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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Couves extremas

I

Naqueles invernos negros, de pouco ou nenhum sol, os dias eram pequenos e as noites enormes! A partir do mês de novembro, tinham lugar, em casa de Garrancho, os grandes serões de família. O que sucedia à volta da colossal lareira, na cozinha, à telha vã!
— Boa casa, boa brasa! — dizia ele, em voz forte e sonora, para a ti’ Maria, a mulher, com a espontaneidade e confiança de quem está em sua casa!
Invariavelmente, estavam ao pé um do outro! Unidos, como unha e carne! Caminhavam ligados na vida, havia décadas! Por regra, no tempo do frio, achavam-se na cozinha àquela hora! A hora em que o dia caía e a noite se aproximava.
À luz da candeia de azeite, ela, sempre a remexer e a saraçar, lá andava nos seus afazeres domésticos.
Ao ouvi-lo, atirou-lhe, sem desviar os olhos da faca com que migava, em pedaços grandes, o punhado de couves galegas para a ceia:
— Não fales tão alto, homem, que aborreces os vizinhos! O que é que há de dizer o nosso compadre e a mulher, que são, mesmo aqui, parede com parede, connosco?!
— Homessa! Se um homem não está à vontade para botar palavra entre as suas quatro paredes, então onde diabo vai dar soltura àquilo que quer deitar do peito para fora?! Na taberna? Na adega? Ora, adeus! Aí, muitas vezes, já não é ele a falar! É o briol a falar por ele! Olha que a casa de um homem é como se fosse o seu castelo!
A mulher calou-se e aquiesceu. Entretanto, Garrancho ia pondo, no lume, mais uma boa cavaca de lenha de castanho velho, que tinha trazido da serra.
Era um homem alto de corpo! O mesmo de estatura moral! Contratos onde entrasse, não necessitavam papel! A sua palavra era lei! Tinha uma boa disposição duradoura e um coração imenso!
Às vezes, calhava vir à conversa, um caso de amor juvenil, vivido pela filha, que ele bem amava. Razões do coração de custosa compreensão para a esposa! Bem o viram, então, com o âmago lacerado e repartido, sentado à roda do lume, de lágrimas a esbagoarem-se-lhe pela cara!
Um alma de S. Pedro!
A diferença é que Pedro era pescador e Garrancho lavrador! Se o primeiro, andava no mar a pescar e a molhar os pés na água, o segundo andava a cavar, a semear e a engolir o pó da terra! Mas foi aquele apóstolo, rude como Garrancho, rijo como uma rocha de granito, que Cristo escolhera para nele edificar a sua Igreja!   
O casamento com Garrancho não podia se não ser uma bênção para a ti’ Maria! Ouvia-a, ouvia-a! Que ela — sabia-o ele muito bem — era também moldada por uma grande alma, mas um poucochinho mais dura! Porém, entre eles, a vida prosseguia! Não era preciso que as suas almas fossem gémeas. Bastava que fossem, como a dele, suficientemente tolerantes. Escutava-a, escutava-a! E a boca dele não se abria! A não ser para tentar compreender as suas razões, procurando suavizar-lhe a rigidez na forma de ver o mundo, as coisas e as pessoas.
No início de novembro, ainda se estava quase a dois meses de terminar o outono, a que se seguiria o inverno. Contudo, o frio e a chuva eram de molde a que não se sabia quando acabava um e começava o outro! E quase com toda a certeza, que já tinha nevado na Estrela e, quiçá, também na Gardunha. Se o tempo era mau, logo pelos Santos, era contar que, afora o verão de S. Martinho, assim iria até lá para o fim de fevereiro! Com o sol de março é que se começava já a sentir a terra a aquecer e a vida a querer despertar do torpor da hibernação.  
No entretanto, o fumo e o calor curtiam as morcelas e os chouriços dispostos em fila, nas varas, por cima da lareira. Ao mesmo tempo que secavam as castanhas, no caniço, ao lado do fumeiro. À época, as castanhas eram já poucas. A maior parte dos castanheiros tinha sido substituída por oliveiras, que davam o rico fio doirado do azeite, produto bem mais rentável!
Garrancho e Maria contavam para cima de sessenta. Sempre foram velhos! Ou assim parecia aos olhos dos netos, moços e moças a transbordar mocidade!
Tinham tido uma vasta progenitura de dez filhos! Agora restavam eles. Sós, naquela casa enorme! Carregada de memórias!
Por entre a crueldade dos males e doenças, tinham vingado, até à idade madura, oito deles! Seis rapazes e duas raparigas. Uma menina falecera em criança. Outra, pouco passaria dos 18 anos! E os que eram vivos, todos estavam casados e apartados em suas casas. Salvo um deles e a mulher que morreram pouco depois do casamento.
Foi esse infortúnio que levou o filho destes, o neto Juvenal, ainda criança, a ir viver com os avós, ajudando-os nas lides da terra. O que, ao menos, lhes suavizava um pouco o sofrimento naqueles anos da velhice.
Era ele que, agora, mais enfrentava as intempéries. Era ele que, no inverno, se demorava na serra, até mais tarde, a trabalhar. À chuva e ao frio! A tratar das cabras. A ordenhá-las. A fechá-las convenientemente, na corte, à noite. Para impedir algum ataque de animal feroz que, conforme o porte — raposa ou gato toirão — podia, se não mais, pelo menos, pôr em perigo as crias do rebanho!
Todas as noites, os velhos esperavam que o neto chegasse da serra, de labutar. Bastas vezes encharcado. E a chegar-se ao lume para enxugar a roupa!
Depois, os três, comiam, na paz do Senhor, a ceia que a avó preparava com sábias mãos!  

II

A cozinha situava-se em cima, na “casa velha”, numa espécie de primeiro andar. Para se lá chegar, passava-se em baixo, pelo corredor da “casa nova”, situada do lado direito, à entrada da porta principal.   
No tempo, havia um grande respeito e confiança entre as pessoas da vila. Razão por que esta porta estava sempre aberta! Aberta, é um modo de dizer. Porque, na realidade, estava presa no trinco, mas em singelo. Sem a fechadura corrida. Bastava premir a peça de balanço com o polegar e levantar a tranqueta interior, para entrar.
Tinha um pormenor que, porventura, a distinguia de todas as outras portas. Atrás, fora pregada, por uma das pontas, uma tira de metal flexível. Mas suficientemente forte para, na outra extremidade, ter suspensa, balançando, uma campainha. De modo que, se alguém abria a porta, ao mínimo movimento, a campainha tocava, ouvindo-se por toda a casa! E reconhecia-se de imediato a voz da dona: 
— Quem é que lá vem?!
— Eh! ti’ Maria, sou eu…! Hoje precisa de sardinha ou chicharro?! — gritava lá de baixo a Mira Sardinheira.
— Lá vai, lá vai!...
Descia as escadas. A conversa prosseguia entre as duas mulheres, sobre saber se precisava ou se lhe agradava algum peixe para aquele dia!  
Franqueavam-se, assim, as portas a quem quisesse entrar. Todos estavam por bem! Desde logo, bem entendido, os vizinhos e a família. Se os pais moravam ao cimo da rua, os filhos moravam, quase sempre, por essa rua abaixo. Ou, mesmo, noutras ruas da vila! Em todo caso, perto uns dos outros. Prontos a ajudar se houvesse qualquer aflição. As gerações sucediam-se e a vila achava-se cheia de gente! Não se tinha dado, ainda, a emigração em massa para França e para o litoral!
Era nessa conjuntura de vizinhança que, o Lopo, a bem dizer, porta com porta com Garrancho, frequentava com regularidade, a casa deste, havia longos anos! As mulheres até se chamavam mutuamente por “comadres”. Embora não se soubesse bem a razão e o porquê! Talvez porque entendiam que a amizade, o conhecimento e o traço de união entre as famílias, mereceria mais que o simples tratamento por “vizinhas”!
Como local de sociedade e encontro, Lopo e Garrancho privilegiavam, quase sempre, a adega, onde se encontrava o pipo do vinho, a salgadeira com o presunto, os queijos a fazer a cura e a talha das azeitonas. E, onde nunca faltava uma bolsa com pão dessa semana. Cozido no forno da serra ou no da viúva do Mesquitela - homem de muitas posses - na rua Velha. Estava guardado dentro de uma caixa de madeira, robusta, para evitar ser roído pelos ratos.
Como os dois gostavam de estar sempre muito próximo do espicho do barril do vinho, chegavam a ficar, às vezes, bastante entradotes. Não, somente, pelo odor que lhes atravessava a pituitária, mas, sobretudo, pelo gosto frutado e tanino do tintol que lhes passava nas gustativas! Davam-lhe forte e bem! Quando Garrancho se preparava para encher o primeiro copo, o Lopo punha-se logo a dizer, com receio de desperdícios e a deixar supor que estaria pronto a beber o segundo, se lho dessem:
— Ó amigo, não enchas o copo demais, que o vinho não faz cogulo! Olha que podes estragar a pomada! Sempre ouvi dizer que o que se estraga, nem as galinhas o aproveitam! E antes dois copos que entornar…! — alegava.
— Ora o damonho do homem! Sim, senhor! Ai o alma de cântaro! Hã! — ria-se, sarcástico, Garrancho, não diretamente para o Lopo, mas como se imaginasse ali presente uma terceira pessoa.
Depois, para ele:
— Onde aprendeste semelhante ladainha, ó Lopo? Na taberna do Arrebotes ou na do Coxo?!
— Ná! Nem numa nem noutra. Esta já ma contava o meu pai, que no céu esteja!
— Pois! Muito me contas, mas não são notas de conto!
E a conversa prosseguia. Garrancho esforçava-se por pôr os copos bem cheios de vinho tinto rematados por uma coroa de espuma vermelha, em cima da mesa improvisada. Armada com uma tábua larga sobre o fundo de um barril de cinquenta litros, vazio, colocado, na vertical, sobre o chão térreo. Uma vez e outra vez! Mais um pedaço de presunto no prato! Mais um naco de pão centeio ou de broa esnocado a esmo! Mais um bocado de queijo e uma mão cheia de azeitonas! E mais uma rodada!
Assim corriam as suas pândegas e comezainas, até o vizinho regressar a casa, do outro lado da mesma rua, duas portas acima. E, ou era dos olhos de Garrancho, ou o Lopo já ia um pouco entornadote.
Depois da função, um tanto para o tarde, era quando Garrancho ia ver da ti’ Maria que estava já deitada, apenas a dormitar! Não serenava enquanto não sentia o homem a abrir as mantas e a aconchegar-se ao pé dela.
Mas, antes, na despedida, os dois homens, ainda tinham tido tempo de emborcar mais um copo de tinto, para a sossega. Era quando o Lopo dizia para Garrancho, com a voz entrecortada pelo efeito dormente da pinga:
— Ó amigo, na tua casa mando eu! E na minha casa mandas tu! Hã?!...
Garrancho bem o compreendia! Com a tirada, o Lopo parecia querer assenhorear-se de carta-branca para acesso ao barril do vinho de Garrancho!
Nunca se soube se este aceitou tal proposta de reciprocidade. Ou se cada um continuou a mandar na sua própria casa!

III

Tinha chegado, entretanto, a hora da ceia! Juvenal estaria a chegar da serra, de acomodar o gado. As couves com batatas, a morcela de cozer e os ovos, para os três, estavam quase cozinhados.
Muitas vezes, porém, sobretudo nos sábados, aconteciam as magnas reuniões da família. Vinham à casa paterna alguns dos filhos. Se fossem todos, seriam mais que as mães. É um modo de dizer! Quase todos moravam na vila! Levavam as mulheres e a prole! Que compunha um bom rancho de netos dos venerandos avós. Jovens ou ainda crianças. Num momento, enchia-se a casa! De pessoas e de ruído! Repentinamente, a algazarra das crianças elevava-se ao teto! Ouviam-se-lhes os estrepitosos gritos das brincadeiras. Eram a riqueza da família! Mas, eh!, malta dum raio!
— Estejam quietos e calados meninos! Não façam barulho que me dói a cabeça! — ralhava a avó Maria. Ao mesmo tempo que produzia com a língua, por obra de artes orais, um estalido de impaciência. Som difícil de imitar e impossível de transcrever! Tudo quedava por um momento. Mas qual quê?! Eram como ferrabrases. E o rebuliço retornava pouco despois!
Com a chegada dos filhos, noras e netos, colocavam-se na panela mais couves, batatas, morcelas de cozer e ovos. A ti’ Maria se encarregaria de fazer os acrescentos. Ou colocava mesmo outra panela ao lume com as quantidades que bastassem para satisfação de todas as bocas presentes.
Couves e batas cozidas, grandes rodelas de morcelas de cozer. Ovos cozidos. Tudo bem regado com azeite e vinagre. Pão de centeio ou broa. Vinho para os homens e chá ou água para as mulheres e as crianças! Fruta, azeitonas ou queijo. Tudo deste quilate! E com abundância! Alguém que estivesse de fora a observar, concluiria: “Uma família em ordem! E que beja ceia!”.
Às vezes, a refeição era comum! Ou seja, em vez de cada um ter o seu prato individual, deitava-se tudo já devidamente cortado numa descomunal caçoila de barro. Cada um, munido apenas de um garfo e de uma fatia de pão, comia do recipiente o que entendia. A partilha era por estimativa. E ninguém se empanturrava. As mães tinham o especial cuidado de se certificarem que os filhos mais pequenos tinham comido o suficiente. Matava-se a fome. Havia muita fartura de tudo o que a terra dava! Graças à Divina Providência!
Garrancho e Maria nunca sabiam quando contavam com tanta gente! É certo que os filhos, as noras e os netos nem sempre estavam todos. A não ser nas festas mais marcantes ou nas matações. Mas era sempre bastante gente! E vinham sem aviso. Mas não era necessário qualquer planeamento. Arranjava-se sempre alguma coisa para quem chegava!
Durante o repasto, Garrancho não raras vezes tinha que se deslocar à adega, a encher mais um ou dois canjirões de vinho! Ele sabia melhor que ninguém como manobrar o espicho do barril! Levantava-se do banco, uma espécie de “trono”! Desaparecia nos degraus de madeira que davam para o piso de baixo. Atravessava a “casa nova” e descia por uma escada amovível até à cave do pipo. Os netos continuavam os seus divertimentos. Se, no auge dos folguedos, algum se sentava, mesmo por momentos, no banco deixado vago, a avó clamava:
— Sai daí, menino! Não quero ninguém aí sentado! Já vos avisei muita vez! Ora com fêto! Hã! — dizia abespinhada.
O “trono” era um cilindro, serrado do tronco de um velho sobreiro, assente numa das bases. Fora cortado para servir de banco e colocado à roda da lareira. E ninguém se podia sentar nele, por respeito. Estivesse o dono presente ou não! Era norma da casa! E as normas eram para se cumprir! 
 
Mas nesses grandes serões, à ceia, muito se cavaqueava! Recordavam-se outras épocas. As épocas dos tempos difíceis de antigamente!
— Isto agora é um luxo! Há a fartura que não havia noutras ocasiões! Hoje é diferente! Está melhor! Temos para comer! — pregava Garrancho, com a comunidade familiar a ouvir. — Nessas alturas, comiam-se couves! Couves e apenas couves! Coziam-se com sal, temperavam-se com um fio muito fino de azeite, se o houvesse, e uma gota de vinagre!
— Couves! Só couves! — rematava a avó Maria, voltando-se para os netos, que entrementes tinham quedado, pasmados, com o teor da conversa! — Couves, sem nada a acompanhar! Chamávamos-lhe as couves extremas! Foi nos terríveis anos das guerras, pestes e fomes… Vocês não sabem nada da vida! — concluiu, ciente da experiência que lhe conferia a idade. Relembrando-se de um tempo mau, que coincidira com o da sua juventude, pôde-se-lhe, todavia, entrever, na face enrugada pelos anos, uma réstia de nostalgia!...
Com o andar da noite, os ouvidos iam perdendo a acuidade e a capacidade auditiva. Os mais novos adormeciam. Em breve, o João-pestana os transportava para o imaginário mundo dos sonhos!
Já era tarde quando se encerrava a assembleia de família. Quentes como estavam do calor da lareira, agasalhavam-se! Em especial os mais pequenos. Para enfrentar o ar gélido da rua. Onde não havia luz pública! E regressavam a suas casas por entre as sombras da escuridão!

Nota: neste texto foi utilizada lexicologia de cariz local ou regional que não consta da ortografia e dicionários oficiais.       

JOSÉ BARROSO