quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Alterações climáticas

O meu espanto ao saber do projeto de regadio com a água de Santa Águeda foi igual ao do Dr.º Costa Alves. Faço minhas as suas palavras desta crónica publicada na semana passada, no jornal Reconquista.


José Teodoro Prata

sábado, 9 de novembro de 2019

Histórias de amor


A casa, tinham-na feito assim que se casaram, numa sorte que o pai lhes destinara na Barroca, ainda antes de morrer. Era acanhada, logo nos começos, mas, à medida que os filhos iam aumentando, dava ideia que aumentava com eles. Por cima, a cozinha, com o lar rebaixado, ocupava grande parte do espaço; os dois quartos, onde mal cabia uma cama, estavam separados só por uma parede de taipa. Por baixo era a furda e a loja onde guardavam a salgadeira, o azeite e a pipa do vinho; era também lá que dormiam os rapazes, quando não podiam dormir ao relento. Em contrapartida, à roda, a terra acrescentava-se à medida das posses e das necessidades. Dava de tudo: batatas, feijões, hortaliça, milho, vinho e azeite que sobejava de ano para ano. Terra abençoada! Tal e qual o ventre da ti’ Ana, que quase todos os anos punha mais um filho neste mundo, fora os enjeitados que acareava e cuidava como se fossem seus.

Estava-se no tempo da azeitona. A noite caíra cedo e já estavam todos em casa, sentados à roda do lume a desengadanhar os pés as mão, enquanto os feijões acabavam de cozer. Dabanão, ouve-se um chamar com pressa:
- Zezito! Ó Zezito!
- Quê?
- Chega aqui, que te quero um recado!
O Zezito era dos filhos mais novos, um dos que ainda estavam em casa; saiu porta fora e foi ver o que é que lhe queriam. A ti’ Ana, mal agoirenta, foi atrás, a assomar, mas só viu um vulto negro do outro lado do ribeiro.   
- A esta hora, o que é que um damonho destes querará? Coisa boa não há de ser...
Nisto, o filho entra em casa, apressado; enfia a gorra e a samarra e sai outra vez, a correr:
- Vou só ali, não me demoro.
- Leva a lanterna, que não se enxerga nada lá fora – mas ele já não ouviu a mãe.
Passou-se para cima de uma hora; os feijões à espera, o ti’ Meguel com a cabeça já quase no colo, a pedir cama, e a ti’ Ana preada:
- Mas que desassossego! Deus queira que não seja cousa ruim, que pra trabalhos bem bondam os que já cá temos.

O Zé e a Maria já há muito que deitavam olhares um ao outro, mas só agora ele se resolvera a pedir-lhe namoro. Ela disse que sim, mas só se fosse falar com os pais a pedir licença para se falarem à porta de casa. O rapaz foi, cheio de boas intenções, mas foi encorrido pela mãe dela:
- Nem à porta nem em lugar nem um. E ai de ti que te veja a rondar-me a casa! Levas ma corrida que vais ver! E tu, minha desenvergonhada, se me chega aos ouvidos que continuas a falar pra ele, dou-te ma malha, que dou cabo de ti.
Apesar das ameaças, não desistiram. Continuaram a encontrar-se às escondidas, sempre que podiam. A mãe havia de quebrar, que ela era casmurra, mas não tinha má natureza; os desgostos da vida é que lhe tinham empedernido o coração baralhando-lhe as prioridades e tolhendo-lhe os afetos. E se não quebrasse, era o mesmo. Gostavam um do outro e não iam desistir, desse o mundo as voltas que desse.
Não tardou muito, um dia, já quase noite, estava ela a chegar da fonte com o cântaro à cabeça e encara com a mãe à entrada da porta; um ar que até metia medo. Não disse palavra, mas atirou-se à filha com tais ganas, que o cântaro escaqueirou-se logo no chão, e ela foi atrás. As vizinhas vieram todas à porta, a acudir; até a calhandrona que passava a vida a meter o bedelho na vida alheia, e que ainda há pouco a tinha vindo desinquietar, feita sonsa:
- Atão, já marcartens o casamento? Por modos as coisas estão adiantadas, quinda antontem os vi a falar um pró outro, todos melados; e ele até já a modos a querer pegar-le na mão…
Mas ela estava tão cega que não via nem ouvia nada. Ao fim, virou-se para a filha e berrou, para a outra também ouvir:
- Desaparece-me da vista e nunca mais m’ apareças à frente! Enquanto for viva, filha minha que ande nas bocas do mundo não me sobe as escadas.
E ela foi, rua abaixo, a tremer de frio, e a chorar.

Foi neste estado que o Zezito foi dar com ela, sentada ao pé da Fonte Velha. Nem precisou de perguntar, porque adivinhou logo o que é que se tinha passado.
- Anda comigo, que esta noite ficas na nossa casa. Os mês pais não hão de ir contra.
Ela disse que não, mas depois deixou-se levar, aquecida pela samarra e pelo abraço do namorado.
Quando chegaram à Barroca e entraram em casa, fizeram todos cara de espanto. Não esperavam que em vez dum lhes entrassem dois pela porta adentro; mas também não precisaram de grandes explicações. Sentaram-se todos à roda do caçolo dos feijões pequenos e comeram, calados. Só a ti’ Ana é que, de vez em quando, deitava cá para fora um desabafo:
- Ajá! Ele há mães que só visto! Nem os bichos!
Daí a pouco tornava:
- Até parece que o meu filho tem lepra ou é algum aleijadinho! Tomara ela, que Deus me perdoe!
Depois foram para a cama. As cachopas resolveram que a Maria dormia com elas, duas para a cabeceira e duas para os pés. Uma noite, mal passadoura é, e também já estavam avezadas, que antes da mais velha se casar já eram quatro na mesma cama; com o dia, logo se havia de ver; talvez a mãe mandasse chamá-la…
Mas os dias foram passando e a Maria continuou na Barroca, tratada como se fosse da família. Que ela também o merecia: uma mulheraça, desenxovalhada e desembaraçada como não havia muitas. Não se poupava ao trabalho e a ajudar no que fosse preciso: coisa que ela visse por fazer, estava feita em menos de nada; e como é dado, que, lá nisso, tinha tido bons exemplos, tanto do pai como da mãe.
Entretanto o inverno acabou, chegou a primavera, os dias a crescer, e pareceu-se à ti’ Ana que a barriga da Maria também. Perspicácias de mulher, avezada a estas intimidades. À noite, já na cama, disse para o homem:
- Ou eu m’engano muito ou aquele malandro já desgraçou a cachopa. Temos que tratar d’ os casar, antes que comece pr’ aí o falatório.
E o ti’ Meguel, homem de poucas palavras:
- Pois, lá haverá que ser.
E voltou-se para o outro lado, que ao outro dia tinha que se levantar cedo.
- Mas tens qu’ir falar co pai dela, que tem que dar ordem para o casamento.
Poucos dias depois, manhã cedo, lá vai o ti’ Bernardo, rua abaixo, até à igreja. Foi um dos dias mais tristes da vida dele, que gostava tanto daquela filha e queria vê-la amparada, mas não assim, à pressa. Ainda pra mais, abandonada pelo pai e pela mãe, como se fosse um cão escorraçado pelo dono. Mas a mulher era teimosa e ele não tinha podido ir contra a vontade dela. Talvez agora, depois de casada, as coisas se arranjassem.

Mas não. Depois do casamento, a morar mesmo defronte uns dos outros, a mãe nunca lhe subiu as escadas nem consentiu que a filha lhe entrasse em casa. Nem mesmo em dias de matação, quando se juntavam os filhos todos à roda da mesa. Ao princípio o ti’ Bernardo, sentado no seu canto, à lareira, bem teimava:
- Ó mulher, são águas passadas; o que lá vai lá vai. E é uma vergonha, virem uns e não virem os outros. Se calhar até andam a passar mal…
Mas a mulher, teimosa, não lhe dava ouvidos, e o ti Bernardo engolia em seco, amargurado. À mesa, já nem o seventre lhe sabia como antigamente: enrodilhava-se-lhe na boca e não queria ir para baixo. Mas à noite, quando desmanchava o bácoro, ia pondo de lado uns bocadinhos das partes mais februdas para mandar à filha. Noutras ocasiões era uma garrafa de azeite, uma malga de feijão ou uma bolsa de castanhas, que havia muitas na Serra; mas tudo à socapa, como se não fosse obrigação dum pai ajudar uma filha. Ainda para mais com as precisões que aquela havia de ter, que os tempos não estavam pra modas.
Um coração mole, o do Ti Bernardo. O que ele se enternecia com o neto, o primeiro daquela filha, cada vez mais desenxovalhado e, por modos, esperto que nem um alho. Às vezes até lhe vinham as lágrimas aos olhos quando se punha a observar, de lado, para o ver nas brincadeiras com os outros cachopitos da rua. A correr ou a trepar às árvores, era sempre o primeiro. Depois, na escola, com as letras e os números também ninguém o batia E quando o via a chegar da horta, à tardinha, vinha logo pôr-se-lhe à frente, em bicos de pés, a pedir-lhe a bênção, tal e qual a mãe, em criança. E ele tinha sempre qualquer coisa para adoçar a boca ao neto: como que por magia, fazia aparecer de algum dos bolsos uma maçã, uma laranja, ou uma mão cheia de passas ou castanhas, quando era o tempo delas.  
E o tempo foi passando e a vida deu as voltas do costume: umas boas, outras ruins, que lá nisso não há quem lhe tenha mão. Mas no fim, feitas as contas de somar, subtrair e dividir, que as de multiplicar, para os pobres, são sempre fáceis de fazer, tudo acabou em bem: o perdão e o amor tiveram mais força.

Nota: Esta é uma história de ficção baseada nos amores desta Maria. Desta e de tantas outras Marias que se criaram no país cinzento, moralista e hipócrita, que era Portugal ainda há tão pouco tempo. Atualmente somos considerados um dos países europeus que mais progresso fez nestas questões, pelo menos na legislação, que as mentalidades levam mais tempo a mudar. Sinto um contentamento e orgulho enormes por isso!

M. L. Ferreira

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Passeios e afins

Impõe-se um esclarecimento relativamente à organização (ou à falta dela) de passeios pedestres pela nossa freguesia, assim como de excursões a lugares significativos para alguns dos nossos antepassados.
1. Nunca pretendi criar uma organização que promovesse este tipo de iniciativas, até porque coletividades já nós temos que cheguem, falta é gente para as dinamizar e participar nas suas atividades.
2. Nunca a Junta de Freguesia, a atual e todas as anteriores, encarou estas atividades como suas, embora colaborasse sempre. Não são da sua competência, embora noutras freguesias isso aconteça.
3. Existem na nossa freguesia várias instituições que poderiam promover este tipo de iniciativas, mas isso não acontece, embora no passado o GEGA já o tenha feito.
4. Os passeios que promovi, com a colaboração das juntas e de amigos, foram gestos de boa vontade, sem outras ambições que passar uns bons momentos. O problema é que não atraímos ninguém de fora e, se houver um acidente, não existe cobertura.
Se calhar temos de repensar tudo, até porque várias associações estão a definhar e talvez seja necessária uma reorganização global. Mas isso só acontecerá quando as pessoas quiserem, temos de deixar amadurecer as coisas (mas agir antes que caiam de podres).





José Teodoro Prata

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Santos e santorinhos

Aproximamo-nos dos Santos e dos santoros e por isso vale a pena republicar uma história já aqui apresentada em 2013, que nos recorda dois santos (duas santas) dos muitos que vamos lembrar e ainda nos dá a conhecer as nossas tradições da época.

Aos onze anos fui trabalhar para Castelo Branco, estive lá dois anos e depois vim para a Casa Conde, em 1947 ou 48. O feitor era o senhor José Lourenço que vivia na casa com a mulher, o filho e a nora. Mas ele e a mulher iam dormir à casa do convento, na Cerca.
Como eram duas casas grandes e muito trabalho, havia mais duas criadas, uma criada de voltas e a cozinheira. Numa semana eu lavava a roupa, na semana seguinte limpava as casas. Eu gostava muito de cozinhar e a cozinheira deixava-me. Mas, como ainda era pequena e não chegava ao fogão, punha-me em cima de um meio alqueire para lá conseguir pôr as panelas.
Às vezes estava a passar a ferro e o senhor José Lourenço no escritório. Ele queria que o concelho voltasse e andava a escrever uns versos para eu ir cantar à Fonte Velha.
Vinha ter comigo e dizia-me: “Ó Eulália, canta lá agora esta.”

Querido São Vicente,
Nosso protetor
Para vos ver contente, amor,
Vai novo, vai velho, vai tudo a pedir,
que torne o concelho a vir.

Foi terra muito importante
Lá nos seus tempos de glória.
Ainda tem alguns pregões
Que lhe servem de memória.

Querido São Vicente,
Nosso protetor
Para vos ver contente, amor,
Vai novo, vai velho, vai tudo a pedir,
Que torne o concelho a vir.

Se nós trabalharmos
Todos de amor e vontade
O concelho virá já, já.

Se não trabalharmos,
De amor e vontade,
O concelho virá mais tarde.

Não sei se havia alguma cerimónia, mas não cheguei a ir lá.
Ele tinha uma caderneta para cada mercearia. Fazia compras em todas, para todos andarem contentes: Chico Tavares, Manuel da Silva, Aurélio e Francisco Matias. Quando uma criada ia às compras, levava a caderneta e o merceeiro apontava tudo. No fim do mês, faziam-se os pagamentos.
Onde agora mora a ti Janja, era o forno deles. A Luz Jerónimo é que trabalhava como forneira, mais o marido, o Albertino Henriques. Todos os dias cozia o forno, menos ao domingo. Quem lá ia deixava a poia: um pão por cada tabuleiro e dois ou três bolos por cada lata. Como coziam várias pessoas ao mesmo tempo, cada uma punha um sinal nos seus pães, para os conhecer. À noite, a forneira pegava no cesto do pão da poia e ia à Casa Conde fazer a divisão, metade para cada um. Como nós não conseguíamos comer o pão todo, nas quartas-feiras de manhã dava-se o pão aos pobres. Cortava-se cada pão em dois ou três pedaços e oferecia-se a quem viesse à porta.
Pelo São Martinho, a malta nova juntava-se em grupo e ia cantar e pedir o vinho novo aos ricos. No ano em que eu lá trabalhei, vieram à Casa Conde. No fim de cantarem, o Sr. José Lourenço veio à porta e respondeu-lhes:

Cantam muito bem e muito lindo
Mas este ano o vinho já está findo

Os rapazes insistiram e, como não lhes davam nada, cantaram o trinta martelos:

Trinca martelos
E torna a trincar
Este barba de farelos
Não tem nada para nos dar

O Sr. José Lourenço e a Dona Palmira foram dormir para a casa do convento, mas os rapazes não largaram a porta. Então a Menina Belinha e o Menino Antoninho regaram-nos com um regador, da varanda, e eles abalaram a fugir, todos molhados.
Nos Santos, as crianças vinham pedir um santorinho. Havia um cesto cheio de nozes e cada um só podia meter uma vez a mão e levar as que conseguisse tirar. Alguns ficavam muito tempo com a mão lá dentro, a esticar os dedos para apanharem mais nozes.
Os diospiros vendiam-se a um tostão cada um. No fim da escola, as crianças vinham comprá-los. Aliás, toda a fruta era para vender, o pessoal da casa só podia comer a fruta caída.
Uma noite, o Sr. José Lourenço estava em casa e viu pela janela os ramos do diospireiro a abanar. Mandou um sobrinho ver o que era, porque a viúva do irmão dele trabalhava lá com os dois filhos. O rapaz voltou e disse que era o irmão dele. “E quem mais, não era só uma pessoa!” O rapaz respondeu a custo: “Mais o Mudo.” O senhor José Lourenço chamou a cunhada e disse-lhe que o filho estava despedido e só ficava se ele lhe pedisse perdão de joelhos. A senhora chorava, pois não tinha para onde ir, mas o filho não queria pedir perdão. Andaram nisto quinze dias, mas nesse tempo havia poucos trabalhos e o rapaz acabou por vergar. Foi uma coisa que me fez muita impressão. Na vereda, com a mãe e o filho a chorarem muito, o rapaz pôs-se de joelhos no chão, em frente ao tio José Lourenço, e pediu-lhe perdão.
Ele era muito rigoroso, mas também era bom homem. Dava trabalho a muita gente, sobretudo aos mais velhos que já não podiam andar ao dia. Devia pagar-lhes um pouco menos, mas para eles era bom.
Eu vim-me embora por causa de uma coisa que se passou com a Dona Palmira. No fim de servirmos as refeições, se a comida que sobrava era para guardar para outra refeição, ela mandava-me guardá-la num certo armário e dizia-nos o que devíamos comer. Um dia, a comida foram lulas e no fim a Dona Palmira não me mandou guardar o resto. Eu trouxe para a cozinha e foi dividido pelas três criadas: uma colher para cada uma. À hora de preparar o jantar, a Dona Palmira destinou a comida para cada um e disse que o senhor José comia o resto das lulas. A cozinheira respondeu-lhe que já as tínhamos comido, porque ela não mas tinha mandado guardar. A Dona Palmira ficou muito exaltada e ralhou comigo aos gritos, porque eu é que as tinha trazido para a cozinha.
Nos dias seguintes, ela ficou na casa do convento e eu mandei dizer à minha mãe que me despedia. A minha mãe veio à Casa Conde e disseram-lhe que eu podia ficar se fosse pedir desculpa à Dona Palmira. A minha mãe disse que eu é que decidia, mas que a colher que eu tinha deixado em casa ainda lá estava, por isso a decisão era minha. E eu não quis ficar, pois não ia pedir desculpa por uma coisa que não era só eu que tinha feito.
 José Teodoro Prata
com colaboração de Luzita Candeias

José Teodoro Prata

sábado, 26 de outubro de 2019

Pe. Jerónimo à desgarrada


Acabo de chegar do Tortosendo, onde decorreu o encontro dos antigos alunos do Seminário. Depois do almoço, fui surpreendido com o Pe. Jerónimo a  cantar à desgarrada com os trovadores Costinha (esteve em SVB, na festa das bodas de ouro do sacerdócio do Pe. Jerónimo) e Tiago Silva. No momento da foto, o Costinha (de costas) responde ao desafio do Pe. Jerónimo.

José Teodoro Prata

terça-feira, 22 de outubro de 2019

A Aldeia das Dez - A terra dos Moreira

À procura das raízes
                                                          
Quando, há dois anos, o José Teodoro publicou o registo de batismo de Inácio Moreira, a primeira criança com aquele apelido a nascer em São Vicente, fiquei cheia de vontade de ir conhecer a terra de onde viera José Moreira, o pai do menino, para se casar com Rosa Luísa, nossa conterrânea, já lá vão uns duzentos anos. O casal teve muitos filhos e é dele que descendem todos os Moreiras que atualmente vivem em São Vicente ou cá têm raízes.  
Já tinha andado mais que uma vez por aqueles lados, mas, por ficar um pouco fora de mão, nunca me aventurara pelo caminho que leva à Aldeia das Dez. Nem sabia o que perdia, mas se calhar ainda bem, porque agora, sabendo os laços que nos unem, pude olhá-la com outros olhos.
O caminho até lá é muito bonito, com montanhas e vales que nos fazem querer parar várias vezes ao longo da estrada (se for na primavera e Verão, é ainda mais bonito, pela variedade de cores que pintam a serra). A primeira paragem foi nas Pedras Lavradas, para um café e olhar a paisagem a perder de vista. Depois, quase a seguir, o Poço da Broca. É um espelho de água formado por várias cascatas e açudes, rodeado por campos de cultivo, um antigo moinho, agora transformado em restaurante, e várias azenhas também recuperadas.


Na porta de uma das azenhas está escrito o provérbio «Se a farinha for grossa, fica a broa esquartejada; se a farinha for fina, fica a broa esconchada», e lembrei-me do desânimo da minha avó quando a broa ficava mal cozida.
Continuando a viagem, pouco depois de Vide, chega-se a Alvoco das Várzeas, de onde eram naturais alguns antepassados de José Moreira (um avô paterno e outro materno).

É uma aldeia já quase sem gente, como tantas, mas com uma zona ribeirinha muito bonita e cuidada,


                   e uma ponte medieval, sobre o rio Alvoco

Na Ponte das Três Entradas, um pouco mais à frente, é obrigatório parar para ver a ponte onde se juntam os rios Alva e Alvoco, afluentes do Mondego.


Logo a seguir começamos a subir a encosta e chegamos à Aldeia das Dez. Fica quase no cimo da serra, com uma vista larga sobre o Açor e a Estrela (infelizmente, quase tudo queimado pelos fogos de há dois anos).


               Penedo da Saudade (miradouro à entrada da aldeia)

Sítio de encontro em segredo
Antigamente o Penedo
Era só dos namorados
E a sobreira fingia
Não os ver e até sorria
Quando os via abraçados

Este mirante é antigo
Desde sempre deu abrigo
A quem cá veio por bem
Em noites quentes de estio
Vinham as ninfas do rio
Aqui namorar também

Serenatas no Penedo
Eram feitas em segredo
Em noites de lua cheia
E a sobreira não dizia
Quem é que as fazia
Já tarde depois da ceia

Ó Penedo da Saudade
Diz à sobreira que guarde
Os segredos dos namorados
Nesta paisagem de enleio
Segredos de quem cá veio
Entre os dois estão guardados

Ó Penedo eu não sei
Quem te fadou eu sonhei
Que foi uma fada boa
E te deu por companheira
Amiga esta sobreira
Diz que nunca te atraiçoa.

(Poema escrito na placa junto ao miradouro. Como se vê, a sobreira também ardeu, mas continua de pé, atenta.)


Aldeia das Dez é uma terra muito antiga, provavelmente ainda de antes da fundação de Portugal. Os becos estreitos, o granito das casas e monumentos, e as ruínas de antigos solares e são testemunhos de outros tempos.


                               Ao fundo da rua estreita vê-se a ruína do Solar Pina Ferraz

A justificar o nome da aldeia, existe uma lenda (ver na internet ou na publicação de 13/07/2017, aqui nos Enxidros), mas há também quem lhe chame a Aldeia das Flores por, cada recanto, ser um pequeno jardim.


Para além das vistas, Aldeia das Dez tem também muito património construído (casas de habitação, cemitério dos Abranches, fontes, Igreja Matriz e capelas) que merece ser visitado.


Largo com fonte e cruzeiro, bom para uma pausa

Deve também ter sido uma povoação com alguma importância em termos económicos, que se adivinha pela arquitetura de algumas habitações e o nome das ruas que referem atividades variadas (Tecelões, Ferreiros, Douradores, etc.).
Por fim, a cereja em cima do bolo:


Placa na frontaria de uma casa (encontrei muitas placas com o nome Moreira no cemitério)

Dei a volta a quase toda a aldeia, mas cruzei-me apenas com um morador. A conversa foi quase só lamentos pela falta de gente, pelos tempos que levaram os novos para longe, pela saudade dos filhos que estão fora, ou pelo fogo que vai deixando tudo negro à roda. Mas, nas entrelinhas, lia-se o enorme orgulho por aquela terra tão antiga e tão bonita. 
A viagem de regresso a São Vicente foi pelo Piódão, com passagem pelo santuário da Senhora das Preces, lugar de romagem de muita gente da nossa terra. A beleza da paisagem salpicada de pequenas aldeias de casas de xisto dava para outro artigo. Fica a referência a um lugar, com vista sobre Piódão, memorial a Miguel Torga.


Dizem que era neste lugar, com vista para a serra imensa, com a aldeia lá em baixo, que Miguel Torga vinha meditar e inspirar-se para a sua escrita. Lê-se na inscrição:
Com o protesto do corpo doente pelos safanões tormentosos da longa caminhada, vim aqui despedir-me do Portugal primevo. Já o fiz das outras imagens da configuração adulta. Faltava-me esta do ovo embrionário.”

Ao longo de quase toda a viagem não deixei de pensar nas razões que terão levado José Moreira a deixar a sua terra, atravessando montes e vales, para vir casar em terra alheia.
A Revista do Expresso de 12 de outubro traz uma entrevista de Ai Weiwei, um artista e ativista chinês, onde, a dado passo, diz o seguinte: “A migração é a condição humana. É onde estamos hoje. Todos viemos de algum lado, ninguém é nativo de um só local.” Estará aqui a explicação para esta mistura que nos caracteriza como povo. Oxalá também ajudasse a compreender e aceitar as idiossincrasias dos outros.

Maria Libânia Ferreira (também Moreira)