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sábado, 17 de setembro de 2022

A Rota Romana ou Medieval de São Vicente da Beira

 Há dias decidi ir (a pé, está claro), à Portela da Senhora da Orada ver como paravam as modas. É uma forma de dizer. Desde a última vez que por lá andei, já passaram alguns anos. Foi num dia em que escrevi um texto (por sinal, publicado neste blog) e fotografei um cão que por lá apareceu, ao qual também fiz referência.

A partir da Portela da Senhora da Orada não consegui encontrar qualquer afloramento de calçada, na encosta norte da Gardunha, em direção a Alcongosta, Fundão ou outra povoação próxima.   

No dia seguinte fui à outra Portela a sul e, mais além, até ao fundo das Vinhas e Valouro. Agora como da outra vez, o fito principal era ir ver o estado da calçada romana ou medieval que vem do meridião, segue para norte, na parte que se contém, mais ou menos, nos limites da nossa freguesia. Ou seja, da estrada vicinal, hoje alcatroada, que vai do Louriçal do Campo à EN 352, próximo do Valouro e que corta, ortogonalmente, a nossa rota romana ou medieval.

A fim de situar as pessoas relativamente ao itinerário desta antiga estrada romana ou medieval da Vila, digo aquilo que me parece: entra na nossa freguesia a sul, pelo Valouro, Vinhas e Fonte da Portela. Foi cortada perto deste local pela EN 352 fundindo-se com esta. Ao fundo da Barreira da Fábrica, do lado da Vila, volta a autonomizar-se e segue pela estreita rua das Poldras para o Ribeiro do Marzelo; passa pela rua da Corredoura e segue pelo caminho do Cimo de Vila para a Senhora da Orada, até ao Alto da Portela, local em que desce para a encosta norte da Serra da Gardunha. Antes do calcetamento da rua da Corredoura e quelhas adjacentes (a nossa antiga circular externa!), ainda havia alguns afloramentos de calçada antiga na barreira do Ribeiro do Marzelo, do lado dos Cunhas, mesmo junto ao muro da quinta.   

Tal como me aconteceu na Portela, a norte, a partir da mencionada estrada vicinal para sul, não pude vislumbrar a referida via romana ou medieval, dadas as dificuldades do terreno e da vegetação. Mas creio que seguirá para Castelo Branco. Talvez se consiga encontrar, penso eu, se se fizer a pesquisa inversa, começando naquela cidade ou, em todo o caso, algures na Póvoa de Rio de Moinhos ou Tinalhas caminhando para norte.

Mas, digo estrada "romana ou medieval", porque, não sendo eu um especialista na matéria, entendo que não posso (nem devo) classificar, para já, esta via, sem que outros se pronunciem sobre o assunto. Sei apenas que se trata de uma estrada antiga (razão pela qual deve ser preservada), com algumas caraterísticas nas quais, segundo os entendidos, se podem enquadrar as estradas romanas, mas também as medievais. Esta via pode, de facto, ter uma origem romana e ter sido, posteriormente, modificada como, de facto, aconteceu por todo o país. Os melhoramentos, hoje, são desaconselhados, a não ser que sejam feitos por especialistas.   

A construção das vias nas províncias romanas não era tão complexa como na península itálica. Basicamente, era aberta uma caixa no terreno que se enchia de pedras e areia ou cascalho ou cal que, depois de batida, levava na superfície uma camada de lajes a formar uma face convexa, tudo para permitir a drenagem das águas pluviais. Algumas podem apresentar, ao centro, uma fila longitudinal de pedras. É o caso desta via junto à Senhora da Orada que, assim, se aproxima mais da configuração das antigas ruas da Vila de S. Vicente da Beira construídas na Idade Média.  De uma forma ou outra, o que é certo é que este sistema de construção das obras permitiu que a rede viária romana perdurasse por 2 milénios! Mesmo o MacAdam, com o seu método moderno, obrigava a reparações permanentes levadas a cabo por um verdadeiro exército de cantoneiros, cada um com seu "cantão"! Nenhum dos povos seguintes (Godos, Árabes) teve, como os Romanos, a noção da importância das estradas no desenvolvimento militar, económico e administrativo. Com o início da Idade Média (sensivelmente, no séc. V), como se sabe, a civilização ocidental estagnou ou deu passos atrás! Segundo os historiadores, até quase ao século XX (imagine-se!), a nossa rede viária assentava, fundamentalmente, na profusão dos caminhos rasgados pelos romanos!

Estão indicados na internet vários trilhos na nossa região, seja na planície ou na serra, nomeadamente, Castelo Branco, Sarzedas, Almaceda, Alcains, Soalheira, Louriçal do Campo, Alpedrinha, Castelo Novo. Todos seguem, como é óbvio, pontos de interesse turístico, quer naturais, quer culturais (culturais, isto é, onde há mão humana). Em S. Vicente da Beira também há indicação de trilhos no terreno mas, na internet, no que concerne à freguesia, creio que apenas se faz referência ao Casal da Serra, quando se descrevem as rotas do Louriçal do Campo ou de Castelo Novo.

Acontece, então, que a dita estrada romana ou medieval a norte, não está tão bem conservada como estava há uns anos atrás quando lá estive! É certo que foi contida a invasão da vegetação e, mais que contida, foi alargado o seu limite de crescimento. Essa operação, em si mesma, seria benéfica, porque deixaria mais à vista uma obra humana antiga que nós não temos o direito de destruir! A sul, esta via, está e sempre esteve pior porque foi sempre muito mais utilizada! O presidente da Junta de Freguesia disse-me, pessoalmente, há tempos, que iria ser limpa na área da Fonte da Portela, mas, por enquanto, ainda continua na mesma.

Sucede, porém, que, hoje, naquela zona norte, há eucaliptos para cortar e eólicas que ali foram instaladas que necessitam de manutenção. Deve ter sido por isso que a estrada, além do corte da vegetação, foi alargada por máquinas; e, embora pareça que a calçada foi poupada, encontra-se, na sua maior parte, coberta por uma camada de entulho. Não me parece que a estrada tenha sido, propriamente, soterrada, mas a cobertura de terra deve ser retirada e a calçada limpa! Em muitos locais do país estas vias antigas foram destruídas. É preciso que não se destruam mais. Por isso, a Junta de Freguesia deve tomar medidas e verificar melhor o que se passou, a fim de tentar preservar os afloramentos ainda existentes.  

Anexo: fotos de alguns afloramentos da calçada antiga e um vídeo de uma das eólicas da Portela Norte. 



José Barroso  

domingo, 22 de novembro de 2020

Crepúsculos - 2

Desde a Páscoa, na primavera, quando o sol começava a aparecer e as flores a desabrochar, que as populações entravam a tanger música e a rebentar foguetes por todo o lado, em festas e festinhas, em honra de protetores e oragos por terras e terriolas.

E assim continuava por todo o verão.

Por alturas do terceiro sábado do mês de setembro, quando estava à porta o São Miguel, terminava mais um ciclo das colheitas agrícolas.

O tempo, esse insensível — ‘que furtava a vida a todo o vivente’, como asseverava João Jerónimo, por corruptela, João ‘Jerolme’ — fruía, porque a Terra não parava no seu perpétuo movimento.

Estava prestes a entrar o outono.

Maria Santo e Bernardo Garrancho, o casal de velhos de que vimos dando razão, tinham terminado o longo arrendamento no Casal do Ayres Raposo para regressar ao cultivo dos seus haveres que ainda eram coisa que se visse.

Nessa época dava-se a grande feira de ano.

Na Vila, a Praça e o largo da Fonte Velha enchiam-se de tendeiros.

Tudo mexia.

Abundavam as barracas de mercadores de roupa e calçado para o inverno seguinte que se aproximava. Muitos, porém, preferiam mandar fazer as botas, os sapatos e os fatos, por medida, aos artistas da terra!

Todos ganhavam.

Transacionavam-se as loiças onde os noivos compravam o acervo da futura casa e vendia-se tudo o que fosse ferramenta agrícola. O Alma Grande da Póvoa, sorriso apalermado, bonomia de ‘homem grande, corpo de palha’, exibia pequenos utensílios caseiros e apetrechos vários, como costis, ratoeiras, armelas ou joeiras.

O Xis trazia os matraquilhos e via-se em apuros com a juventude de sangue na guelra, que dava azo à sua exaltação por entre o barulho do mecanismo das mesas e a algazarra do jogo!

Vinham os homens dos baloiços.

O Moisés ocupava, havia muitos anos, o seu espaço, a vender ouro!

 Logo pela manhã, uma intensa algazarra na zona destinada aos negociantes de gado, a vozearia dos homens confundia-se com os berros das cabras, o zurrar dos burros e o grunhir dos porcos!

— Quanto quer pelo bacorinho? — perguntou um homem a um feirante que vendia uma ninhada de leitões.  

— Olhe este que belo! São duas notas! — disse, trazendo um dos pequenos animais.

— Huumm … Isso é caro como o lume! E o berrelho parece um pouco ‘incanequedo’!

— Qual o quê?! É mais saudável que um pero! É da raça da mãe! Olhe para aquela estampa! Ver um animal daqueles, é um louvar a Deus! — e apontava para a porca parideira deitada, com os filhos agarrados às tetas. — Só de uma vez, da última barriga, teve doze! Leve o porquinho que vai bem servido. Assim Santo António lho projeta que para tudo é preciso ter sorte — justificava o vendedor.  

 

Os ciganos também marcavam presença com utilidades diversas, mas sobretudo com o seu tradicional negócio dos jericos!

— Quanto dá pelo ‘burranco’, amigo? — perguntou o cigano a um passante que olhava para um jumento que ele tinha à venda. O homem hesitou.

— O burro é muito grande…!

— Ai…! Ora vejam lá, a desfazer na mercadoria…! — volveu o cigano. 

— Não é isso, criatura! É que, não tenho que dar a fazer a um burro desse tamanho! — justificou o cliente meio desapontado.

— Ai…! Então, ‘sinhor’, não se zangue! Se em Portugal nos zangássemos por causa dos asnos, andava metade do país zangada com a outra metade. O que mais para aí há, são burros, ‘sinhor’!

Houve um certo gargalhar na roda dos ouvintes. Mas, o zíngaro voltou à liça, apaziguando os ânimos, pois não queria perder o potencial comprador:

— Leve lá o animal, ‘sinhor’, que está aqui uma linda besta para todo o serviço! Nesta feira não encontra segundo. Veja bem que tanto os joelhos dianteiros com os traseiros não se tocam; olhe para o peito largo e forçudo; aprecie os possantes quartos traseiros; deite bem os olhos por estes costados vigorosos; um animal sempre de olho vivo e orelhas em pé; dentição ainda nova…   

O homem interrompeu-o para reincidir:

— O burro é muito grande...! Come muito…! — defendia-se.

— Ai…! Essa gora…! Ai…! Não come não ‘sinhor’! Só come o ‘qui li’ dão…!  

O homem desinteressara-se do negócio e afastava-se do local.

— Ai… Venha cá, ‘sinhor’…! — insistia de longe o cigano. — Ai…! Dê lá uma palavra; quanto vale para si a cavalgadura?

E mais assim e mais assado.

Não obteve resposta. Ainda não fora desta que o freguês se decidira a comprar a alimária.   

As famílias desta etnia, não eram apenas negociantes. Saltimbancos das estradas, deambulavam pela Vila por períodos mais ou menos longos, ficando quase sempre aboletados no barracão do ti’ António Dias. Alguns traziam mesmo a comédia com atores, palhaços e equilibristas. Vinham com usos e costumes diferentes. Se um animal, porco ou galinha, morria sem se saber porquê, apressavam-se a perguntar:

— Ai…! Onde enterrou vossemecê o porquinho?

— Na horta — respondiam. — Mas olhe que o animal morreu de doença desconhecida… talvez uma febre. Não se deve comer!

— Ai… ‘sinhor’, não se incomode que nenhum de nós morre por causa disso!

Nada os demovia. Averiguavam do local onde tinha sido inumado o animal, desenterravam-no e comiam-no assado no acampamento, em festa! 

 

À enorme feira que nesse tempo tinha lugar, seguiam-se as Festas de Verão, que se alargavam por três ou quatro dias! Tão rijas, que competiam com as maiores das redondezas! Um colossal poderio de fogo que chegava, por vezes, às cento e vinte dúzias de foguetes lançados só na alvorada do dia principal da festa.

— Este ano vai haver uma alvorada que alto lá com ela! — gabavam-se os festeiros da comissão daquele ano, com o juiz à cabeça. — Havemos de fazer ver aos da festa passada e aos do Sobral!

Vinham dois fogueteiros de Oleiros que se propunham fazer detonar continuadamente todos os foguetes, a dar-lhes mecha e a atirá-los para a atmosfera, sem descanso!

Com os primeiros estouros viam-se passar, pelo ar, revoadas de pássaros, espavoridos, a procurar outras paragens; os cães ladravam àquela inusitada manhã barulhenta; as galinhas esparvadiças cacarejavam nos galinheiros inquietas, à toa. Alvoroçavam-se as gentes que acorriam ao Quintalinho para ver lançar e estalar o fogo!

Por duas horas, pum! pum! pum! pum! Uma singular forma de homenagear o Senhor Santo Cristo, a quem a Vila e arredores prestavam uma devoção em peso! 

Aquilo já se metia pelos ouvidos dentro. Os engenhos explosivos pirotécnicos eram para todos os gostos: de estralejar, de repetição, de parada e resposta e de tiro. A descarga encerrava, como era costume, com o lançamento de vinte e um morteiros, à guisa das celebrações militares! 

Por terem lugar pouco antes do início do outono, às vezes, os festejos, eram já molhados pelo tempo…! Por esses caminhos estuporados, com as primeiras chuvadas ou, todavia, repletos de poalha, com o sol ainda a pino, as gentes das vizinhanças, vinham descalças ou com sapatos velhos para poupar os novos, que só enfiavam nos pés à entrada da Vila! A fé inquebrantável fazia-as convergir para a Praça, onde se erigia a Igreja e tinham lugar os atos mais solenes. Aí se situava também o centro nevrálgico das Festas e se organizavam os bailes, regando-se o terreiro para não levantar pó! Entre música e venda de ofertas, apregoava-se, a espaços, pelos potentes altifalantes:

— Aparelhagem sonora, Silva Tinalhas…! Prefira sempre o nosso serviço! É mais caro, mas é melhor…!    

 

Verão após verão, festas após festas, assim se foram passando anos e mais anos; e sobre estes anos, ainda outros. A grande maioria das gentes vivia das terras, da lavoura. Foi por mor desse tempo e à custa de muito mourejar que, tisnadas pelo sol ou encarquilhadas pelo frio, as pessoas foram ganhando grossas rugas, como as que se viam nas faces da ti’ Maria Santo e do ti’ Bernardo Garrancho que durante todo o estio habitavam a sua Casa da Serra, como noutro passo já se deu nota.

Por todo esse período, como era habitual, os dois iam assistir à eucaristia dominical ao Casal da Serra, que ficava mais perto da sua fazenda e onde o padre Tomás se deslocava na sua égua, a celebrar, logo pela manhã.

No estio, os dias eram enormes!

Depois da missa, jantavam por volta do meio-dia velho. Da parte da tarde, depois de deixar o gado acomodado, Garrancho costumava descer à Vila para se abastecer dos produtos que as suas terras não produziam — arroz, massa, açúcar ou café — previamente comprados nos lojistas da Baixa e armazenados na Casa da Vila.

— Daqui até à noite é ainda um dia de inverno! Ó Maria, vou-me até lá abaixo buscar a mercearia — dizia para a mulher. Ela já sabia do que se tratava.

E punha-se a andar, a pé, até à Vila, como era costume, pelo caminho mais curto, deixando a ti’ Maria Santo sozinha na serra. Uma vereda que só admitia a passagem de pessoas ou animais, em fila indiana. Apenas transitava pela estrada da Cascalheira com a burra carregada. Esta via era mais larga mas, viajar por lá, era muito mais longe! Tirante, pois, essas situações especiais, vinha pela abrupta vereda abaixo, pela encosta, seguindo o trilho habitual. Passava pelas leiras do tio Augusto, ao lado da casa do Santinho e do Vermelho, fazendas e pinhais, bairro do Caldeira, ribeiro do Marzelo, Corredoura e chegava ao Cimo de Vila! Uma estirada! E de piso ruim! Quando acabava aquela via-sacra, desafrontava-se, sozinho, em voz alta:

— Raios parta o caminho! Coisa mais endemoninhada que isto é raro encontrar-se! Um homem escorrega, apanha umas esfoladelas nas pernas e levanta-se! Que remédio! Que havemos de fazer? — dizia a si próprio, com entono de lamentação.  

Em chegando ao cimo do povo, dirigia-se logo à sua Casa da Vila.

A habitação era grande, de acordo com os cabedais da família. O prédio fora construído em duas diferentes épocas, uma parte antiga outra mais recente. Estava cheia do que a terra dava. Na sala velha havia três grandes arcazes de semente de trigo, centeio e milho. Tirante a ração para o gado e a seleção da semente para o ano seguinte, o grão destinava-se à azenha para fazer a farinha que governava de pão a família no correr do ano. Na frescura do piso térreo, na adega, o grande pipo do vinho que chegava para dar e vender; na loja, as talhas de azeite, o bom porco na salgadeira, a rica azeitona nos escoureiros e os queijos nas tábuas a curar. No forro, as leguminosas secas, as castanhas, as batatas e as maçãs que duravam até março. Tudo devidamente acondicionado para evitar a bicharada.

Era uma edificação tradicional, robusta. As paredes tinham sido feitas em pedra predominantemente de granito de cantaria. A armação do telhado, o soalho e a varanda que dava para o casarão, espaço interior a céu aberto, era tudo em madeira de castanheiro, cortado em vigorosas sonaves, caibros e tábuas robustas, bem aparelhadas por considerados artistas! Parecia desafiar o tempo!  

— Ó cachopos — dizia Bernardo que, pela sua experiência, bem conhecia os materiais usados na construção — se quereis fazer uma casa, ponde-lhe castanho que, ao seco, é como o ferro! Dura várias vidas!

E, com efeito, assim era.  

 

Após meter num saco de serapilheira os produtos de que necessitava, punha-o às costas. Dava depois uma volta em redondo pela Baixa da Vila, na zona das vendas. Aí encontrava, inevitavelmente, alguns dos habituais conversadores de domingo e ainda havia tempo para confraternizar um pouco e beber alguns meios quartilhos. Falavam de negócios, das colheitas e do tempo. Como é que ia a vida, como é não ia. Com o copito a acompanhar, esses eram momentos propícios para afirmar as palavras de ordem com os velhos amigos. Numa sociedade esotérica, como são todas as tertúlias, os vocábulos solenemente pronunciados têm o seu significado próprio que revela saber, humor e pode ser verrinoso quanto baste.    

— Garrancho…! — pronunciava Bernardo, em voz alta, assim que assomava à porta da taberna! ‘Garrancho’ era o nome por que o conheciam na companha por ter o indicador direito, torto, como noutra ocasião já se referiu. — … É para arrebanhar! — concluía, em jeito irónico.

Com isto queria apenas dizer que não deixava por mãos alheias o dever de tratar do seu arranjinho, da sua vida, procurando angariar o melhor que ela lhe oferecesse.   

Alvoroçava-se a turba no interior.  

— O tempo! — respondia, de entre a malta, o João Jerónimo, por corruptela, João ‘Jerolme’, outro que pertencia ao habitual ajuntamento dos domingos.

Era a sua palavra.

O tempo — entendia ele — era o grande mestre que tudo dá e tudo tira e que, por fim, arrancará, inexoravelmente, a todos, a própria vida; e contra o qual não se podia lutar, restando, perante ele, apenas a resignação.

Por sua vez, o ti’ Francisco do Casal, clamava do outro lado com voz forte:

— Ou me eu engano!  

Nenhum homem pode ter em si toda a sabedoria! Humilde é aquele que aceita os seus limites.

— Ou me eu engano! — repetia sempre que iniciava uma conversa.

Reconhecer os seus erros e admitir enganar-se diz muito do caráter de um homem experimentado e sério.

Assim era ele.

Mas, encostado ao balcão da taberna, estava ainda, entre muitos, António Racha — outro dos habituais convivas, que lançou o seu grito:  

— Se for preciso racha-se já um diabo! — bradava, desafiador; razão por que era conhecido no grupo por aquele nome.

Mas, lá rachar, não rachava nada! Emborcava era vários copos de bagaceira, a sua bebida de eleição, logo de manhã cedo. Se a pomada fosse macia e forte — dizia quem o conhecia — ingeria-a como à água na Fonte Velha! Era preado por aguardente! Ah! homem excomungado! Não há caruncho que lhe entre!

Assim passeava ele, com altivez, os seus 90, rijos e feros!

 

E a estroinice na taberna do grupo dos afeiçoados conterrâneos, continuava assim, ainda por um bom naco de tempo, à boca da noite.  

Mas, bom, mais uns dichotes e virotes, mais uma rodada e estava feita a sossega; e Garrancho lá retornava serra acima, com o saco da mercearia ao ombro.

Era já noitinha, ao crepúsculo, quando deixou a assembleia da baiuca. Tinha muito que andar até ao alto da serra da Gardunha, onde ele e a mulher residiam regularmente até ao começo do tempo das chuvas; e onde ela o esperava naquela noite, desde que estivera sentada à porta, como noutra circunstância já foi relatado.

Passaram-se anos e anos a fazer este trajeto, serra abaixo, serra acima. Fizera estas voltas durante décadas! Este era apenas mais um desses domingos de calor em que Garrancho tinha ido à Vila fazer o habitual recado. Porém, a idade agora já não era a mesma. Enquanto se é novo é outra coisa.  

Principiava a cair sobre a povoação a penumbra do lusco-fusco e sentia-se algum frescor agradável àquela hora.

Mas passar dos oitenta pesava muito!

O tempo não perdoava.  

Os vultos das gentes começavam a andar penosamente, acometendo devagar contra o escuro; devagar, mas com a mesma obstinação com que Cristo caminhou para o Gólgota, para nos remir das enfermidades! Os transeuntes já não se divisavam uns aos outros, por mor da proximidade do fim do dia.

— Boa noite! — saudavam, surdamente os passantes. Os poucos candeeiros de querosene da iluminação pública, colocados estrategicamente às esquinas, que deveriam ser acesos todos os dias ao escurecer, há muito que não funcionavam!  

— Deus o guarde! — respondia Garrancho sem abrandar o passo. — Que caminhos do diacho temos nós que palmilhar neste mundo para ganhar a côdea! — remoía com os seus botões.

Mas lembrou-se da perseverança da mulher perante as contrariedades: ‘Deus não deixa nada ao acaso’!

Para a frente é que era o caminho!

 A ti’ Maria Santo, com o cair da noite, tinha deixado o poial da porta e recolhera-se ao interior da casa, encontrando-se a preparar a ceia, à espera que o homem chegasse. Eram horas do demo pelas quais ela já tinha passado muitas vezes, inquietada. Sabia lá o que podia acontecer ao homem pelos caminhos! Muito embora ele os conhecesse como a palma da mão, pois que os calcorreava desde criança! Mas, para um homem, a morte é certa e a hora incerta!

Como era costume no verão, continuavam as festas por muitas terras ali à volta. E calhou a ser, nesse domingo, a festa de ano do Casal da Serra. Alguns cachopos — seriam talvez uns seis ou sete — iam subindo àquele lugar, à procura de divertimento e — quem podia saber? — talvez de algum amor para a vida. Seguiam pelo mesmo trilho palmilhado pelo intrépido velho, montanha arriba.   

Mais ou menos a meio do caminho deram, justamente, com ele, por cima do Caldeira, mas já em plena serra. A ti’ Maria devia estar aflita. E não era a primeira vez.

A noite era jovem, mas a lua-cheia de agosto levantara-se, redonda, grandiosa, às primeiras horas da obscuridade, a lançar a sua claridade branca e fria sobre a terra, na noite límpida. Mas, como numa ilusão de amantes, a sua bela luz, não deixa ver com nitidez a realidade! Embora, como bem se compreende, para aqueles rapazes novos tal luminosidade bastasse!

O octogenário tinha perdido muita da sua visão. Para mais, bebera o seu copito na reunião da taberna.

Quando o interrogaram sobre a razão por que se encontrava ali, ele, que mal já caminhava, apenas respondeu:

— Eu não vejo! 

É certo que tinha permanecido na taberna da Vila com a noite já a avançar! Mas a carência de sua visão, não podia ser apenas a falta de claridade. Não havia dúvida: o problema estava na incapacidade dos seus olhos. Era esta que mais o afetava. Tinham os jovens que pensar na forma de o levar até ao alto, à Casa da Serra.  

Sendo ele um homem encorpado, dois rapazes cruzaram as mãos a fazer de cadeirinha e sentaram-no; lá o levaram por 20 metros através daquele caminho de Cristo. Depois, revezavam-se e outros dois cruzavam as mãos para o levar mais 20 metros.

Por fim e, a muito custo, alcançaram o seu destino e deixaram-no entregue à ti’ Maria Santo, devidamente acomodado e sentado num banco junto à lareira, parecendo ter recobrado algum conforto. Ela se encarregou de lhe pôr a ceia sobre a pequena mesa e de o encaminhar depois para o quarto improvisado, onde ficou deitado.

Levantou-se pela manhã. Com o novo dia de sol e com o cérebro porventura limpo de alguma gota de álcool proveniente de um ou outro copito do dia anterior, pareceu ter recuperado alguma visão. Não voltou, porém, a trabalhar como dantes; aquele episódio tinha sido o sinal iniludível da velhice!

— Já não me sinto capaz de fazer nada! — lamentava-se com a voz fraca e entrecortada.

Notório era que não tinha a energia de outrora; foi esmorecendo. O casal, ele mais, ela menos, achava-se bastante acabado! Alguns dias depois, os dois velhos resolveram descer, a custo, o trilho da serra e vieram instalar-se definitivamente na Casa da Vila, apesar de ainda não ter acabado o estio, estação até ao fim da qual eles, habitualmente, se mantinham no seu retiro da casa da fazenda, lá em riba.

Os filhos e netos tomaram conta de animais e terras que constituíram durante décadas o seu modo de vida.

Garrancho pela sua própria condição de homem cansado e, apesar de tratado com desvelo pela mulher, não mais largou a cama. Sentia-se cada vez mais fraco.

Não demorou muito tempo, entregou a alma ao Criador, na paz do seu lar, deixando um vazio terrível na alma da mulher.

E ela, depois de alguns anos, sem a presença daquele homem que desde sempre constituíra o alento e o sentido da sua vida, foi-se-lhe juntar nas mesmas condições de sossego, no seio da vasta família. 

O tempo, esse artista indolente, tinha conseguido os seus intentos como pressagiara João ‘Jerolme’! Acabaram a vida, neste mundo, para sempre! Mas não sem antes terem combinado, aquando da morte dele — por uma força inabalável em que ambos acreditavam — que um dia se voltariam a encontrar!

Mais um crepúsculo teve lugar na longa vida do casal. Este, porém, ao contrário de todos outros, tinha sido o último.   

  

Nota: neste texto podem ter sido usadas palavras ou expressões do léxico local ou regional que não constam dos dicionários oficiais.

       

JOSÉ BARROSO 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Crepúsculos - 1

A ti’ Maria Santo — improvável heroína destes enredos — caminhava para lá da oitava década!

Certa tarde, quase ao crepúsculo da noitinha, encontrava-se sozinha sentada no poial da porta de entrada da Casa da Serra. Uma porta que mandava balanço! Fora construída com fortíssimas ombreiras e valente lintel, tudo em grandes blocos de granito cortados no maciço da Gardunha. Depois de talhadas, estas pedras, pelo seu porte, requeriam, para serem assentes no lugar, a força de meia dúzia de homens, devidamente munidos de pistolos e pés-de-cabra.

Estava-se num domingo de verão como tantos outros que tinham passado pela sua existência. O dia aproximava-se do seu termo. Tanto quanto avançava para o epílogo a vida desta corajosa mulher, lenta, mas inexoravelmente! Tinha corrido uma tormenta de anos! Eram inenarráveis os trabalhos e canseiras a labutar de sol a sol para criar a numerosa prole!

Como todos nós, ela agira sempre, ao longo da vida, como se fosse eterna, como se quisesse viver para sempre! Pois que a inconsciência do andar do tempo é, afinal, o combustível da máquina do mundo. A pensar na morte nunca ninguém levantaria um dedo, nem delinearia qualquer plano e o homem não passaria de recoletor. O pior é que essa leviandade também provoca muita presunção no ser humano. A sensação de imortalidade, enquanto respira saúde, leva-o, muitas vezes, aos maiores desvarios!  

Sobre isto, ouviam-se, os antigos homens da Vila, que cavaqueavam e apreciavam o bom dichote e a sábia opinião, fruto da prática da vivência acumulada. Necessário era apenas que estivessem de maré favorável. Nestes ajuntamentos os homens matavam o tempo que lhes restava. Já era pouco, mas, longe de o desperdiçarem, enriqueciam-se mutuamente. Os jovens, esses, não estavam para os ouvir! Iam muito distantes as épocas em que as assembleias dos Anciãos botavam lei! Tempos em que os mais idosos eram considerados e respeitados pela comunidade, pela sua experiência e saber; e não lançados em hospícios à espera do fim, como peças de fraco préstimo! Os filhos deixaram de ter tempo para cuidar dos pais. São os custos do progresso, onde a materialidade se antepõe ao amor, a economia supera a política e o ser humano, em vez de se sobrepor à coisa, subordina-se-lhe! ‘Quo vadis homini’?

Aqueles velhos, ao tempo, porém, sentavam-se a um canto da Praça, num banco ou no muro de granito, perto de uma pilastra, a conversar.   

— Dai graças a Deus por ainda caminhardes nesta vida…! — dizia pausadamente o Chequim do Pontão, abrindo as hostilidades. ‘Chequim’ era uma corruptela de Joaquim! O linguajar não é um erro do idioma, é antes a arte local do falar!

E prosseguia:  

— Enquanto por aqui deambulardes, nem que seja por mais uns escassos dez anos, podereis ainda dar volta a muita coisa…!  

— Ora adeus! — replicou o José Latoeiro, assim apelidado por ter sido essa a sua profissão durante toda a vida. — Para nós, que estamos perto da morte, o que são dez anos comparados com a eternidade que nos espera para breve? — questionava.  

— Dez anos para um vivo é um bom migalho de tempo, se pensarmos no prazo total da licença! — avaliou o Jaime do Forno.

— Qual licença? — interrogaram.

— Qual há de ser? A que um homem tira para poder andar por cá! — reafirmou.

Riram.

Mas ele continuou:

 — O tempo para os vivos não é o mesmo que para os mortos!

— Pois não…! — acudiu, adiantando-se ao grupo, o Manuel Azenha, que morava no Moinho de Cima.

— Então aí tendes! Durante dez anos está-se com a família, convive-se com os filhos, abraçam-se os netos e conversa-se com os amigos…! — prosseguiu Jaime. — As pequenas coisas e não os grandes feitos, é que dão felicidade!

— Lá nisso tens toda a razão. — admitiu o Carlos do Chão do Gaio.

— … Por isso — concluiu o do Forno — como se está a ver, uma década para um vivo é ainda muito tempo, ao passo que para um defunto não é nada!

— É verdade! Nunca as tuas palavras foram tão certas! Começo a estar da tua banda, ó compadre — concordou o João do Pinheiro, que tinha o seu rapaz do meio casado com a filha mais nova do interlocutor.

— Quando se morre, a roda do tempo deixa de girar. Entra-se na infinidade. Aí não há tempo! Um dia tudo terminará! Loucos são os que julgam que nunca acabam…! — filosofou o Julião da Farmácia.

— Está claro! Muitos andam é distraídos…! — dissera ainda o Albertino da Rosa.   

 — Pois, com certeza! — responderam os outros.    

E o palratório da companhia continuava animado como se fosse um exercício de preparação para, no fim, irem, em malta, molhar a palavra, bebendo a sossega na taberna da Viúva ou do João Coxo, no meio do habitual relambório que a exaltação do tinto fazia crescer ainda mais.

 

Mas alguns espertalhões davam ares de intemporalidade: a trabalhar até desoras; a ir ao babeiro só à meia-noite de sábado; sem tempo para nada e sempre sobejos, a querer este mundo e o outro…! À bazófia desses, quem melhor respondia era o padre Leal com os rasgos arrebatados das suas pregações.     

Por muitos anos, veio ele à Vila fazer os sermões da Semana Santa.

— Deus lance sobre vós o Seu perdão, ingratas criaturas! Longo é o caminho que passa pelo Além, mas curta é existência na Terra! — augurava!

Homem de figura alta e larga, envergava batina negra, peça única, inteiriça, até aos pés, ampla de mangas a tocar os pulsos, como um tribuno! Com a sua eloquência e voz tonitruante, fazia chorar as pedras da calçada velha! As mulheres, essas, desfaziam-se em pranto com a oratória do vigoroso padre, incisiva e certeira nas suas prédicas, a apelar ao sentimento.

Na piedosa procissão dos Passos, em cima do púlpito amovível de madeira na Crucifixão do Calvário ou sobre o muro da Casa Cunha, no Encontro da Fonte Velha, era daí que falava à multidão. Da carga dramática se encarregaria ele, com o seu verbo, o tom enérgico e o gesto impetuoso e preciso. Habilidosamente, fazia resvalar sempre a alocução para o tema dos mineiros debaixo do chão nas minas da Panasqueira, onde trabalhou uma geração de homens da Vila; ou para o dos soldados na guerra do Ultramar para onde era despejada a juventude do país!

E concretizava:

— Caros irmãos, tende prudência na vossa vida! Tudo termina em breve! Ligeiros são os dias, mesmo para aqueles que se julgam mais pegados às coisas terrenas! As facilidades e prazeres efémeros do nosso quotidiano, são enganos a que preside o Maligno. O Mundo, o Demónio e a Carne querem a vossa perdição! E a morte em pecado mortal pode sobrevir a qualquer momento, a velhos ou novos, porque os desígnios de Deus são insondáveis. Previnam-se e vigiem! A recompensa não pode ser igual para todos, porque então Deus não seria justo! O prémio só pode ser segundo a obra e a fé de cada um!

E mais isto e mais aquilo, ali lançava o anátema sobre os ouvintes, como na época era de uso, pobres e amedrontadas criaturas, rústicos campesinos, cuja face encarquilhada pelo frio dos invernos, pendia ainda mais com o peso da culpa, mormente daqueles que mais se sentiam relapsos com a Igreja.

Após o discurso, ouvia-se um certo rumor, um pigarrear respeitoso de regularização do fôlego que tinha estado um pouco em suspenso durante a dissertação; e alguns homens, também tocados pelas palavras, sussurravam:

— Sim, senhor…!  

— Que grande sermão!

— É um grande pregador…!

— E que timbre de voz!

Outros e bons tempos!

 

A ti’ Maria Santo sempre fora, pois, uma mulher de ação! Um poço de génio e inquietude. Danada para a vida! Nisso, superava o homem, o ti’ Bernardo Garrancho — o outro inverosímil protagonista destas mal amanhadas linhas — que com ela jornadeava pela existência fora, havia uma porrada de tempo! E cuja vida se encaminhava, igualmente, para o seu término.

O tal que, como noutras ocasiões já se aludiu, devia o nome ‘Garrancho’ ao facto de possuir o indicador direito, torto; tinha ficado curvado para dentro, por mor de um acidente com a tesoura de podar!  

Aquilo lá terá mexido com o osso e o tendão! Era o mais certo! A mulher é que lhe fizera o tratamento. Depois de desinfetar o dedo com aguardente, enrolou-lhe um paninho lavado, apertado quanto bastasse, por forma a estancar o sangue. Passadas as dores, a ferida foi sarando, como sezoavam as mazelas dos animais! Era tudo carne! Havia de se curar! Mas, por fim, o dedo quedou-se, ganhando a forma da posição do curativo.

Deixá-lo! O principal era que, quando recuperada, a mão pudesse continuar com suficiente funcionalidade. Punha sempre uma tala, quando uma cabra partia uma perna; mas, se fizesse o mesmo com o homem, o dedo em vez de torto, poderia ficar permanentemente ereto

— Credo! — enriçava-se ela!

Isso, de facto, seria pior! Entre uma coisa e outra, o melhor era que solidificasse curvado! Assim, já estava pronto para agarrar o cabo da enxada, o rabo do arado ou outra qualquer ferramenta de trabalho…! 

Gentes devotas que, para santas só lhes faltava a auréola! Arcavam com os aleijões e os estropiamentos com a mesma modéstia com que assumiam as fatalidades da sua condição! Dentes cerrados perante a adversidade, exigiam apenas poder trabalhar! Tinham, contudo, o seu desabafo:

— Ora, uma destas, hã! — queixava-se Garrancho quando se viu sem aptidão para tratar da vida, apenas com a mão esquerda boa, a poder laborar! — Fica um homem para aqui sem poder fazer nada! — descoroçoava.

Estava impossibilitado de executar alguns dos trabalhos mais simples; nem sequer podia traçar a comida para a burra. Embora não se irritasse — que não era homem para isso — incomodava-se por ver a mulher esforçada, obrigada a ajudar nos serviços que não lhe estavam cometidos e muito para além das tarefas de casa que lhe eram confiadas.

‘Do mal, o menos’ — pensou o estoico serrano, como pensa qualquer português! — ‘podia ser pior’!

É que, mesmo assim, ainda podia levar as cabras para o mato. Com o cajado de marmeleiro de dois metros de comprimento na mão esquerda, podia guardá-las, auxiliado pelo Tejo, o cão! Além disso, falava com as cabras e dizia as palavras habituais de incentivo ou retração do rebanho, conforme o que mais lhe conviesse; nunca é fácil lidar com um coletivo mesmo sendo — ou por ser — de animais! Ponto era, porém, que o controlasse.

— Ai o raio parta as cabras e mais o diabo! Vamos lá! — e elas avançavam. Mas também podia falar noutro tom, sempre com voz firme:

— Alto aí…! Eh! lambisqueiras! Quem é que vos mandou passar para lá do marco da estrema?!

Fazia um gesto com o varapau para meter medo, ao mesmo tempo que, por suas próprias e boas artes labiais, lançava um agudo assobio — zííííífff…! — a cortar os ares. O som estridente ecoava pelas redondezas, fazendo levantar num voo cavo e uníssono, todos à uma, o bando de pardais que debicava o rolheiro do centeio que aguardava a malha perto da eira.  

O rebanho estacava assustadiço, a perscrutar o dono; e ele dava-lhe nova voz de comando:

— Rodem lá para trás que isto aqui não é vosso!

E elas obedeciam.

 

Com a mão do homem empanada, a mulher sempre haveria de fazer certas tarefas inadiáveis, sob pena de a vida deles, tal como estava organizada, se tornar incomportável. Os filhos, já casados, nem sempre calhava estarem disponíveis para ajudar. Em certos anos, nas alturas de aperto, pelas malhas ou pela colheita da azeitona, até já tinham trazido um ou dois homens a trabalhar por dia; podia ser a seco ou incluir o jantar ao meio-dia. Comia-se do que havia: a boa sopa de feijão, batata e couve, com um pouco de massa, onde era cozido um bocado de toucinho da salgadeira que servia de conduto. Cada um punha uma boa talhada em cima que uma grande fatia de broa e iam manobrando a navalha; cortavam pequenos pedaços, ora de uma, ora de outra e metiam na boca, saboreando pausadamente a refeição e conversando um pouco. Acompanhavam com azeitonas e emborcavam um ou dois copos de tinto. Comiam fruta da época da fazenda.

— O descanso está feito e o corpo refeito. Estais comidos e bebidos! Ide à vida! — dizia Garrancho incentivando-os ao trabalho! E eles lá iam, às vezes com um gesto a adivinhar uma pontinha de preguiça, a indiciar que os corpos queriam ainda permanecer na modorra por mais algum tempo.   

  

Mas, bem, fora dessas épocas, a ti’ Maria Santo, enquanto o homem não recuperava por completo, ia ordenhando as cabras. Quando havia cabritos pequenos, era só ordenhada uma teta a cada cabra parida; mesmo assim, com o sentido nos filhos, elas encolhiam parte do leite.

— Andem lá, minhas doidas, não se façam rogadas; têm aí muito leitinho para os meninos! — assim falava ela para as chibas, passando-lhes a mão pelo lombo para as descontrair e melhor tirar o precioso líquido proteico, tão necessário para o almoço, logo pela manhã cedo, como para manutenção da queijaria.

Os cabritos tinham que se contentar com o resto do amojo; no fim, apartava-os para o chiqueiro. Punha na manjedoura da burra os caneirões e a palha, ainda que sem serem traçados; chegava o feno ao comedouro das cabras, na loja, e dava de comer aos outros vivos: porcos, galinhas e coelhos. Fazia ainda as regas e outros trabalhos menos pesados. Mulher piedosa de ‘antes crer que conhecer’, estava sempre pronta a compreender os excessos pedidos pela dura existência!

— Valha-nos Deus, valha, valha, porque Ele não deixa nada ao acaso! — dizia para o ti’ Bernardo. — O que se perde em sofrimento, ganha-se em redenção!

 

Ela era mais baixa de compleição que o homem. Ele, de boa estatura corporal, mas tranquilo e com uma alma a condizer! A sua quietude não lhe tirava, porém, a afoiteza e a ocasião de levantar a voz quando necessário; não andava ali a papar moscas! Qualidades que lhe vinham do tempo em que teve que conter os filhos — que nem tanto as filhas! — mocetões encorpados, quando estes ainda tinham demasiado sangue na guelra.

A sua Casa da Vila batia, lá atrás, cozinha com cozinha, com a do Chico Cigano. E Bernardo apercebia-se, à noite, da ladainha do patriarca quando este tentava, a custo, indagar do cerne das discussões de família, bradando, alto e bom som, em castelhano:  

‘Que te passa’?!

Tanta vez o ti’ Bernardo ouviu o vizinho, que começou, ele mesmo, a repetir, quando se altercava com os filhos:

— ‘Que te passa’?!

Como ouvia ao amigo Cigano.

A expressão, dita assim, tal e qual, em língua estrangeira, fazia estacar a vozearia e passou a impor o respeito, quer numa, quer na outra casa!

Garrancho seguia depois com a descompostura do costume.  

— Quem não tem olhos que os abra! Orelha no ar, hã! Não tomem caminho não…! — advertia. — Aquele que bem fizer a cama, nela se deita! — concluía ainda, em jeito de aviso, para os suster que, naquelas idades, alguns começavam a querer trepar e mandar mais que o pai.

Mas ele admoestava-os:

— Ato lá! Aonde é que já chegámos? — eles quedavam por respeito. Caso contrário, mesmo já taludos, podia ser o cabo dos trabalhos. E insistia:

— Debaixo do meu teto mando eu! Cai-te uma orelhada na cara que te viro para o outro lado…! — intimidava.

Os rapagões até tinham arcaboiço para a suportar. Mas, se isso acontecesse — tem-te senão levas mais! — o melhor era calar e ficar com ela!

E assim alcançava Garrancho a ordem e o equilíbrio necessário à paz do lar.

 

De maneiras que, ela e ele, complementavam-se! Tirante aquela época, um pouco atribulada, em que teve que se impor a educar a progenitura, lá caminhavam pacificamente e sem alaridos. Gente muito palradora desassossega o espírito; e no caos ninguém sabe onde fica o norte. Por isso, o barco de muitos, na Vila, andava frequentemente à deriva. Mas, graças se dessem ao Santíssimo Sacramento, o mesmo não acontecia com o seu arranjinho comum, para o que muito contribuía a firmeza e serenidade do timoneiro.

Tratava-se de um casal com certos haveres em terras, gados e lavouras, como algumas vezes também se tem notado. Situar-se-iam um bocado acima da maioria, porque tinham, de seu, mais do que a média dos pequenos agricultores de subsistência. Chegaram — calcule-se bem! — a ser rendeiros do Casal do Ayres Raposo, homem de avultados meios que, em posses, ficaria logo abaixo das casas mais nobres da Vila. Ali lhes havia nascido a maior parte da vasta descendência, homens e mulheres! Acabado este arrendamento, rumaram a ocupar a sua propriedade da Serra, onde agora se encontravam, a que acrescia o cultivo de outros pedaços nos Aldeões e na Fonte da Portela.

‘Cada um quere-se com as suas coisas.’ — ruminava Garrancho para a mulher.

Quando decidiram ir tratar o que era seu, levaram consigo dois rebanhos: o dos filhos e o das cabras; e ainda, como é bom de ver, todos os atafais precisos para a vida da lavoura.

Como se entrevê, Garrancho, nestas andanças, governava bem a sua vida. No decorrer da sua longa experiência de homem do campo, também aprendera a ajuizar o tempo na roda das estações do ano; fazia-o quase tão acertadamente como o Almanaque de S. Miguel previa, de acordo com a sabedoria dos entendidos, as luas e os eclipses! Se, ao pôr-do-sol, via uma orla de nuvens escuras e grossas sobre a imponente serra do Ingarnal, lá longe, a poente, opinava em conferência com os vizinhos, em certos dias, à porta da Casa da Vila, quando todos estavam a regressar das fazendas:  

— Ó rapazes, estais a ver além aquela barda? Se ela fecha cá para o nosso lado, amanhã temos chuva! Assim eu tivesse a certeza de entrar no reino dos eleitos!

Lá cantava o bardo ou vate da Gardunha, inspirado noutro homem de sabedoria popular:  

 

Conhecia o passado,

Previa o futuro,

E tinha vistas largas… (a)

 

Desse mesmo dom de vaticínio gozava Garrancho! Com efeito, aquele fenómeno meteorológico das nuvens, começava a aparecer por volta do fim do verão, com os primeiros indícios do tempo incerto, quando se verificava o equinócio de setembro e estava prestes a entrar o outono, ali pela festa dos anjos guardiães, Miguel, Rafael e Gabriel.

Era a época do termo do ciclo dos frutos de verão e dos cultivos de regadio, batatas e milho. Faziam-se as contas do ano agrícola, terminavam alguns arrendamentos rurais e celebravam-se outros e um ciclo, igualmente, findava. Assim aconteceu no Casal do Ayres Raposo. Doravante os dois velhos voltaram a empossar-se dos teres e haveres de que eram senhorios. Um crepúsculo mais ocorrera, para que outro dia pudesse ressurgir.

A vida, acreditavam eles, havia de continuar.

 

(a) Fernando Pereira, Tobias

Nota: neste texto podem ter sido usadas palavras ou expressões do léxico local ou regional que não constam dos dicionários oficiais.

       

JOSÉ BARROSO

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Remoer pecados velhos


Os meus padrinhos resolveram pôr-me o nome de Idalino Justo.
Fruto dos anos que Nosso Senhor me deixou acumular até hoje, a lista de memórias enche já uma arca grande das antigas e dou comigo a vasculhar lembranças e a remoer pecados velhos.  
Ora, existiu em tempos um rapaz — não haveria entre as nossas idades uma diferença de metro — que, de seu próprio nome, se chamava António e nascera de família Assunção.
Se não podemos escolher os nossos vizinhos ou os camaradas de trabalho, logramos, pelo menos, eleger os nossos amigos. Porque nascêramos na mesma terra, éramos genuinamente afeiçoados, mas um poucochinho mariolas. Um poucochinho é favor, embora — creio eu, que sou suspeito — não tivéssemos, propriamente, um ruim caráter. Enfim, possuiríamos aquilo a que um outro companheiro nosso costumava chamar “velhacaria boa”.
Coisas da idade!
Aos domingos à tarde, no verão, sendo propício, aventurávamo-nos à marouva, mas deitávamos os olhos por largo, não fossem os donos estar de vigia; ou podíamos optar por nos divertir a esconder as fatiotas dos que nadavam, em pelote, no açude do Plome. O pior era se a roupa pertencia a alguns dos mais taludos que já exibiam no púbis excrescências filiformes porque, nesse caso, corríamos o risco de pagar o atrevimento com um bom caldo no pescoço. E bico calado!    
Muitos chamavam ao moço António, o “Picado”, por mor de algumas marcas no rosto deixadas pelas bexigas negras. Aquelas a que os estudiosos das moléstias chamavam varíola.  
Chegaram-lhe em pequeno. Esteve às portas da morte e, por isso, muito perto dos pórticos dourados do paraíso. Um lugar que ninguém quer antes de tempo, por mais idílico que no-lo pintem! Escapou!
Propalava sua mãe que o pequeno se livrara da terrível doença, por intervenção miraculosa de S. Sebastião. O santo e valoroso militar sacrificado a mãos ímpias que, no coro dos eleitos, tem o particular crédito de afastar as pragas.
Pelo menos ela assim acreditava, no fundo do seu coração de mãe. Pois que, muitos foram os infetados por aquela enfermidade que acabaram por perecer, mas mais ainda foram os que sobreviveram. Bem precisávamos agora do santo. É uma questão de o invocarmos, porque lá diz o Mestre nos Evangelhos: “Pedi e dar-se-vos-á.”   

As nossas famílias eram oriundas de um maciço granítico com penhascos nos pontos mais elevados, próximo dos lugares onde acabava a cordilheira central da Meseta Ibérica. Se se olhasse a montanha lá de baixo das fitas das estradas que serpenteavam na planura, podia destrinçar-se na bruma azulada e leitosa dos serros, o alvejar das casas dispersas pelas clareiras, como peças de roupa branca a corar na relva das margens do Açude das Passadouras.  
No chão hostil se fixaram gerações de camponeses. Muito sangue celta e lusitano haveria por ali! Não conheciam outra forma de sobreviver que não fosse o cultivo da terra. Arrostar com as dificuldades dos trabalhos do campo na paisagem inóspita serrana, requeria homens e mulheres de grande têmpera, endurecidos aos sóis dos séculos.   
Neles, certamente, se terá inspirado o poeta:
“Eu nasci na Beira,
Sou homem pequeno,
Sou como granito,
Bem rijo e moreno.” (a)
Gente que foi capaz de colocar em alerta a própria Roma invasora, que pagou caro o seu atrevimento; e que só por meio da vil traição levou a cabo os seus intentos de conquista. Para submeter os bravos monteses, foi necessário que se desonrassem os Césares!  
António era o mais serôdio — terá mesmo vindo a destempo — com relação aos outros irmãos, cinco rapazes e duas raparigas, todos sãos e perfeitos, que os benzera Deus. Compunham a prole de Maria José e Manuel Assunção.
Chegada que foi a idade, António iniciou a frequência escolar. Poder aprender, era um sinal dos tempos. Não passou, porém, essa época sem que houvesse grandes inquietações para o pai, dadas as exigências que estavam a nascer, que vinham ao invés dos costumes que sempre vigoraram naquelas regiões. Entre filho de lavrador e filho de peixe há apenas a diferença do meio. Tudo apontava, portanto, para que o pequeno seguisse as pisadas do pai. Não era fácil modificar as costumeiras regras de séculos. Mas com a alteração da política no país, sentiam-se ventos de mudança. Valha a verdade — que deve estar sempre nos espíritos bem intencionados — o rapaz começou a achar-se descontente.
Andava farto de guardar cabras, lavrar a terra e carregar molhos de mato. E competia às gerações mais novas mudar alguma coisa. Da cidade capital, os ecos eram de que o país deveria progredir; queriam a mocidade nas escolas. Dantes, as leis nem chegavam à serra. Todavia, algo parecia estar a mudar e já não era como no tempo da Patuleia — rolara entretanto uma rima de anos — em que cada um fazia o que queria. Passou a ser um caso sério não acatar as ordens de quem mandava.
Então, o moço principiou a ler os livros e a cursar as aulas, em alguns dias da semana, mas de forma, por enquanto, muito pouco regular. Tinha que trabalhar nas terras do pai, uma fazenda que ainda era coisa que se visse!
Mesmo nos dias em que dava um salto à escola, o progenitor não o dispensava de ter que ajudar. Assim que regressava a casa, o pequeno pegureiro via-se obrigado a atirar a bolsa dos livros para um canto e toca de ir guardar o rebanho ou auxiliar os irmãos mais velhos na lavoura. Não podia fazer os deveres nem estudar a lição.
Manuel ainda não tinha assimilado os novos tempos e fora a mulher, a Maria José, quem primeiro trouxera a novidade. Tinha sido chamada por causa do filho e o recado que lhe dera a Zita, a contínua da escola, era que o garoto mais novo, o António, ainda em idade escolar, andava a dar muitas faltas e isso não podia continuar!  
— O governo quer que os catraios vão à escola todos os dias, Manuel. Há ordens! — dizia ela para o marido, à noite, quando todos estavam reunidos a cear. Contando as mulheres dos filhos mais velhos e os netos, ainda pequeninos, ao todo, eram doze à volta da enorme mesa de carvalho da ampla cozinha.
Estava visto que o Manuel não podia andar com tibiezas em relação ao filho mais novo que, uns dias ia à escola, outros não. Não podia fazer o que fizera com os outros que nunca aprenderam a ler que prestasse. Aquilo agora era a sério!
— Por modos — continuou a mulher — querem dar algumas letras aos mais novos para o país avançar! Sendo assim, por mais que te custe, homem, agora não é como dantes. O nosso António tem que ir à escola todos os dias. Tens que meter isso na cabeça de uma vez por todas! Não vão eles meter-nos por aí em trabalhos! 
Eles, eram os do governo.
Foi só então que o Manuel tomou verdadeira consciência do caso. As palavras da mulher, ditas daquela forma tão clara e aberta em frente de toda a família, estouraram que nem um foguete de tiro em casa do Assunção.  
E não era tudo. A professora mandava mesmo avisar, pela boca da Zita que, caso as ordens não fossem cumpridas, se preciso fosse, a Guarda Republicana se encarregaria de passar lá por casa e depois logo se veria...! O mais certo era o Manuel ter que pagar a multa de oitenta mil e quinhentos.
— Isso pode lá ser! Quase três semanas de trabalho de um homem! — vociferava, tonto de todo.
— Atreve-te, Manuel, e verás! — insistia a mulher. — Pagas a multa e, no fim, sempre tens que abrir mão do António.  
— Ir todos os dias para à escola! Ora essa! — contestava o agricultor num misto de irritação e lamento.
— Não há dúvida! Isso é para os ricos! Que rendimento é que dá a escola? Ná! Quem pode trabalhar, tem que trabalhar…! Na fazenda há que fazer para todos! E na minha casa não há lugar para figurões!
O caso não era de morte, mas parecia. Em tantos anos, nunca houvera razão para que se visse o homem tão altercado! Ele que até tinha fechado os olhos naqueles raros dias em que o rapaz fora à escola. Mas, quererem impor-lhe um preceito como se põe um barbilho a um chibo, deixava-o das avessas!
— Ora uma destas! Quererem pôr-me o rapaz todos os dias à boa vida, sentado num banco! Se já se viu isto! Tenho um rebanho de mais de oitenta cabeças de gado para guardar! Quem é que me resolve a minha vida? O governo sabe lá o que anda a fazer! — bradava o Manuel Assunção; e retornava:
— Homessa! Levarem-me o moço para a calhandrice, a aprender coisas que não fazem falta nenhuma…! Letras são tretas! — lastimava o velho lavrador.

Mas, lei, é lei e pronto! O Manuel nada podia fazer. Por jeitos, até lhe soara que o homem que governava em Lisboa não era lá muito bom de assoar! E não teve outro remédio senão deixar ir o filho diariamente à escola como mandavam as normas. Bem lhe custou!
Então o António lá ia todos dias de manhã, a pé, da fazenda até à escola — e se aquilo era um esticão! — aprender as letras, os números e a história de Portugal. A sua vida foi andando desta forma durante alguns anos. Quando chegou a altura, foi à cidade, com os outros, fazer o exame. Em simultâneo com a escola, fizera também a catequese e a comunhão. Para o pai terminara o pesadelo. Precisava do filho e este, finalmente, estava liberto. No entanto, não era tudo. Este filho mais novo reservava aos progenitores outras surpresas.      
O pequeno medrou, fez-se rapazote e trepou a mocetão desempenado. Na idade própria foi às sortes e calhou a livrar-se da vida de soldado. Subiu a homem casadoiro. Porém, desde que espigara, crescera nele a curiosidade. A escola ajudara-o a espertar. A vontade de saber coisas novas e perscrutar outros horizontes estava bem viva no seu pensamento. 
Cedo principiara a ouvir falar os irmãos mais velhos do tempo da tropa passado em Lisboa e a vida na grande cidade. Onde as ruas fervilhavam apinhadas e as turbas se contorciam; os elétricos e os automóveis faziam elevar no ar a troada dos seus motores e os estrépitos das buzinas. Ansiava caminhar nas largas avenidas de traçado retilíneo, com áleas de árvores intermináveis! O mar a entrar pelo Tejo, os grandes edifícios a ladear as alamedas, lojas, teatros, cinemas, restaurantes e monumentos históricos. Os homens sempre engravatados e as mulheres a passear-se pela rua ostentando belos vestidos da moda, lavados e bem cheirosos.
Até então, ele sabia apenas o que era andar com cabras e ovelhas e com a burra pela trela, a picar os bois presos ao carro ou ao arado; jornadear descuidado, a olhar o horizonte, o sol e os fragmentos de nuvens brancas no azul claro do céu; admirar as copas verdes das árvores, a floração variada e as cores dos frutos maduros; ouvir os sons campestres dos pássaros a gorjear desde manhã cedo, compondo uma sinfonia inimitável; chapinhar nas mansas e claras águas da ribeira onde os peixes lhe fugiam por entre os dedos ou desafiar, no inverno, as fortes correntes que desciam da serra e saltavam das cascatas, desfazendo-se em espuma; apanhar chuvadas e escutar o vento nas ramadas, a sibilar nos telhados ou a assobiar nas frestas das portas!
Tinha afeto às coisas, pessoas e lugares da sua infância, o que o fazia agarrar fortemente ao pedaço de terra que o vira nascer. Conhecia cada bloco de granito do muro da praça e do pelourinho, a musicalidade lamurienta da fonte antiga, velha de séculos, de bicas a correr incessantemente, onde bebia água ainda que não tivesse sede. Sabia de cada pedra da calçada, onde passara mil vezes a caminho da escola, gravando numa delas, a riscos de tijolo, o termo mais custoso da tabuada 8x7=56, para o decorar!

Mas a curiosidade espicaçava-o! Num certo dia, o mano mais velho que conhecia a sua ansiedade, puxou-o para um canto da casa.
— Olha lá, moço — disse-lhe, pondo-lhe amigavelmente a mão no ombro — já sabes como é isto aqui. Se queres fugir a esta existência de canseiras, tens que te botar a Lisboa. As terras não dão para a côdea. Se tencionas governar melhor a vida, tens que te abalançar a outros voos. À espera da herança, não chegas a chambaril. Somos muitos irmãos e caberá tuta e meia a cada um. Nós somos mais velhos, arrumámos casa, possuímos as nossas próprias famílias e ligámo-nos à terra; cá havemos de nos arranjar. Mas nunca poupámos dois réis. — lamentava-se o mais velho dos irmãos.
— Tu vieste noutra época; foste à escola e encarrilhaste com as letras. O pai podia bem ter-te mandado ao latim do seminário. Sei que ele quer o bem dos filhos e da mulher, mas é de outra época e não muda. Quando casou com a mãe deu-lhe a entender que era um às de ouros; que, com os bocados que tinha, lhe proporcionava uma vida regalada: fidalga de casa, chinelinha no pé branco e criada grave! Mas qual?! Trouxe-a sempre vergada à terra! Talvez um dia, com os pés para a cova, caia nele e bata na cabeça com os nós dos dedos e não sinta dor! — dizia com tristeza. 
— Mas pode ser que ainda não se tenha perdido tudo. Vê se arranjas emprego na Carris ou nalgum grande armazém comercial. Pudéramos nós concretizar o que tu ainda estás a tempo de fazer. Assim, terás com que comer, andas sempre lavado e limpo e cai-te nas mãos um ordenado certo todos os meses sem te queimares ao sol. É melhor tratares de meter os pés a caminho. A tua parte da herança cá te ficará guardada — asseverava.
Nos olhos de António crescia um brilho límpido, diamantino. Se o irmão lhe dizia aquilo, ele que tinha andado na tropa, conhecia o mundo e tinha tantos calos nas mãos, era porque devia ser verdade.
— É melhor escreveres ao tio Liberato que anda por lá há muito tempo e verás o que ele pode fazer por ti.

Passou um bom par semanas. Ao cabo, o correio trouxe a resposta do tio ao pedido do sobrinho. Que sim, que se arranjava lá uma vaga no armazém. Depois de estar encaixado e receber a sua paga, podia depois o moço espreitar o furo e deitar os olhos por largo. Com as letras que tinha, em terra de oportunidades, sempre podia tirar as cartas e subir na vida; ou entrar para o Estado onde ganhava menos, mas era sempre certo. Que tratasse das coisas, que se preparasse e que fosse procurá-lo na morada que enviava. Até receber a primeira féria, podia ficar lá em casa; depois, que remédio, teria que se orientar e tratar de vida!
Tinha o jovem o destino traçado. Sonhava havia muito tempo com a ida para a grande cidade e tinha agora o apoio do tio.
Felizmente, tudo correou como planeado. Chegou à cidade, iniciou o seu trabalho e acomodou-se. Passado algum tempo voltou à terra e concertou o namoro com uma rapariga desenxovalhada e trabalhadeira. Muitos o viram, tão grave que parecia um doutor, de fato e gravata, barba feita, bem penteado, brilhantina e água de cheiro! Mais tarde regressou para casar e levou a Arnaldina — assim se chamava a moça — e tiveram vários filhos. Os tempos de andar de safões e de botas de pneu já lá iam. Assentaram e por lá andaram mais de 50 anos!  
António foi conhecendo o encanto dos lugares por onde andava; e o facto de já ter família própria, fê-lo pegar de estaca por outras paragens. Voltava à vila só nos verões, com a prole, a matar saudades. E quando soou a hora, teve que acompanhar, primeiro o pai e, mais tarde, a mãe, à sua última morada, nos tristes e sombrios dias das suas mortes.

Aquela tormenta de anos em Lisboa passou por António como uma brisa a dar na erva tenra dos lameiros à beira da ribeira; tão suave e ligeira que não se dava por ela a agitar as folhas de mansinho. O tempo fugiu-lhe debaixo dos pés, mais veloz que um raio a riscar o horizonte. Pouco a pouco tornou-se num homem maduro, o cabelo foi mudando paulatinamente para grisalho e os anos fizeram-no aproximar-se da idade de Manuel, o pai, quando se despedira da família para rumar a Lisboa, ao seu destino. Nunca quis ser rico porque o dinheiro ficava cá todo e na vida havia coisas mais importantes. E isso, pensando bem, era verdade, não era só retórica.
Tinha apenas o amparo da reforma, fruto de anos e anos de trabalho. Fora conseguida com o sacrifício da família de origem, longe do sol estuporado e quente, mas também afastado das frescas nascentes, a brotar da terra, onde bebia água de bruços; e distante da sombra fresca e reconfortante de uma árvore de grande copa.    
 Neste entrementes, sem o trabalho diário a que estava habituado e que lhe ocupava o espírito, António passou a refletir mais na vida do que até ali. O tempo continuava a passar por ele, impiedosamente, aos poucos, com pés de lã, a furtar-lhe a vida, o ladrão!  
E sucedeu que, não sabia muito bem porquê, parecia que lhe viera de novo a vontade de se sentar nos bancos da praça da sua vila. O apelo derradeiro de querer acabar os dias na terra que o vira crescer, a saudade ou o que quer que fosse, começaram a falar-lhe ao coração. Confessou-o à mulher que não se opôs; ela própria suportara tudo de idêntica forma. Lentamente, António foi-se habituando a aceitar a ideia de que, quando chegasse a hora, desejava, no mais íntimo de si, descansar o sono eterno no chão que lhe estava no âmago.
Os filhos achavam-se criados e arrumados. António e Arnaldina até já tinham os primeiros netos. E o mais difícil era separarem-se dos pequenos. Mas tudo se havia de arranjar. Os filhos se encarregariam de os levar de voltar à aldeia durante as férias escolares, coincidentes com as festas assinaladas.
Quando mal se precatou, estava a fazer as malas para rumar definitivamente aos velhos serros da infância. Aproveitou a época da primavera para o regresso e, em determinado dia de sol, ainda com alguns rudimentos da sua própria incredulidade, encontrou-se a descer da camioneta na paragem da vila, que em tempos o vira partir rumo ao futuro.
Tratou de se instalar com a mulher numa parte da casa do pai, Manuel, que lhe coubera por herança. E não passou muito tempo sem que também se surpreendesse a semear uns canteiros de alfaces, tomates e cebolas. Depois, viria a poda das árvores, de tesoura na mão, aos estalidos a cortas os talos e, a seguir, a plantação das batatas e das couves. Não lhe tinha perdido, de todo, o jeito! A vida era saudável, longe do bulício irritante da cidade, sem andar nas avenidas a inalar o fumo do trânsito que, entretanto, tinha multiplicado dez vezes! Fora essa agitação que um dia tanto o atraíra…!

Os anos, na vila, porém, mudaram a aparência das pessoas, das coisas e dos lugares. Desaparecera o corrupio das mulheres ao domingo, pelas ruas, de lenço na cabeça, filhos pequenos pela mão, a caminhar apressadas para a igreja, depois de tocar a última. Já não havia na praça os costumados magotes de rapazes feros, vigorosos, a falar com voz forte e timbrada. As tabernas, onde à saída da missa os homens se costumavam juntar a beber uns tintos e a falar de negócios, tinham fechado. A vila desertificara-se.  
Alguns idosos que sobravam, podiam ser encontrados à conversa, sentados como era hábito, nos bancos da praça, desnovelando reminiscências e revisitando o passado, porque quase nada mais lhes restava.        

Um dia, um filho do meu rapaz do meio, o meu neto, cruzou-se — ele próprio me relatou o episódio — com esse grupo de velhos, onde se encontrava o António, de quem venho dando relação.  
A mocidade escasseava. Os jovens, pela própria diferença etária, era evidente que tinham nascido muito antes do regresso do António, ainda recente. Diz-se que na aldeia todos se conhecem, mas a realidade da vila, desmentia esse saber popular. Pese embora não se assinalassem conflitos era, todavia, notório — ao invés de outro tempo — o desapego geracional, mormente devido ao êxodo do mundo rural. Era o que sucedia entre o meu neto e o António Assunção.
Era, porém, compreensível a carência e necessidade do contacto humano. Por isso, aqueles homens de aspeto outoniço, ávidos de conversa, ao verem passar um moço novo — e porque isso não era assaz frequente — procuravam entabular conversa, que era uma forma de matar o tempo, mas, sobretudo, de reanimar o ego e, por vezes, até, ocasião para algumas pilhérias.
Então, o António vendo o moço aproximar-se e, pensando interpretar a vontade coletiva, adiantou-se ao grupo e, com a curiosidade que lhe era peculiar, auscultou-o de alto abaixo. Pareceu-lhe, por momentos, poder entrever quem seriam os seus parentes; mas, não podendo afirmar, com certeza, de que família se tratava, pôs-se a tirá-lo à casta.  
— Olha lá, meu rapaz, diz-me cá, tu não és filho lá de cima do Idalino Justo das Quintas?!
O moço estacou perto daqueles homens de gaivas no rosto e cabelo branco e raro.
— Não senhor, não sou filho.  
— Não?! Então a quem pertences tu cá na vila?
— Sou da família do senhor Idalino Justo, mas não sou filho, sou neto! O meu pai, sim, é filho dele.
— Ah…! Não fazia ideia… Sim, eu às vezes...! Enfim, que diabo… pois… já passaram estes anos…! Com que então, neto!  
— Sim, senhor…
— Não hei de eu estar velho! Pelo teu ar, bem me parecia que pertencias à família. Conheci bem o teu avô. Éramos amigos, tínhamos o sangue na guelra e ainda fizemos por aí umas patifarias.  
— Já ouvi o meu avô falar de si. O senhor não é o António Picado?
— Eu mesmo! Então o teu avô já não quer descer cá abaixo para, ao menos, vir à missa?!  
— Não senhor. Por enquanto não vem, até ver se melhora. Vamos lá ver… Anda um bocado mal das pernas e cansa-se muito; vai-se entretendo por lá e segue a missa pela telefonia.
— Mal das pernas, hã! — ruminou António — Ora vão vendo! Rapazes mexidos e escorreitos como nós éramos! Tenho que passar lá por riba, por casa, para o ver.
— Pois, sim, senhor. Quando quiser.  
Algo se terá passado na cabeça daquele homem, porque os seus olhos cavos pareciam ter adquirido repentinamente um brilho mais cintilante. Depois, pareceu ter reprimido um suspiro, mas recompôs-se e volveu ao rapaz:
— Vai, moço, vai à tua vida! Estimei ver-te e dá um abraço ao teu avô.
— Sim senhor. Fique descansado.
O rapaz seguiu o seu caminho e os velhos, que tinham escutado a conversa, ficaram a vê-lo afastar-se, sem proferirem palavra, até que dobrou o cunhal de granito da Casa da Câmara e desapareceu. 

No entretanto, António continuava a tratar do bocadito da fazenda que tinha na vila. À tarde, aproveitava para fazer as suas digressões pela estrada e pelos caminhos de terreno direito, para desentorpecer as penas. Dava normalmente uma volta em redondo, sozinho, enquanto a mulher, principiava a migar as couves para cozinhar a sopa para a ceia.
Nesses passeios, por vezes, visitava o cemitério. Na sepultura simples de seus pais que fora adquirida pela família, constava uma singela lápide que ele e os irmãos, em tempos, mandaram lá colocar. Dizia apenas:   
“Aqui jaz Manuel Assunção e Maria José. Eterna saudade de seus filhos, noras e netos.”
Ali ficou sentado por uns instantes, murmurando algo não percetível. Depois, levantou-se para ir à sua vida. Tinha ainda que ir à horta, regar umas couves, antes do sol descer no horizonte.

            POST SCRIPTUM

Passados uns dias o meu amigo António Assunção, conhecido por Picado, sofreu uma macacoa qualquer que o pôs quase incapaz de se deslocar. Ficou ainda pior que eu. Coisas de velhos! Não chegou a ir visitar-me como prometera ao meu neto na conversa da praça. Em breve, o seu nome veio a ser acrescentado ao epitáfio daquela campa. E foi para que a sua história não se perdesse e caísse no esquecimento que eu, Idalino Justo, vim hoje aqui desfiar recordações e remoer pecados velhos.


(a) Arlindo de Carvalho, “Castelo Branco”.
Nota: História ficcionada, baseada em vivências de pessoas diversas; podem ter sido utilizados termos ou expressões regionais ou locais, não oficiais.

JOSÉ BARROSO