Há umas semanas contei-vos a minha participação na arranca das semilhas, na Madeira. Hoje deixo-vos a narração da viagem para lá.
Passara um verão abrasador a remendar estradas, à
manivela de uma caldeira de alcatrão a ferver. Naquela sexta-feira, dia 29 de setembro de 1979, pedi ao tio Chico Bernardino que me deixasse na Oriana, para despejar
a presa do Calmão. Desci da camioneta e tinha a minha irmã Luzita à espera.
“Chegou uma carta da Madeira, tens de te apresentar
na segunda-feira.”
Dei um grito do tamanho do mundo e atirei o saco da
merenda o mais alto que consegui. Reguei o milho e fui para casa. Disse aos
meus pais que tinha de partir no dia seguinte, na carreira da manhã. Tomei
banho, ceei, preparei as coisas e ainda fui telefonar à minha namorada e despedir-me
dos amigos.
Bem cedo, os meus pais deram-me o dinheiro que
tinham e parti. De mala às costas, desci a quelha e depois as ruas da Vila,
direito à paragem da camioneta. Em Castelo Branco, abracei a minha namorada,
beijei-a e apanhei o comboio. Cheguei a Lisboa e fui ver as minhas irmãs. Depois,
no aeroporto, tirei bilhete para o Funchal, com a mesma tranquilidade com que alguns
portugueses, no século XVI, apanhavam a nau da carreira da Índia apenas com uma
regueifa debaixo do braço, para uma viagem de seis meses.
O avião levantou voo. Vi Lisboa e depois o mar, cada
vez mais fundo e escuro. A hospedeira explicava como fazer em caso de acidente
e eu aflito, sem conseguir compreender tudo. Valeram-me as versões em inglês e
francês, não que eu percebesse o que dizia, mas por umas tirava outras e assim
esclareci as dúvidas que me tinham ficado. Ia junto à janela e olhei para fora.
O mar era já um buraco negro. Se o avião caísse, ficava tudo desfeito e de nada
valiam os coletes e o oxigénio. Como o que não tem remédio remediado está,
recostei-me no assento e descansei.
O meu lugar ficava no fundo da fila de bancos, um
espaço aberto, apenas com dois bancos, um de frente e outro de costas para a
janela. No outro lugar sentava-se uma senhora meio velhota, cheia de sacos de
plástico pelo chão. Contou-me que ia ver o filho, mecânico, a viver no Funchal.
Eu também lhe disse ao que ia. Ofereci-me
para a ajudar com os sacos, pois só tinha um, além da mala no porão. Ela
agradeceu, mal podia com eles. No mais pesado levava uma cabeça de porco, para
comer com o filho.
À chegada, era noite cerrada e o meu coração
inquietou-se. No desconhecido, ainda vá lá, mas de noite… Apanharia um táxi
para o Funchal e ele me arranjaria um hotel.
Aterrámos. Peguei nos sacos da senhora que no sítio
das malas me apresentou o filho, a quem contou a minha ajuda com a cabeça de
porco. Fez questão que ele me desse boleia para o Funchal e o meu coração, tão
apertadinho, ficou um pouco maior.
Seguimos
por uma estrada estreita e sinuosa. O filho tinha um bigode bem mais farto do
que o meu e cabelo negro encaracolado. Era baixo e um pouco entroncado. Quis
saber de onde era, eu próximo de Castelo Branco e ele o mesmo de Coimbra. No Funchal,
não me largou sem ter onde ficar. Mas os hotéis estavam todos cheios e andámos
mais de meia hora às voltas. Com pena dele, já me arrependia de ter aceite a
boleia. Finalmente encontrou um hotel com vaga, caro, mas era o que havia.
Chamava-se EL GRECO. Dormi inquieto, acordei bem
cedo e saí à procura do lugar de onde partiam as camionetas para a Serra
d´Água. Estavam ali bem perto, junto ao mar, mas chamavam-se horários. A
partida não tardou. Andei toda a manhã num sobe e desce, espantado com o
condutor que parecia bêbado, no falar e nas maneiras, mas conduzia o autocarro
com uma perícia que nunca antes vira.
As encostas eram verdes do mar aos cumes. Junto à
água cresciam bananeiras, a meio da encosta havia canas-de-açúcar, mais acima as
vinhas e no alto matagais. As casas salpicavam a paisagem e por elas parávamos
constantemente. Não existiam ruas, apenas veredas de subir e descer ladeadas de
vegetação.
Chegámos à Ribeira Brava e parámos quinze minutos:
cargas, descargas, copos e partida. Alguns rapazes vieram à porta da taberna
gritar ao motorista, voltaram para empinar o último copo e entraram com o
horário já em movimento. A meio da Serra d´Água tive ordem de descida.
Perguntei se era ali o Lombo do Moleiro, mas o lugar chamava-se Pomar e mandaram-me
seguir a estrada até ao fundo do vale.
O sítio era o paraíso. A aldeia situava-se num beco
sem saída, com encostas a pique em toda a volta, menos por onde eu entrara. No
alto, havia um penhasco enorme, onde constantemente nascia um rio de nevoeiro
que se derramava pela encosta e se sumia no manto verde. Passei a tarde a
arranjar casa, aflito sem ter onde pernoitar. Aceitei o que me apareceu e, no
dia seguinte, 1 de Outubro, segunda-feira, às 8 horas da manhã, estava à frente
de trinta e seis crianças pequeninas. Chegara ao meu futuro.

Lombo do Moleiro, na Serra d´Água, Madeira.
Na época, a povoação ficava num beco, mas hoje passa por lá a estrada que liga a Ribeira Brava a São Vicente (vertente sul e vertente norte), por um túnel que começa onde se veem as últimas casas.
A ribeira foi uma das que provocou as destruições e mortes de há anos. Um dia não parava de chover e ela começou a engrossar. Então as mães dos alunos foram à escola buscar os filhos, com medo que a ribeira transbordasse (a escola situava-se mesmo ao lado). Na altura achei um exagero, só aquando das últimas cheias é que compreendi.