quinta-feira, 23 de junho de 2022

A marcela do São João


Marcela no Ribeiro de Dom Bento, caminho para a Senhora da Orada.
Os participantes na caminha do dia 10 de junho passaram por ela, numa altura em que ainda estava na sua máxima floração. Neste momento as flores já secaram

Esta é a popular marcela ou macela, tão usada nas fogueiras de São João, a par com o rosmaninho, duas plantas fortemente aromáticas que inundavam as nossas ruas com os seus cheirinhos.

As informações que encontrei na net, todas brasileiras, não se referem especificamente à nossa marcela, pois descobri que há uma enorme variedade de plantas com esse nome popular, por exemplo as camomilas.

Por isso vou seguir um livro em papel (Pour un jardin sans arrosage, de Olivier Filippi), que tem fotos da planta coincidentes com o aspeto da nossa marcela. Embora nem isso seja totalmente pacífico, pois o livro refere várias marcelas, a Helichrysum italicum (Imortal de Itália) e a Helichrysum orientale (Imortal do Oriente), esta das ilhas gregas e a primeira de toda a bacia mediterrânica. Existe ainda a stoechas, originária da Península Ibérica e da França mediterrânica e atlântica.

As três têm caraterísticas muito parecidas. Mas a italicum floresce em junho, enquanto a orientale desabrocha em junho-julho. Por outro lado, a italicum tem flores de amarelo de ouro, que libertam um odor a caril e a mel, enquanto na orientale as flores são de um amarelo pálido com reflexos prateados e odor apenas a caril. O livro nada adianta sobre as flores da stoechas, mas, pela origem geográfica, pode ser esta a nossa marcela, embora a hipótese da italicum não seja de excluir.

A net informa-me que as marcelas têm efeitos analgésicos, calmantes, anti-inflamatórios e antisséticos, que ajudam a amenizar os sintomas de ansiedade, stress e insónia.

Há que tempos que não as cheiro na noite de São João, mas temo-las abundantemente no seu habitat, por esses campos fora.

Deixo-vos com uma canção de Monsanto, cantada ao som de adufes, cujo tema é a marcela. Vem na Etonografia da Beira, II Volume, de Jaime Lopes Dias.

E ouçam-na aqui: https://www.youtube.com/watch?v=U15ruBo-DRc

José Teodoro Prata

segunda-feira, 20 de junho de 2022

O mal já vem de longe...

 A propósito do lamento da falta de investimentos na nossa terra, de que muitas vezes nos lamentamos, partilho este documento que encontrei há tempos no Livro de Registos de Leis e Ordens do Concelho de São Vicente da Beira:

Trata-se de uma Provisão da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, na qual o Rei D. João VI manda ao Juiz de Fora de São Vicente que averigúe o número e natureza de todas as fábricas existentes neste distrito(?) e a comunique, com a maior brevidade, à mesma Real Junta. Este procedimento deveria ser feito anualmente.

Relevante, a justificar um pouco a situação atual, é a nota do escrivão Bernardo António Robles (na margem à esquerda do documento, quase ao fundo), onde me parece ver que, na resposta, se terá dito que não existia qualquer fábrica neste distrito.

Pelos vistos o mal já vem de longe…

 

M. L. Ferreira 

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Alindar a vila

 

Logo que tomou posse, a atual junta de freguesia empenhou-se especialmente em lavar a cara às entradas da nossa terra (só vi a entrada sul, mas presumo que não tenha sido a única contemplada). Cortaram-se ervas, silvas e matos, limparam-se as valetas de vários anos de entulhos e pintaram-se muros (na Oriana).

Aqui, nas Poldras, aproveitou-se a largura excessiva da berma para fazer uma pequena exposição ajardinada e colocar um placar promocional da nossa terra.

A estrada que sobe das Poldras para o Marzelo e depois de prolonga pela Corredoura (antiga estrada romana (?)) também ficou limpinha.

José Teodoro Prata

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Dia de trabalho

             Rosto sereno, emoldurado por veneráveis cabelos brancos, a tia Maria ficara ainda a dormir. Bernardo Garrancho, o seu homem, levantou-se, como de costume, de madrugada, ainda escuro. Não acendeu a candeia de azeite para não a acordar.

O apelido 'Garrancho', nunca é demais recordar, era, na verdade, uma alcunha. Vinha-lhe de ter o indicador direito, torto, resultado da cura deficiente de um golpe com a tesoura de podar.

Mal pôs o pé no chão de madeira, Garrancho sentira o ar frio a cortar. Tinha vestida uma camisola interior, branca, grossa, e umas ceroulas felpudas de algodão da mesma cor, com que costumava dormir. Calçou as meias grossas e as  alpercatas. Para se agasalhar, vestiu por cima dos bragais um casacão de lã, com gola de peliça, que se encontrava pendurado atrás da porta do quarto. Pôs uma boina com protetores de orelhas, a apertar por baixo do queixo.

Saíu, a tatear na escuridão, porque conhecia bem o espaço, passou, com pés de gato, na sala da Casa Velha, onde havia, encostados à parede, três grandes arcazes com o rico grão do trigo, milho e centeio. Abriu a porta da varanda. Apanhou com uma baforada de ar gelado! Puxou melhor o casaco para o pescoço e foi encostar-se à grade robusta de madeira, a ver o tempo! Nesta altura do ano começava a pensar nas sementeiras e, conforme as aparências da meteorologia, assim tinha que decidir os afazers do dia de trabalho.

A varanda deitava para o Casarão, a céu aberto, que uma parede grossa de pedra e um portão, separavam da rua. O chão encontrava-se  atapetado de uma camada de giestas, carqueja e urze, traçadas, que, por ação dos microrganismos, se transformava lentamente em estrume para fertilizar a terra.

Ao fundo, coberta pela plataforma da varanda e pelo sobrado da Casa Velha, mas com suficiente luz, havia a grande loja e o curral, sempre lastrados a mato novo, cortado a podão, com uma boa mão cheia de palha velha nas camas dos animais. Onde habitavam, de um lado, a burra, a Preta, grande, forçuda, mansa, garbosa, de inteligência e porte quase equinos! E do outro, o bácoro, o corricho, nome este por que eram, afinal, chamados todos os porcos da vila. Mas ao qual não pagava a pena pôr nome próprio, porque nunca passava do mês de fevereiro. Ao contrário do 'Carrafuço', o porco da tia Pulquéria do Casal da Fraga, que ela tinha dó de matar e cujos caninos, por causa da velhice, lhe saíam já da boca para fora!

Em casa de Garrancho, não! Todos os anos, porco  morto, todos os anos posto! Às vezes até criava dois, um na vila, outro na serra! Mas o destino de ambos era o mesmo: a salgadeira!

Do vigoroso tabuado, a toda a largura da varanda, Garrancho olhou o firmamento, despido de névoas. Límpido e de um negro intenso!

"Que escuridão! E que silêncio vai nesta casa!", disse para si.

Era pelos meados do mês, nas entranças da primavera! O que supunha e requeria alvoradas mais claras. Mas, porque era lua nova, aquela manhã era breu. E com o céu sem nuvens, naquela época do ano, havia sempre mais frio. O intrépido e velho aldeão era bem conhecedor das travessuras que o tempo, ou o diabo por ele, com as suas bizarrias, pregava aos homens! Uma sabedoria à custa de levar em cima com muitos sóis, muitas luas, pedrisco, barrufos, gravanadas, nevões e ventanias; e de roer muita branquinha com códão de dente de cavalo, que alto lá com ele! Com os pés a apanhar frieiras e a doerem-lhe dentro das botas por mor daquele rigor invernal! O que lhe valia era o surrobeco e as bouchas que acendia!

Pôs-se a olhar mais fixamente. Mirou, tornou a mirar!

Do que vinha nos livros dos netos, sobre os astros é que não percebia nada! Nunca se sentara nos bancos duma escola com quadro, carteiras, meninos e professor!

Vai lá, vai! Esses bancos tinham sido as piçarras graníticas na serra da Gardunha. Desce criança que lhes subia para cima e sentava-se a ver a planície lá em baixo! Deitava-se, depois, de barriga para cima, no topo das colossais pedras a olhar o sol; ou a descortinar, de certo ângulo, nos monólitos ali à volta, aparentes figuras de pessoas ou animas, talhadas pela erosão dos séculos!         

De lá, vigiava as cabras que andavam em baixo, espalhadas pela encosta, a tosar as medranças do mato; assobiava-lhes e, se fosse preciso, ralhava-lhes:

"Raios parta as cabras, que não veem o marco! Olha que ele é bem grande! Ah! velhacas...! Vá lá ver!"

À voz corretiva dele, os animais sustinham o avanço à entrada da mancha de pinheiros, que elas bem conheciam, onde os terrenos confinavam. Conheciam, mas nem por isso deixavam de prevaricar.

"No fundo - dizia Garrancho para os seus botões - as cabras pouco diferem dos homens, por mais que estes tenham a prosápia da superioridade racional; ambos são tontos e abusam, se alguém lhes dá confiança! Mas antes me quero com cabras que com certos homens!"

Se Bernardo Garrancho não sabia uma letra do tamanho da torre da praça, vá lá, que, de pequeno, sempre lhe tinham ensinado o sete-estrelo, minúsculo, longínquo, com os seus asteriscos esbatidos; a estrela da manhã e a estrela da tarde que, pelo seu brilho, ao amanhecer e ao entardecer, saltavam logo à vista no céu! Se estas estrelas não eram, afinal, estrelas, mas os planetas Vénus ou Mercúrio, isso seriam avé-marias de outro rosário!

Era o que lhe zurziam os netos, que já frequentavam a escola e liam o Almanaque de S. Miguel.

Os tempos eram outros! Os cachopos, praticamente acabados de desmamar, em vez de se iniciarem nas tarefas de guardar o gado, regar a horta ou ir à lenha para o lume, começavam mas era a compreender as coisas do mundo naqueles papéis com letras e números!  E davam cabo da paciência ao avô com  as suas cabecinhas ariscas de flosa. 

"Ora o raio da cachopada, hã! Dizerem aquelas coisas dos livros! Ainda há dias nasceram...! E põem-se a falar como gente grande!", congeminava.

Mas naquela madrugada não havia trapaças do tempo! Estava tudo lavado! Nada de cirros ou cúmulos. Pela lua nova a face do satélite, voltada para a Terra, não recebia nenhuma luz solar, acentuando-se o negrume da noite!

Deixá-lo! Sabia lá ele nada das fases da lua! Do que tinha a certeza, era que, naquelas alturas, as noites apareciam de um negro retinto e não se vislumbrava o mínimo da luminosidade leitosa da lua. Dizia-o Garrancho, sem saber a causa do fenómeno e confirmava-o a ciência pela boca dos netos. Os livros e a experiência da vida, afinal, complementavam-se.

Era, porém, nessa cerração intensa que melhor se lia e perscrutava a imensidão do cosmos; que se estendia a seus olhos como uma infinita cápsula negra, fina, lantejoilada, a relampejar brilhos furtivos de luz; que parecia não se coadunarem com a quietude do mundo, que só começava àquela hora a ser quebrada pelo ladrar de um cão ou pelo cantar de um galo! Perlas a fulgir, espalhadas num manto de veludo escuro, estendido no espaço, que o clarão da aurora nascente não pudera ainda esbater aos olhos do observador! Embora não os compreendesse e muito menos soubesse os seus nomes, assombrava-se com o trapézio de Orion e as suas três-marias, como velas a alumiar o altar da Virgem; impressionava-se com a Cassiopeia numa admirável linha quebrada de ângulos obtusos; deslumbrava-se com a Ursa Maior e com a Ursa Menor e punha-se à cata da Estrela Polar no céu! 

Causava-lhe surpresa o sentido com que se compunham as constelações e se organizavam as figuras. Não sabia o porquê de tudo aquilo! Punha-se, por vezes, a pensar se ao menos lhe era lícito imaginar que podia, simplesmente, não existir coisa nenhuma! Porém, encarava logo ali com aquilo tudo à sua frente. Imanência ou transcendência?!

O certo é que se sentia pequeno! Parecia que alguém tinha assim arrumado os dados do universo. Uma certa ordem, sussurrava-lhe que estava alguém atrás daquela obra. Impunha-lho, categoricamente, à consciência, o esmagamento de tal grandiosidade! Um homem sem letras, pensava ele, pese embora de grande coração, não tinha capacidade para compreender tais mistérios. Não obstante, os sábios, com todos os seus conhecimentos, andavam tão inquietados como ele, por causa destas coisas que, por serem tão incompreensíveis, a maioria das pessoas preferia nem pensar nelas.

"Homessa! Que estou eu para aqui a cogitar? É melhor tornar as coisas mais simples! Quero lá saber do universo! O que me interessa é o que vou comer ao almoço! E, para hoje há, para amanhã Deus dará! É quanto basta! Quando morrer vou deitado e para onde os outros forem, devo ir eu também!"

Tentava assim desenvencilhar-se e sair por cima do emaranhado dos seus pensamentos. Ao cabo, não sabia bem o que sentir, se desassossego, se esperança. Porém, tinha uma certeza: quando pensava na morte, acalentava uma enorme ânsia de continuar a viver, de se projetar no futuro. E isso voltou a fazê-lo deter-se.

"Quando a terra me comer, há de ser o fim de tudo?"

Não podia obter uma explicação, pelo menos, evidente! Só podia fazer a abservação muda do mundo. E podia entrever, com clareza, que aquela ânsia de viver que sentia, era a sua fé!     

 

 

O avanço da manhã, fê-lo, de repente, regressar à realidade da vida quotidiana e desprender-se daquele encantamento. Não podia continuar mais tempo a contemplar o céu estrelado! A alvorada vinha aí, mostrava-se, fazia bater o dente àquela hora, mas estava limpo, adivinhando-se bom tempo com o avançar do dia! Lá dizia o ditado: "Março, marçagão, manhã de inverno, tarde de verão!" 

Compôs novamente a gola de peliça e subiu à cozinha. A mulher, entrementes, levantara-se entanguida. Já se encontrava à volta da lareira a aquecer-se e começara os afazeres domésticos. Por causa da obscuridade, ainda acendera a candeia de azeite. Na cozinha, de telhado singelo, a telha de vidro, queria principiar a luzir a modos que a medo! Com o sol, durante o dia, formavam-se óculos de luz através das irregularidades das telhas, a bater no sobrado, onde se via claramente o fumo da lareira que, em certas ocasiões, os netos, a brincar, tentavam, em vão, agarrar! A cozinha era pouco térmica. Tinha-se esfumado, de todo, o calor do brasido da noite anterior. A tia Maria acendia o lume na grande pedra do lar, sem chaminé. Acima do lume, a telha mourisca, sem forro, por onde saía o fumo, que enegrecera as paredes de pedra nua. E depois o céu infinito!

         Colocou, como de costume, a pichorra grande da água para fazer o café, encostada às brasas. A panela grande de ferro, essa, estava sempre ao lume, a aquecer água. Tirava-se a que fosse precisa e compensava-se com fria para amornar. E assim, havia sempre água para as necessidades diárias imediatas. 

O fumo e o calor pilavam as castanhas num caniço, por cima, mas chegado ao lado da lareira, próximo do teto, preso aos caibros por quatro fortes ganchos de ferro. O caldudo de castanhas fora a base da alimentação em épocas de míngua. Agora, eram já poucas. A maioria dos castanheiros fora substituída por oliveiras, que davam o apreciado fio dourado do azeite! As chouriças e morcelas, dispostas ao longo das varas, ao lado das castanhas, iam sendo lentamente curadas.     

         Bernardo Garrancho tirou dois latões de água a ferver para um jarro esmaltado. Desceu para uma pequena divisória com postigo, ao lado da porta da varanda, deitou a água na bacia metálica do lavatório, onde havia também um espelho e toalhas. Temperou-a com água fria do cântaro que estava sempre ao lado do lavatório. Tirou o casacão de peliça. Lavou a cara e limpou-se. Despiu a roupa de dormir, branca, que a mulher lavava amiudadamente na pedra do tanque de água da serra e punha a corar, na relva do rego da levada. Às vezes, também lavava algumas peças pequenas, cá em baixo, no caminho onde passava todos os dias, no Ribeiro do Marzelo. Um ribeiro que, à época, levava imensa água, graças ao regime pluvioso de chuvas abundantes! E onde ela também tinha o seu lavadouro de pedra!

         Era segunda-feira, início da semana de trabalho. Garrancho envergou uma camisola interior lavada e uma camisa forte para o trabalho, em flanela. Ensebou as botas de cabedal com sola de pneu, para amaciar e proteger o material.

          Botar as botas nos pés e calçar as calças era o que íamos escrever. Mas para obedecer às regras do idioma, temos que dizer que calçou as botas e vestiu as calças de ganga, lavadas, que trazia a cote. Por cima da camisa pôs um colete de surrobeco amarelo de lã semi-grosseira que a tia Maria lhe comprara no mercado, para os domingos comuns, mas que ele já deixara de levar à missa. Pelas costas, pôs um casaco compridote, um género de capote, mas mais curto, do mesmo tecido, um pouco coçado, mas ainda bom para trazer no dia a dia. 

O neto, Salvador, também se levantara. Estava a fazer as suas higienes da manhã no lavatório de ferro, amovível, a um canto do quarto, com a porta aberta e luz vinda da varanda. Penteou-se para trás e pensou que tinha cabelo à Ivanhoe. Por isso, fez uma pose fotográfica, a ensaiar para as festas de verão. Era quando um homem vinha a tirar retratos à praça. Mas setembro ainda lá vinha longe! Ao espelho, julgando-se bem parecido, encheu-se de nove horas! De repente, ouviu-se: 

"Salvador, ó Salvador!" Quando é que te despachas? Anda lá, filho!", gritou lá de cima a avó Maria a quem parecia demasiado longa a demora do neto! "Esta mocidade, quando é para trabalhar, nunca têm pressa! Se fosse para ir para a praça passear, ia logo a correr!", desabafou.

"Vou já, minha avó!", respondeu o neto.

"Deixa-o andar!", disse, ironicamente, o marido  para a mulher. "Algum dia há de aprender! Quando for para a tropa, se não se apresenta a tempo e horas na parada, começa a levar umas cachaçadas e depois diz que o diabo que o tenta!" 

Finalmente, o rapaz vestiu-se para o trabalho, um pouco atabalhoadamente. Como de costume, tinha que ir para a serra, para os necessários afazeres da jornada. O normal era ir guardar o rebanho das cabras. Já tinha saído da escola e ajudava em muitas tarefas. Mais ligeiro, trepou à cozinha e sentou-se num banco demasiado baixo, que já lhe causava desconforto para as pernas um pouco longas. Estava espigadote. E principiou o almoço que a avó já tinha posto na mesa da cozinha.

Garrancho sentou-se, como habitualmente, ao lume, no velho tronco de sobreiro que lhe servia de assento, onde a tia Maria lhe faria chegar a malga cheia e o pão com o conduto.

O almoço era café, no qual misturavam leite de cabra, ordenhado no dia anterior à noite, na serra, e já fervido. Não tinha tempo de se cortar. Era o cortas! Onde se ia cortar, com toda a certeza, era no estômago com os sucos gástricos! O pão era de centeio ou broa e, por vezes, de trigo, com margarina comprada na loja e queijo, chouriço ou azeitonas da casa. Mas a dejejua podia ser só leite com sopas de broa migadas e, para quem gostasse, um pouco de mel ou açúcar amarelo.

Muitas vezes, porém, optavam por uma refeição mais substancial: batatas fritas com ovos estrelados, feijão pequeno com morcela assada e cebola crua; ou mesmo, sopa forte de feijão grande encarnado e pão. Desta forma resistiriam melhor às canseiras desgastantes das fainas agrícolas!  

Comido o almoço, ala que se faz tarde. Fazia frio, mas Garrancho não era homem de receios quanto ao tempo. Já se disse que o conhecia bem. Atravessara invernias geladas e estios abrasadores! Estava calejado! Já não era como na época de rapaz casadoiro!

"Setenta, sempre são setenta!", confessava ele aos amigos, quando o desafiavam diante de mais meio quartilho, nas sociedades da taberna.  

 "Atreves-te, Bernardo"?, mangavam na roda!

Fazia-se forte.

"Se me atrevo? Ó rapazes, não me dasifieis, que vós não me conheceis bem!"

Bebia sem descansar.

Mas a idade tudo trazia e não era coisa boa! Um homem não tinha preço ou medida na sua dignidade. Mas nas questões da idade principiava a ter o seu limite. E naquela manhã sem nuvens, o ar golpeava como vidro! Em março, a maioria dos anos, ainda se davam as tais geadas brancas e, pior que as brancas, as negras, a estalar por baixo das botas; e ainda nevava abundantemente, não só na vizinha Estrela, quiçá, também na Gardunha!

Por isso, as constipações fortes de congestionar, pôr os olhos a prantear e o nariz a correr, eram comuns! A ponto de molhar quase todos os lenços do açafate. Mais sabão azul e mais trabalho para a tia Maria! O que era certo é que nunca tinham tomado um comprimido, apesar das mazelas  próprias do tempo.

"Humm... Temos sempre muito que fazer. Adoecer é um luxo para a gente das cidades que não faz nada!", concordava o casal de velhos.

Os vizinhos admiravam-se mesmo como é que eles concordavam sempre em tudo! Eram muitos anos a virar frango, que é como quem diz, a lavrar, a semear, a guardar o gado, a bater o fado na serra, ao pé um do outro!    

Cepa como a deles é que já não havia! O estetoscópio ou lá como aquilo se chamava, só era conhecido no hospital da Misericórdia da vila! A farmácia ficava cara! Afinal, tudo batia certo e era conveniente! 

Ele curava o pingo com copos de uma aguardamente muito boa, feita das borras do seu vinho, que destilava no alambique da praça. Uma bagaceira que fazia subir, e muito, a escala do alcoolímetro!

"Para manhã fria, aguardente quente!", dizia o amigo Tonho Racha que gostava muito dela; e Garrancho concordava.

Assim o diziam, assim o faziam. Garrancho aquecia-a, singela ou com açúcar ou mel. Ao lado do terreiro da entrada da Casa da Serra, estava um muro de pedra e por cima dele, uma fileira de cortiços de abelhas rodeados de alecrim. E rosmano e flores era por todo o lado! Davam mel para os gastos e sobrava.

Havia as constipações mais agarradas, sempre com a garanta a pigarrear. Às vezes, era só uma. Começava em novembro e ia até fevereiro.  A terapia, para além da aguardente, compunha-se de chás, lume e, à noite, cama e cobertores, tudo bem agasalhado. Para a tia Maria a receita era a mesma! Mas, em vez de copos cheios, tomava pequeninas chiscas:

"Ó Bernardo, faz favor, chega-me aí um bocadinho de aguardente quente com mel! Mas muito poucochinho, se não posso ficar tonta!", ria-se.

Qual hospital da Misericórdia?! Nem as portas lhe conheciam! E quanto ao dr. Alves, médico muito competente, só o costumavam ver ao domingo no camarim da igreja, na missa do dia.

Os bons genes de Garrancho e Maria, aliados àqueles tratamentos caseiros, permitiam-lhes resistir às sezões. O corpo exsudava, desembaraçava-se de uns vírus e adaptava-se a outros. Costumava ser assim, especialmente na mudança do verão para o inverno! Uma semana ou, no máximo, duas, depois do tempo arrefecer, tudo voltava ao normal! Quem os queria ver rijos e saudáveis, era ir espreitar à fazenda, onde ele assobiava que nem um melro, atrás da burra, a lavrar. Quando chovia, a terra estava tão macia que a charrua a rasgava com facilidade. Podiam então ouvi-lo dizer

"Ó Maria, ela está que parece galinha!" 

A esta habitual observação, a mulher já sabia o que responder: 

"Pois está! Mas não queiras tu fazer dela canja!"

Riam-se.

Enquanto a sementeira avançava, ela seguia-o fielmente, acompanhando a lavoura com o sacho junto ao tronco das árvores, onde a charrua não podia passar. E punha-se a cantarolar, como vinha fazendo desde o primeiro rego da lavrada, tão jovialmente como uma grafonola nova!

 

 

Naquela manhã, avós e neto, desceram da cozinha à Casa Velha a falar daquele dia de trabalho. O que era preciso fazer e o que não era. A burra, assim que ouviu a voz do dono, cantou, a lembrar que, antes de sair para o trabalho, queria, entrementes, mais uma gavela de caneirões. Tão certo, como exato era o Cortébert, o relógio de bolso de corda de Garrancho, assim era pontual o zurrar da Preta!

O porco, ao ouvir bater os caldeiros da vianda, logo pela manhã, entrava numa chiadeira infernal, à espera que a dona lhe trouxesse o almoço. Não era necessário deslocar-se à furda. Deitava-lho diretamente para uma grande pia de pedra, lá em baixo, através do alçapão de tampa removível, aberto no sobrado da grande varanda.

Os dois homens desceram ao Casarão por uma escada de madeira móvel, enquanto a tia Maria deu a volta pela Casa Nova.

Trouxeram a burra, a Preta, para a rua e aparelharam-na.  

"Tome lá! Aceite aí a cillha desse lado", disse Salvador para o avô.  "Vai…!"

"Isto está fixe! Podes ir andando para a serra", disse para o neto. "Põe-te a andar! Vai à frente a deitar as cabras."

"Não quer que o ajude a carregar a burra?"

"Não! Agora é cá comigo. Vou pôr as cangalhas, encher dois cestos de estrume e levo no meio uma taleiga de milho para as galinhas. Deito a sobrecarga e aperto o arrocho, se for preciso. Anda, vai lá! Depois, eu e a tua avó seguimos atrás de ti."

E o neto foi.

Os primeiros raios da aurora, já com boa claridade, foram apanhá-lo no Alto do Caldeira. Olhou para trás e viu os avós lá em baixo, no vale, a caminhar com o seu vagar atrás da burra. O dia começava a nascer para mais um dia de trabalho!

 

JOSÉ BARROSO

segunda-feira, 6 de junho de 2022

As cores do meu Mato-branco

Não era amarelo, nem encarnado, nem azul. Era de todas as cores o meu mato-branco!

Da cor da fantasia de quando, nas brincadeiras, misturávamos ervas e terra molhada numa lata velha de sardinhas, cozinhávamos num lume de faz de conta, e levávamos à boca, mexendo os maxilares a fingir que comíamos como se fosse o melhor banquete.

Da cor da paciência nas esperas aos gafanhotos, às sardaniscas, aos grilos e formigas, que às vezes ficavam sem uma asa ou uma pata, só para não fugirem ou para ver como era.

Da cor do prazer da água fresca da presa, nas tardes quentes de verão, a espreitar os mais velhos que dormiam a sesta a uma sombra, caídos de cansaço, não fossem dar pela nossa falta.

Da cor do cheiro a pão quente e queijo fresco feitos pela minha avó; ou do gosto do leite morno acabado de ordenhar.

Da cor do doce amargo das cerejas, dos figos e dos gachos, ainda mal amadurecidos, comidos às escondidas na pressa da novidade, e às vezes nos davam dor de barriga a denunciar o pecado.  

Da cor do orgulho de saber um ninho e de o poder ensinar. Espreitar os passarinhos, cada vez mais vestidinhos, até poderem voar. O ninho ficava triste e eu também, mas apostava que eram eles, quando olhava para céu e os via lá em cima a brincar.

Da cor da satisfação, todos sentados debaixo da nogueira, com o prato no colo, a comer batatas migadas com tomates apanhados na horta, ali mesmo ao pé. E havia sempre de sobra para alguém que aparecesse com fome. 

Da cor de me sentir grande quando o meu avô me deixava no fundo da caneca um bocadinho da gemada que a minha avó lhe fazia todas as manhãs. Ou quando me deitava uma gota de aguardente no café, como fazia no dele.

Da cor da aflição, quando fui a correr chamar pela minha tia, que uma ovelha estava a morrer, com as tripas de fora; daí a pouco a surpresa de um borreguinho já a querer ter-se nas pernas, ao lado da mãe, e ela a lambê-lo.

Da cor da desilusão, quando passei horas a olhar para o céu à espera de ver passar a cegonha que, tinham-me dito, trazia no bico mais um menino para a minha mãe; devo ter-me distraído, que não a vi. A verdade é que à noite, quando me levaram para casa, estava tudo diferente, sem a minha mãe na cozinha, só o meu pai a dizer-me: «Vai dar um beijo ao teu irmão que já chegou». Estava na cama, ao lado da minha mãe, no lugar onde eu gostava de me deitar ainda.

Da cor do medo, quando acordávamos à noite e tínhamos que ir fazer chichi ao relento, sempre a imaginar sombras de lobos esfomeados, prontos a engolirem-nos, como nas histórias dos mais velhos. Ou do medo dos ciganos que vinham perguntar se ali não queriam um burro, que tinham lá um, quase dado; mas a gente ouvia dizer que o que eles queriam era roubar-nos.

Da cor dos gritos da mulher que encontrou o filho a boiar dentro do tanque, e a cachopada toda a correr, caminho acima, para ver o anjinho. Era ainda tão pequeno que quatro crianças bastaram para pegar no caixão pintado de branco.

Da cor do arrependimento, quando, aos domingos à tarde, a minha tia mais nova, mal saída da infância e já pastora, me pedia que fosse com ela deitar as ovelhas; mas as brincadeiras na Praça eram teimosas e nem a promessa de um vestido novo para a boneca de trapos me convencia. Há dias em que ainda a oiço, ao longe: «Sua peguença!».

Da cor do desânimo dos meus avós quando receberam a carta a dizer que o Mato-branco tinha sido vendido, por modos a um homem rico. Só lhes deram tempo de ceifar o pão, tirar as batatas, apanhar o feijão e colher o milho e a fruta mais serôdia. Que aquela terra, boa parte feita à picareta pelas mãos deles e dos filhos, dava de tudo com fartura.

Passados muitos anos voltei ao meu mato-branco na esperança de encontrar algumas das cores que lá tinha deixado, mas não achei nenhuma igual. Tinham-se esbatido com o tempo…

M. L. Ferreira

sábado, 4 de junho de 2022

Mato-branco

 

Mato-branco florido, no Carvalhal Redondo

Esta citus pertence ao género holimium e à espécie ocymoides. É conhecida pelo nome comum de mato-branco e também por sargaço-branco.

Floresce em maio/junho e gosta de habitats de matos rasteiros. É originária da Península Ibércia e do Norte de Marrocos.

No vale da nossa ribeira, um pouco antes das Quintas, existe um lugar chamado Mato-branco. Neste momento talvez já não faça jus ao nome, pois a infestação de giesta amarela está a abafar tudo. Já deixei de ver por lá piscos e corvos, pois está a desaparecer o seu habitat.

Nota: Em publicação anterior, chamei mato-branco a outra citus; já corrigi. Ambas têm as pétalas amarelas de oiro, mas esta tem uma mancha castanha na base de cada pétala e a outra não.

José Teodoro Prata

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Rali

 




A informação aqui apresentada foi tirada de uma publicação da Escuderia de Castelo Branco, que me foi deixada na caixa do correio, gratuitamente.
É uma revista de promoção do Rali de Castelo Branco e Vila Velha de Ródão.
A nossa junta de freguesia é um dos parceiros deste evento e, embora seja questionável o apoio financeiro a iniciativas como esta que só agravam o estado de emergência climática que estamos a viver, acho que é uma boa forma de promoção da nossa freguesia.
Dispensável foi o João Goulão não ter resistido às luzes da ribalta e ter aproveitado o seu depoimento para atirar farpas a outros ao escrever que «...desta freguesia, que se encontra esquecida há 20 anos...». Foi o único dos 14 líderes locais a fazê-lo e, como diria o velho Diácono Remédios, não havia necessidade.

José Teodoro Prata