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sábado, 17 de fevereiro de 2024

Sem pingo de compaixão

Viriato Soromenho Marques, professor universitário, in Diário de Notícias

O filósofo Schopenhauer (1788-1860) considerava a compaixão (Mitleid) como o sentimento moral por excelência, e por isso uma das características fundamentais da nossa condição humana. Ser capaz de sentir o sofrimento dos outros, sejam eles humanos ou animais, tinha, para o pensador alemão, uma raiz ontológica fundamental. A dor dos outros, despertava em nós uma espécie de compreensão intuitiva de que todos os seres partilham uma vontade de viver original.  Isso é válido para a mãe que corre risco de se afogar para arrancar o seu filho das ondas, ou para o homem que se deixa imolar pelo fogo na tentativa de salvar o seu cão. A comunhão do sofrimento rompe com a ilusão do egoísmo, mesmo antes da nossa mortalidade o provar definitivamente.

Lembrei-me de Schopenhauer ao perceber o crescente estado de morte ética do Ocidente. Bem sei que a política e a ética estão muitas vezes em rota de colisão. E que o moralismo na política internacional é usado, frequentemente, para esconder a face horrenda de interesses inconfessáveis. Contudo, tudo tem limites. Refiro-me concretamente à maneira inqualificável como uma série de países ocidentais reagiram a um “relatório” de 6 páginas apresentado por Israel aos países doadores da UNRWA, a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina, que neste momento é o único suporte de vida de dois milhões de sobreviventes nas ruínas de Gaza, onde a violência das tropas de Telavive se transformou num horrendo “novo normal”.

Israel acusou 12 funcionários da UNRWA de terem participado nos ataques do Hamas de 7 de outubro. Mais tarde, o número caiu para metade, dando razão ao chefe da Agência, Philippe Lazzarini, que considerou inconsistente esse documento acusatório. Apesar de a Agência ter 13.000 funcionários, e de as acusações terem sido apontadas pelo Estado agressor, que tem a correr contra si no ICJ, em Haia, uma séria acusação de genocídio, a verdade é que, logo após a divulgação do texto acusatório, uma constelação de países ocidentais decidiu - antes de qualquer investigação independente se debruçar sobre a acusação - suspender o financiamento à UNRWA. Escrevo aqui os nomes mais sonantes desses países que resolveram juntar-se aos algozes do povo de Gaza: EUA, Austrália, Canadá, Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Países Baixos, Finlândia, Japão.

Portugal recusou integrar essa tribo de indignidade. Escrevo-o com a alegria rara de saudar alguma medida acertada do Governo. Pelo contrário, Lisboa aumentou o seu contributo, para compensar a perda de financiamento provocada pelos desertores. António Guterres nomeou uma Comissão de Investigação Independente, liderada por Catherine Colonna, ex-ministra francesa dos Negócios Estrangeiros, suportada por 3 reputados institutos escandinavos. O relatório só estará finalizado em abril. Isso significa que corremos o risco de muitos milhares de vidas serem perdidas, vítimas da fome e da doença, se até lá a Agência continuar subfinanciada. Atrevo-me a dizer que o que está em causa não são os 6 funcionários acusados, mas a hipócrita desumanidade de Estados, saturados de uma retórica de valores e direitos, convertidos agora à lógica de extermínio praticada por Israel.

Quem pune um povo inteiro, é quem não reconhece dignidade pessoal aos seus membros. Sem compaixão, a vida humana ficará cada vez mais descartável. Pressinto que estes são apenas os primeiros sinais de uma imensa e crescente barbárie. Intensa e sem santuários.

 José Teodoro Prata

terça-feira, 13 de dezembro de 2016