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quinta-feira, 20 de março de 2025

A matação


 
É de gelo o ar na alvorada deste fim de janeiro; o céu, coberto de nuvens, talvez para que a falta de claridade encubra um pouco o que está prestes a acontecer.

Aqui, sou a única mulher entre vários homens, quase todos partilhando semelhanças, físicas e de modos, comuns a irmãos, filhos, tios e primos. Estão de copo na mão, à roda de uma fogueira, perto da pocilga. «Não tem menos de oito arrobas!», gaba-se o dono, que andou a engordá-lo a bolota e bagaço nas últimas semanas. Há quem se ria do exagero.

Esvaziados os copos, um dos homens entra dentro da pocilga, ata uma corda numa das patas do porco e tenta arrastá-lo para fora. Mas ele não quer sair, e grunhe, aflito. Entram mais dois: um empurra o animal pelo rabo e o outro puxa-o pelas orelhas. Já cá fora, ajudados por outros homens, levam-no até perto de um banco de madeira, comprido e largo; juntando forças, estendem-no em cima, deitado de lado, e tentam amarrar-lhe as patas com cordas, mas o animal continua a grunhir e a estrebuchar, e quase cai do banco abaixo. Os homens enervam-se e berram, atribuindo culpas uns aos outros, mas, por fim, conseguem imobilizá-lo. O dono do porco desculpa-se com outros afazeres e afasta-se.

Uma mulher aproxima-se com um alguidar de barro e coloca-o por baixo do pescoço do porco, já bem lavado e seco. O matador espeta a faca de forma certeira e o sangue escorre, farto, para o alguidar onde a mulher o apula e vai mexendo com uma colher de pau. Depois de muita luta, o animal desiste, e deita cá para fora o último sopro de vida. Há quem se ria: «Olha, já deitou a morcela!».

Alguns homens vão chamuscando o corpo do porco com carqueja a arder; outros, por traz, raspam-lhe a pele com a navalha que cada um traz no bolso. Demoram-se mais nas orelhas, até ficarem bem limpas, e nos pés, até saltarem as unhas. O cheiro a pele e a pelo queimado mistura-se com o cheiro a sangue e a medo. Depois de bem lavado, carregam o animal para a loja, preso no chambaril pelas patas traseiras, e penduram-no na sonave.

O dono do porco reaparece; chegam também algumas mulheres; uma com um tabuleiro de madeira debaixo do braço. É nele que o matador coloca as tripas retiradas através de um corte feito desde a cabeça até ao rabo do animal. Corta depois um pedaço de toucinho da barriga e entrega-o a uma delas: é para o seventre. Um homem reclama a passarinha e as morejas para o petisco a acompanhar a prova do vinho da última colheita.

Três mulheres abalam para a ribeira; uma com o tabuleiro à cabeça; as outras com baldes cheios de laranjas, sal e vinagre, para lavarem das tripas. As outras juntam-se na cozinha e, enquanto umas se ocupam do almoço, outras pegam em facas e tesouras, e todas sabem o que têm a fazer. A forma como aproveitam a carne ensanguentada, a cortam e temperam com sal, cominhos, salsa e sumo de laranja, tudo misturado no alguidar onde guardaram o sangue, diz bem da experiência e das memórias colhidas de mães e avós. Na rua, os homens falam mais alto, alguns já a justificar o dito «Porco morto, aguardente no corpo; porco virado, mais um copo emborcado; vira-se outra vez….», que cumpriram à risca.

 

À mesa, entre novos e velhos, sentam-se para cima de vinte pessoas; quase só homens, que as mulheres, depois da sopa, não param de encher travessas com arroz de bacalhau, feijão baqueado, batatas cozidas, ervas e seventre, que vão servindo aos homens. «E o vinho, já se acabou? Tragam mais vinho, não quero copos vazios em cima da mesa!» reclama o dono da casa.  

O cheiro à morcela da prova, acabada de assar, espevita o resto da gula de todos.

 - Parece que este ano ainda estão melhor!» Comenta alguém.

 - Cá na minha casa é tudo bom, que eu trato o ganal como é dado!

 - Estás a dizer que eu não trato bem o meu?

 - Então quanto é que o teu pesava? Vá, diz lá!

 - Cento e dez…

 - Pois fica sabendo que o meu há de pesar mais uns vinte.

 - Como é que sabes? Já o pesaste?

 -Não pesei, mas avalia-se pelos presuntos, ou não sabes que é pelos presuntos que se vê?

 - O que eu sei é que todos os anos dizes a mesma coisa e depois vai-se a ver…

 - Quando? Quando é que eu disse que o meu pesava mais que o teu e era mentira?

A cunhada interrompe:

 - Já chega! Mas será possível que sempre que vocês os dois se juntam à mesa, há discussão?

 - Se sou ofendido, não tenho que me defender? Que diabo!

 - Acabem lá com isso e comam as papas, que estão de comer e chorar por mais.

E a conversa prossegue durante o café, amolecida agora por mais um copinho de aguardente «para ajudar a desmoer»:  

 -Este até me seguia. Era só dizer: «anda, anda» e ele vinha atrás de mim. Levava-o para o leirão de baixo para comer a azeitona caída e no fim era só dizer: «Anda embora», e ele vinha.

O matador não quis ficar atrás:

 - Um cabrito que eu lá tinha também era a coisa mais esperta que já se viu. A mãe rejeitou-o e tive que o criar a biberão. O corno andava comigo para todo o lado. Eu vinha para aqui e ele vinha, eu ia para ali e ele ia. Pelo Natal chamaram-me aí numa casa para ir matar um cabrito. Fui e quando volto o gajo vem ter comigo, que sempre que chegava, ele vinha ter comigo. Chego-me à beira dele para lhe fazer uma festa e o gajo cheira-me e começa recuar, desconfiado. Chamo-o “Anda cá”, e ele foge-me. Fiquei preado! “Anda cá, seu filho duma cabra, que eu já te enxofro”, corri atrás do gajo e pumba: acertei-lhe mesmo no meio dos cornos. Nem fui capaz de o comer… Isto para dizer que os animais são espertos… Mais que algumas pessoas.

Depois, volta-se para o dono da casa:

- Mas se te custa tanto matar os bácoros, porque é que os crias? Deixa-te disto.

- Já estava criado, o que é que querias que lhe fizesse? Fazia como a Ti Porquéria que teve lá um que até já tinha os dentes revirados?

- Eu sou franco, também não é trabalho que goste de fazer, mas se não sou eu e mais um ou dois que ainda por aí há, quem é que mata algum porco que por aí se vai criando? Dantes havia cá muitos matadores: era o Mudo, o Fernando Latoeiro, o João da Resgate, o Fecisco Ramalho…; no Casal era mais o Jaquim Pique, mas havia outros que também se ajeitavam. Nesse tempo, por esta altura, não tinham mãos a medir. Quase que se governavam só com os presentes que recebiam. Tudo do bom e do melhor; só de lombo, quem desse menos que uma mão-travessa, estava chapado…

Já era noite quando o matador foi desmanchar o porco. Depois, ajudado pelo dono, meteu os presuntos e outros bocados de carne e toucinho na salgadeira, cada peça devidamente separada da outra com sal: por cima as que se comiam mais cedo; por baixo as que ficavam para o tarde.  

As mulheres terão ainda muito que fazer durante alguns dias a cortar e temperar as carnes e gorduras destinadas aos enchidos: primeiro as morcelas, depois as chouriças e no fim as farinheiras. As varas do fumeiro vão ficar penduradas sobre a lareira até tudo estar capaz de ser guardado para ser comido pelo ano fora.

 

ML Ferreira

segunda-feira, 17 de março de 2025

Como eram as matações e as descamisas







Ontem, o Conta-me histórias foi diferente, mais antropologia, etnologia e etnografia do que as habituais pequenas histórias passadas com as gentes da nossa comunidade. Mas a conversa foi muito animada e a maioria dos mais de 30 participantes deram o seu testemunho sobre os temas abordados: as matações e as descamisas. Ficou o registo áudio, agora a passar a escrito.

A Lurdes Marcelino até nos surpreendeu com duas canções das descamisas da sua juventude (noutras regiões designadas por desfolhadas). Uma delas cantada pelo rancho vicentino e a outra imortalizada pelo Zeca Afonso: Milho Verde.

O grande ausente-presente foi o Dr. Albano Mendes de Matos, do Casal da Serra, a propósito do seu estudo A Matação na Gardunha.

No final, um magnífico lanche, graças à generosidade da Libânia e da Lurdes Marcelino. Obrigado também à direção do Centro Cultural e Recreativo do Casal da Fraga.

José Teodoro Prata

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Projeto Conta-me histórias, 6.ª sessão


No dia 9 come-se o almoço da matação e no domingo seguinte contamos as histórias, da matação do porco e outras que vierem a talhe de foice.
Desta vez, temos um contador de histórias convidado. Aparece, leva um objeto e conta uma história. Ou leva-te só a ti!

José Teodoro Prata

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

O Casal da Fraga de antigamente

É possível que não andássemos muito longe da verdade se disséssemos que este lugar foi o berço do Casal da Fraga.

Até há relativamente pouco tempo eram casas pequeninas, muito velhas, partilhadas em boa harmonia por pessoas e animais e onde cabia também o celeiro, a adega e tudo o que se colhesse no verão para comer no inverno.

Com o tempo essas velhas casa foram morrendo, ou porque foram demolidas ou com a morte dos donos, mas este cantinho, o mais bonito do Casal, mantém-se quase igual ao que deve ter sido há muitos anos.

Chamaram-lhe Rua do Saco por ser apenas um pequeno beco sem saída, com uma casa de cada lado.

Nesta casa, até há pouco tempo, viveu o Ti Augusto Leitão (1911/1997) e a mulher, Libânia dos Santos (falecida recentemente), que a terá herdado dos pais, João José (exposto) e Mariana Duarte.

Mariana Duarte era filha de Francisco Leitão e Josefa Duarte, possivelmente os primeiros proprietários da casa, e cujos apelidos se perpetuaram, através da descendência, em muitos dos atuais moradores do Casal da Fraga.

M.L. Ferreira

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Luz para o Casal da Fraga

Era uma grande tristeza que a gente sentia quando víamos as luzes acenderem-se do outro lado da Ribeira, mesmo ali à nossa frente! A Vila parecia um cantinho de céu estrelado, e do lado de cá, à noite, as ruas eram um negrume e as casas alumiadas só pela luz das candeias e dos candeeiros a petróleo. Era uma injustiça! Constava-se que a culpa era do Manuel da Silva, que disse que São Vicente acabava na casa onde tinha a garagem, logo a seguir ao Posto. 

Quando começaram a dizer que o Governador Civil e outros grandes de Castelo Branco vinham cá para a inauguração, resolvemos ir esperá-los com o nosso rancho para lhes pedirmos também a luz para o Casal. E também precisávamos de um tanque, que não tínhamos onde lavar a roupa. A partir daí, cachopas novas e mulheres já casadas, mesmo as que andavam todo o dia no campo ou na resina, como era o meu caso, não tivemos um serão de descanso: eu e a minha mãe, que estávamos mais acostumadas, começámos a escrever os versos (ainda chegámos a ir a casa do senhor Zé Lourenço a pedir a opinião dele) e também fomos nós que ensaiámos a marcha; as que sabiam de costura foram ao Sobral comprar a chita e talharam e coseram os fatos; outras foram ao Valcaria arranjar o vime para fazer os arcos. Ainda me lembro que foi a Maria Papoila que foi à lenha para aquecer o forno, e era lá que os iam moldando até terem a forma certa. Depois ainda tiveram que os enfeitar com flores de papel às cores. Quem não podia ajudar com trabalho dava dinheiro, que ainda se gastou muito. Só para petróleo cada uma de nós deu vinte e cinco tostões.

No dia da inauguração saímos aqui do Casal e fomos até à ponte, que já lá tínhamos a Banda à nossa espera. Depois seguimos todos em cortejo (havia outros ranchos, mas o nosso era o que ia à frente) até à barreira do hospital, e foi lá que esperámos os carros que vieram de Castelo Branco. Também já lá estava a gente mais importante cá da terra e muito povo que veio da freguesia toda.

Mal saíram dos carros, a Maria de Deus da Ti Lucinda e o meu Mário entregaram um ramo de flores ao Governador Civil e começou logo tudo a andar. Era um mar de gente: os grandes à frente, depois a Banda e os ranchos; no fim ia o povo a bater palmas e a dar vivas.

O que estava combinado era que, depois de dar a volta pelas ruas, ia toda a gente para a Praça, as entidades subiam até ao balcão da Casa da Câmara e os ranchos desfilavam cá em baixo. Mas não houve tempo: de repente começa a chover (estávamos em abril…), e eles começaram logo a correr para dentro. Foi lá que fizeram os discursos e no fim comeram um grande banquete que tinham à espera.

Os dos ranchos, cá fora, ficámos todos molhados e com os arcos a desfazerem-se. É claro, começou tudo a abalar. Nós também já íamos embora, mas apareceu o senhor António Prata e disse-me que não fosse, que subisse, que o senhor Governador Civil queria ouvir a nossa cantiga. Eu levava uma candeia de azeite na mão, para mostrar como é que a gente ainda se alumiava, e o papel com os versos (quem os tinha passado a limpo até tinha sido o Sebastião, que a letra dele era mais bonita que a nossa), e cantámos, para quem lá estava: 

Esta nossa freguesia

Que pra nós é a primeira

Bem-vindos sejam senhores

A São Vicente da Beira

 

Nós somos de São Vicente

É de cá que queremos ser

Se somos independentes

É sem a gente saber

 

O rancho do Casal da Fraga

Vem pra cantar e rir

Nós não lhes vimos dar nada

Vimos só pra lhes pedir

 

Ó senhores governantes

Tão agradáveis no trato

Recebei as homenagens

Das terras que há pelo mato

 

Ó senhores governantes

Concelhio e distrital

Corações de diamante

Almas de puro cristal

 

Lembrai-vos dos pobrezinhos

Dos pobres aqui é claro

Que necessitam carinho

Precisam do vosso amparo

 

Ó senhores governantes,

Homens de bom coração

Atendei os nossos rogos

Tenham de nós compaixão

 

Pedimos a vossas excelências

Que mais têm pra nos dar

Também lhes queremos pedir

Uns tanques para lavar

 

O Casal já é tão grande

Está entre meio de flores

Quase não se veem as casas

Tem oitenta moradores

 

O Casal da Fraga é tão lindo

Mas está tão desprezado

Tudo lá é noite escura

Só o centro iluminado

 

Queremos-lhes dizer senhores

Neste meio resplendente

Aqui não há distinção

O Casal é São Vicente

 

Também lhes queremos dizer

Que em S. Vicente da Beira

Obra de tanto valor

A nossa querida bandeira

 

A nossa querida bandeira

Obra de tanto valor

Pena que ela não tenha

O seu melhor conservador

 

Dizemos a vossas excelências

São Vicente é um espelho

Pedimos junto à bandeira

O nosso querido concelho

 

Nosso querido São Vicente

A quem temos tanto amor

Nós temos em São Vicente

Obras de tanto valor

 

Já cá temos uma escola

E temos um hospital

O que nos faz muita falta

É uma casa paroquial

 

A Vila de São Vicente

Como ela não houve igual

Foi onde deram entrada

Os primeiros reis de Portugal

 

A Vila teve outro nome

Terra de tantos regalos

O transporte que os trouxe

Foi montados em cavalos

 

Viva o senhor vigário

Que nos dá o seu carinho

Vivam todos em geral

E o senhor engenheiro Martinho.

Ao fim bateram-nos palmas e o senhor Governador Civil disse que tinha gostado muito, se podia levar o papel com os versos e a candeia, que era muito bonita. Ela nem era nossa, que a tínhamos ido pedir emprestada ao lagar do César, mas não tivemos cara para dizer que não. 

Nota: Esta história foi-me contada, mais ou menos como a deixo, pela Isabel do Chico da Azenha, que, com a mãe, a Ti Luz do Valcovo, fez os versos e ensaiou o rancho com que o Casal da Fraga se apresentou em abril de 1969, na inauguração de alguns melhoramentos feitos na Vila. Passados dois anos, a luz ainda constava duma lista de prioridades das obras a realizar na freguesia. Acabou por chegar quatro ou cinco anos depois, mas os moradores do Casal, entre todos, tiveram que pagar oitenta contos…

Os versos foram transcritos com algumas alterações da ortografia. Teria sido interessante apresentar cópia do original, mas o documento está muito danificado e parte do texto já se lê com dificuldade.

ML Ferreira

segunda-feira, 15 de julho de 2024

A taberna da Amália

 É o lugar mais conhecido do Casal (quando mo perguntam e digo que moro em frente da taberna da Amália, ficam logo a saber onde é a minha casa), mas a fama já vem do tempo do pai, quando ainda era a do Marcelino, com outro ar e outra freguesia.

Atualmente é ponto de encontro, quase só de mulheres, para um café e dois dedos de conversa; nas tardes de verão há quem se demore na esplanada a beber um cai-bem, refresco feito com uma mistura de refrigerante gasoso e xarope de groselha, receita caseira. Mas isto são coisas dos tempos modernos, que, há pouco mais de cinquenta anos, nenhuma mulher se atrevia a entrar na taberna, mesmo que fosse para ir chamar o homem, esquecido a matar a sede depois de uma tarde de domingo a jogar à malha. Por isso mandavam os filhos, se já se fazia tarde para a ceia, que às vezes também eram encorridos para casa, apenas pelo apontar de um dedo e o olhar esbugalhados de quem quer afirmar a autoridade do chefe da família. Eles iam ficando sempre mais um pouco…  

Mas havia o Ti Miguel Jerolme, um andarilho toda a vida, sempre de um lado para ao outro à procura das melhores rezes para criar ou vender a quem lhas rogasse nos mercados e nos talhos. Era uma paz d’alma, amigo de toda a gente; também do Ti Marcelino, quase da mesma criação.

Quando deixou de andar por lá, no negócio do gado, era raro o dia em que não aparecesse no Casal, quem sabe se num chamamento do coração ao ninho onde se criou, ali a dois passos, e ficava até se fazer noite, entremeando a conversa com mais um copinho. Vendo-o magrito, não fosse o vinho cair-lhe na fraqueza, a Tia Trindade oferecia-lhe muitas vezes uma bucha, quase sempre um bocado de pão com uma mancheia de azeitonas ou uma talhada de queijo, e ele não dizia que não.   

Quando começava a passar da hora, ia-lhe dizendo: «É melhor ir andando, Ti Meguel, que se faz tarde e a sua mulher já deve estar ralada…». Mas ele nunca tinha pressa de abalar: «Já vou…», e ia-se deixando ficar, sentado num dos bancos corridos encostados à parede. Até que, já noite escura, aparecia a Tia Laurentina com a lanterna na mão, e parecia ele que via Deus: levantava-se logo, com a alegria de uma criança confiante na mãe e, com o equilíbrio possível, caminhava atrás dela, pela vereda que os levava até casa, no outro lado do ribeiro. E era assim, muitos dias…

Após a morte da Tia Laurentina, foi a Chão, a última das filhas em casa, que, com a mesma dedicação e amor da mulher, lhe serviu de estrela, alumiando-lhe as noites escuras no regresso, desde o Casal da Fraga da sua infância, até ao Casalito onde se tinham criado os dez filhos que Deus lhes deu.

 O Casal do Baraçal, já tão diferente, visto do Casal da Fraga (apenas as casas em primeiro plano, ao fundo é já a Devesa)

Nota: O senhor Miguel Jerónimo nasceu no Casal da Fraga, em 1905, numa casa duma travessa da rua de Santa Bárbara, uma das mais antigas do Casal, que ainda é habitada. Era filho de António Jerónimo Lopes, já aqui nascido, e de Maria Josefa, natural dos Pereiros. Teve oito irmãos. À exceção de uma irmã, todos se criaram, casaram e terão tido filhos. Do casamento com a senhora Laurentina Hipólito teve dez filhos, todos criados até à idade adulta, e só o Padre Zé e a Conceição (Chão) não deixam descendência. Será, por isso, uma das famílias com mais parentes em São Vicente. Faleceu em 1 de junho de 1981, poucos anos depois da mulher.

ML Ferreira

terça-feira, 9 de julho de 2024

Casal da Fraga

O Casal da Fraga não é um casal mas três: Casal do Baraçal, Casal da Fraga e Casal dos Ramos. Num passado recente existia ainda o Casal do Monte do Surdo, que agora sobrevive apenas nas cadernetas prediais, estando na linguagem comum incorporado no Casal da Fraga.

Há cerca de 300 anos, haveria apenas uma família de proprietários em cada casal (exceto no do Baraçal, que não surge nas fontes).  Todo o vale onde corre o ribeiro que atravessa a estrada perto do entroncamento para os Pereiros e Partida era propriedade do Conde de São Vicente, sendo a mais rica das que tinha na freguesia. Os rendeiros viviam na casa, agora em ruínas, que existe um pouco abaixo do referido entroncamento. O mais ilustre destes rendeiros foi João Rodrigues Lourenço Caio, natural do Louriçal, que casara com a filha do rendeiro anterior, José Leitão Paradanta. Chegou ao importante cargo local de Capitão de Ordenanças da Vila, no tempo das Invasões Francesas (1807-1812).

No Casal da Fraga, numa casa que existiria na zona da atual residência do Comissário Barroso ou nas proximidades, moraria Duarte da Fraga, cerca de 1700, e outros Fragas ali continuaram a viver, ao longo de todo o século XVIII. Na casa em frente, que foi do sr. Miguel Leitão e hoje é do filho Pe. José Augusto, existem as mais antigas oliveiras de São Vicente. Fraga designa uma rocha ou uma forja de ferreiro. Qual destas terá dado o nome ao casal? Ou nenhuma delas e Fraga vem do apelido familiar desta família que ali viveu, com esse apelido, mais de um século?

Do Casal dos Ramos veio a esposa de Manuel Rodrigues Fraga, chamada Luísa Maria Leitão (nascida cerca de 1750), o que nos permite concluir que ali viveria pelo menos outra família.

Certo é que o casal foi crescendo, beneficiando do estrangulamento urbano provocado na Vila pelas casas senhoriais que detinham a maioria dos terrenos em redor da povoação: Casa Cunha, Visconde de Tinalhas e Casa Conde.

Em 1970, um ano após a passagem do Presidente do Conselho pela Vila, a inaugurar a barragem e os melhoramentos que a acompanharam (eletricidade e redes de água e esgotos), os habitantes do Casal decidiram que já era tempo de acabar com um dos maiores perigos que haviam vivido durante séculos: a travessia da ribeira pelas passadouras. Fizeram um peditório entre si e contruíram um pontão sobre a ribeira, mais tarde alargado pela Junta de Freguesia. Só o projeto custou 100 contos! E quando começaram as multas por lavar roupa na ribeira, as mulheres do Casal foram com as da Vila numa camioneta a Castelo Branco, falar com o Governador Civil e o Presidente da Câmara. Não ganharam lavadouros, como as da Vila, mas não houve mais multas.

Anos depois, com a Vila já eletrificada, tiveram de pagar do seu bolso a rede de postes e fios que finalmente levou a eletricidade a suas casas. Até 1980, dos poderes talvez apenas tenham recebido de graça a fonte que a junta edificara, em 1960, no que ficou a ser chamado o Largo da Fonte. Até o pequeno pontão para o Casal do Baraçal, sobre o ribeiro que desce do Monte do Surdo para a Ribeirinha, foi construído pelo António Pereira.

Atualmente, o Casal da Fraga tem arruamentos pavimentados, redes de água e esgotos, muitas casas novas ou recuperadas, uma fábrica de engarrafamento de água, um restaurante, uma taberna, uma associação que organiza a festa da Santa Bárbara, com sede própria, e ganhou o estatuto de uma povoação autónoma e não apenas um sítio da Vila. Tem pouca população jovem, como todo o interior, mas mantém o espírito bairrista e ativo que sempre o caraterizou.

José Teodoro Prata

sábado, 29 de junho de 2024

A lavadeira

São horas, está tudo a acordar

Um novo dia se aproxima

Vamos todos levantar

Em direção à cozinha

 

Após ter passado uma noite bem dormida ao lado de três irmãos, dois para cima e dois para baixo, eis que oiço o galo cantar, dando sinal de que vamos entrar num novo dia. Levanto-me, dirijo-me à cozinha e encontro a minha mãe já levantada, preparando o nosso pequeno-almoço, ou seja, café de cevada, que todos nós degustávamos com alguma satisfação, misturando um pouco de leite das ovelhas dos meus avós, quando havia e quando não havia era preto. Partíamos uma fatia de pão cozido no forno da tia Maria Estela para uma malga e tudo misturado, era a nossa primeira refeição, ou seja, o café migado.

 

Fizemos a higiene pessoal

Acompanhados da nossa mãe

A seguir fomos para o quintal

A ouvir o galo também

 

A minha mãe já tinha preparado uma grande bacia de roupa que iria lavar para a ribeira da senhora Encarnação (1), mas antes de sair de casa tinha a preocupação de nos lavar na casa de banho, porque já tínhamos esse miminho, não havia era a água canalizada ainda, tínhamos de a ir buscá-la à fonte, que está ali perto, despejá-la para um depósito no forro. A canalização estava feita internamente ligada a esse depósito, podendo assim utilizá-la na casa de banho e na cozinha, onde já havia uma torneira.

 

Tomámos o nosso café migado

Com alguma satisfação

Que a minha mãe tinha preparado

Antes de ir para a ribeira da senhora Encarnação

 

Acordo bem-disposto, porque finalmente entrámos de férias escolares, e feliz estava, porque tinha passado para a terceira classe. Depois de a minha mãe ter terminado todo este ritual e de ter acomodado as galinhas e os perus que tínhamos no quintal, dirige-se a mim, porque entendia que eu era o mais jeitoso para a ajudar, e diz-me:

- Daqui a três horas vais ter comigo à ribeira para me ajudar a trazer a roupa, porque é muita e eu não posso sozinha.

Eu, quando entendi, saio de casa, passo na Fonte Velha, vinha a Dona Zara a sair de casa, dirigindo-se a casa da Dona Maria; quando passo por ela, dou-lhe a salvação.

 

Desço rua abaixo contente

E na fonte paro um pouco

Vejo o João Carvalho e o Joaquim Valente

A entrar na tasca do João Coxo

 

Passo em frente à taberna do sr. João Coxo, estavam a entrar os senhores Joaquim Valente e João Carvalho, que de certeza iam matar o bicho. Vou direito à rua Velha, onde encontro o sr. Joaquim Ribeiro, mais tarde meu tio, porque casou com a minha tia e madrinha, à porta da sua casa, a ver quem passava. Chego a casa do sr. Albano Jerónimo e vejo um carro de bois à porta dele, sem o ganhão, que deveria estar a receber ordens dentro de casa; entretanto chega o sr. João Paulino com o seu grande burro, que devia ir para a propriedade que tinha na Senhora da Orada.

 

Em frente à casa do senhor Albano

Um carro de bois está parado

O ganhão recebe ordens do comando

E deve cumprir o que ficou combinado

 

Chego à Estrada Nova e vejo ao meu lado esquerdo o sr. Jaime Pique, que se encontra à porta do forno do sr. José Matias (2), a fumar o seu cigarrinho; e prossigo o meu objetivo direito à ribeira da senhora Encarnação. Entro no caminho onde se encontra agora o Nicho e chego à ribeira. Além da minha mãe, há outras mulheres a fazer o mesmo trabalho. Já estava calor, porque tínhamos entrado no Verão, mas a ribeira ainda levava água suficiente para lavar a roupa.



Com alguma satisfação

Finalmente chego ao destino

À ribeira da senhora Encarnação

Local onde bem me sinto

 

Eu gostava de estar ali, porque entrava na água e divertia-me. Não estava sozinho, havia outras crianças e todos nos divertíamos: uns apanhavam peixes com um cesto e outros divertiam-se a bachicarem-se uns aos outros e a jogarem às escondidas. Havia meninas em combinação, porque as mães aproveitavam para lhes lavarem os vestidos, para que no final viessem lavadinhas para casa.

Em frente encontrava-se o lagar da Luz Mesquita, mas de momento não estava a trabalhar. Lá mais a cima, junto às passadoiras, havia outro lagar que pertencia à Casa Conde. De repente vejo um homem a passar as passadoiras do Casal para a Vila. Era o tio Tota que era o varredor das ruas e ao mesmo tempo o coveiro. Mais tarde vim a saber que tinha morrido uma pessoa e ele vinha abrir a cova.

 

Toca o sino a dobrar

Sinal de que alguém morreu

O tio Tota vai passar

Pergunto-lhe, quem é que faleceu?

 

Entretanto, a minha mãe já lavou a roupa, a pôs a corar ao sol, voltou a passar pela água e colocou a secar. Quando está quase seca, vimos para casa. E assim se passou mais um dia na ribeira da senhora Encarnação.

 

João Maria dos Santos

Notas:

(1)   Antes do lagar da sr.ª Luz Mesquita ser construído, havia uma azenha naquele local, cuja moleira era a senhora Encarnação; por isso o sítio da ribeira em frente tinha o nome da moleira.

(2)   O local primitivo do forno do sr. José Matias foi ao fundo da Rua Nicolau Veloso, à esquerda, já junto à estrada.