persignava-se e depois apulava o sangue, sempre a mexer, para não coalhar. Nós segurávamos, à espera dos esticões que nos podiam atirar ao chão, mais ao porco, e fazer passar uma envergonhadela.
Com a morcela da banca* cá fora, a dar pretexto para brincadeiras e larachas*, começava-se a chamuscar com a carqueja e a raspar com facas velhas. Alguém protestava que já era hora de matar o bicho* e eu lá vinha com as passas e a aguardente. Comecei também a beber meio copo, para ajudar a levar o porco até à loja. Mas antes ainda o lavávamos e raspávamos com navalhas afiadas. O matador lavava as orelhas com água bem quente, fazia o cu*, cozia a ferida do pescoço, punha o chambaril* e estava pronto. Os homens, todos fortes, preveniam-se para o esforço final com mais um mata-bicho e o porco era então carregado em braços para a loja e pendurado na sonave*.


O chambaril

O tio Joaquim abria o porco, com dois cortes na barriga, do cu ao focinho. Primeiro tirava o toucinho entremeado, para o seventre, e logo se apreciava se o porco era februdo ou se tinha muito toucinho. A minha mãe chegava com bacias e alguidares, para as carnes. Depois apulavam-se as tripas para o tabuleiro, que se colocava em cima do banco de matar o porco. Antes de arrefecerem, a minha mãe separava as tripas umas das outras, tirando as gorduras que as ligavam.
Os meus tios do Casal iam-se embora, a arranjarem-se para a missa. Nós não podíamos. Fechávamos a loja, para os gatos lá não irem, e íamos ajudar no jantar. A minha mãe, as minhas irmãs e uma das irmãs da minha mãe, a tia Estela ou a tia Carlota, preparavam a comida, na cozinha. Eu e o meu pai arranjávamos a mesa, na sala. Abria-se a mesa e, como as cadeiras não chegavam, colocávamos umas tábuas dos lados, para nos sentarmos. Depois, eram as toalhas, os pratos, as colheres, os garfos e os copos. Tudo pronto. Na cozinha também, a adivinhar pelo cheiro do seventre*, que fervia na caçola* de ferro ou de barro, em cima das trempes, ao lume.
Chegavam os meus tios, as minhas tias e os meus primos. Sentávamo-nos à mesa, bem apertados, para cabermos. Mas não cabíamos, os mais pequenos iam para a cozinha e algumas mulheres ficavam a servir e comiam no fim.
Primeiro a sopa de feijão encarnado com couves. A seguir o arroz de bacalhau, se havia dinheiro, ou do osso da sevã*, o osso do peito do porco, acabado de matar. Para os homens, vinho, para as mulheres, meio copo. Depois as ervas, o feijão grande guisado, as batatas cozidas e o seventre. Era o melhor, mas já mal cabia. Mais uns copos e a fruta, laranjas da Oriana, do meu avô João Prata.
Depois de jantarem, as mulheres iam ao ribeiro lavar as tripas. Também levavam sal grosso, vinagre e limões ou laranjas azedas. A minha mãe às vezes ficava, para ir adiantando as morcelas. Os homens jogavam às cartas, conversavam e bebiam vinho.
Ao fim da tarde, a cozinha enchia-se de mulheres e alguidares de carnes ensanguentadas. Migava-se o véu da barriga, bem miudinho, com as tesouras da costura. Depois misturava-se com sangue e temperava-se. Com enchedeiras*, ia-se metendo a massa nas tripas miúdas, cortadas em pedaços, com uma ponta já atada. Depois de cheia, atava-se a outra ponta, com fio suficiente para as pendurar nas varas. Coziam-se ao lume, lentamente, para não rebentarem, e depois penduravam-se na latada do fumeiro*. Aos mais pequenos davam-se umas pequeninas, as netas, que se assavam nas brasas, logo à saída da panela de ferro.
O dia terminava com a prova das morcelas de assar e todos regressavam a suas casas com um presente de toucinho entremeado e morcelas.
No dia seguinte, de manhã, o matador vinha desmanchar o porco com o meu pai. Depois temperavam-se as carnes para os chouriços, para as morcelas de cozer e para as farinheiras. As outras carnes eram metidas na salgadeira, entre camadas de sal. Com os presuntos era preciso ter cuidado, para tomarem bem de sal e não se estragarem. Como eram altos, faziam-se furos nas carnes e enchiam-se de sal. Depois também iam para a salgadeira, mas só por três meses. Eram então tirados, limpos e barrados com pimento e azeite. E começavam-se a comer.
Os enchidos ocupavam as mulheres da casa durante uns dias. Quando se enchiam os chouriços, fazia-se um grande com a tripa do cego*, onde se metia a língua inteira. Tinha que se atar em toda a volta, pelos quatro lados, para a linha não rebentar com o peso. No dia das farinheiras, as últimas a fazer, não se gastava a massa toda, para fritar cagarrapos*.
A latada do fumeiro ficava a enfeitar a nossa cozinha durante meses: na primeira vara, junto à chaminé, mais perto do lume, ficavam os chouriços, depois as chouriças, as morcelas de cozer, as de assar e por último as farinheiras.
Eu ia logo aos tojos*, que cresciam atrás da casa, nos eucaliptos do Padre Tomás. Eram para afastar os gatos das varas do fumeiro. Punham-se nas pontas das varas, do lado do alçapão do forro*, que era por onde os gatos vinham.
E tínhamos carne para todo o ano.


O tojo

Vocabulário
•Apular - Apanhar algo que vem de cima, que cai.
•Bagaço - Resíduo sólido da azeitona, depois de triturada e prensada, para lhe tirar a parte líquida.
•Caçola - Pronúncia local de caçoula; caçarola.
•Cagarrapos - Pronúncia local de cadarrapos (Castelo Branco), alimento confeccionado a partir da massa das farinheiras.
•Cego - Parte inicial e mais larga do intestino grosso.
•Chambaril - Instrumento artesanal, feito de madeira dura, habitualmente de oliveira, castanho ou sobreiro. O pau deve ter uma curvatura de cerca de 130 graus e fazem-se-lhe cortes nas extremidades aguçadas, em forma de cavilha, para prender nos tendões das patas do porco. O animal é pendurado para a desmancha, suspenso pelo chambaril.
•Enchedeira - Espécie de funil, em lata, para encher o enchido.
•Fazer o cu - Tirar os dejectos fecais da parte final do intestino grosso, com água e/ou palha, cortar em volta do ânus, por fora, até à profundidade de cerca de um palmo, atando firmemente esta extremidade do intestino com uma baraça forte, para impedir a saída de dejectos durante a extracção das tripas, quando o porco é aberto.
•Forro - Espaço superior da casa, junto ao telhado. Ali se guardavam as batatas, as pinhas, ferramentas...
•Furda - Sítio onde vive o porco.
•Laracha - Graça; chalaça; dito jocoso, que provoca riso.
•Loja - Piso térreo da casa, para alojar os animais e guardar as alfaias agrícolas.
•Matação - Matança; morte do porco em casa de quem o criou, com todo o ritual tradicional.
•Matar o bicho (ou mata-bicho) - Beber um copo de aguardente no início da manhã; neste caso, durante os trabalhos da matação do porco, que ocorrem ao longo da manhã.
•Morcela da banca - Dejectos fecais do porco, expelidos involuntariamente nas afrontas da morte.
•Osso da sevã - Osso do peito do porco, correspondente ao externo. Sevã é a maneira local de dizer suã. Esta designa os ossos da espinha e das vértebras, mas em S. Vicente da Beira refere-se apenas ao osso do externo.
•Seventre - Comida regional, confeccionada a partir do sangue, do fígado e do toucinho entremeado do porco.
•Sonave - Trave-mestra; viga.
•Tojo - Arbusto com espinhos e folhas reduzidas, de flor amarela.
•Trempes - Arco de ferro, assente em três pés, onde se colocam as panelas ao lume.

(Publicado em: PRATA, José Teodoro – “Instantes saborosos”, Estudos de Castelo Branco, Julho de 2007, Nova Série, N.º 6, Direcção de António Salvado)