terça-feira, 10 de setembro de 2013

E fez-se noite

Eu era um seminarista adolescente que levava a vida religiosa a sério. Aliás, em pequeno, sonhara que era bispo, vestido com vestes muito coloridas, numa missa no lameiro da Barroca, onde tínhamos a mina de água para beber. O leirão cheio de pessoas vestidas com roupas vistosas e as paredes cobertas de panos coloridos. Predominavam as cores claras: branco, amarelo, rosas, laranjas… O altar era no alto de uma das paredes, como se fosse um palco. Deve ter havido crisma em São Vicente e eu reproduzi no sonho a festa que vira na Igreja.
No secundário, fomos a Fátima e eu achei o santuário desmesuradamente grande e impessoal. E um colega perguntou como seria quando a azinheira secasse. Comecei a questionar-me sobre o meu futuro, se era aquilo que eu queria. A coisa piorou quando tentei racionalizar tudo. Ora a religião pertence ao domínio da fé, da crença, não da razão. Alguém afirmou, anotei-o por aqueles tempos, que submeter Deus à razão é matá-lo dentro de nós próprios.
No 2.º ciclo, tivera um professor da Covilhã com uma empregada vicentina. Brincava com os alunos de São Vicente, éramos vários, dizendo que nunca iria com ela aos figos. Pudera, ela era mais alta que ele! Afirmava que nós estudávamos na melhor escola que havia. Era de facto uma excelente escola. Entre muitas coisas boas, havia a tradição do teatro e no 7.º ano (atual 12.º) corremos as povoações dos arredores do Tortosendo com a peça de teatro “O Lugre”, de Bernardo Santareno. O dinheiro que arranjámos serviu para organizar uma viagem de finalistas.
Éramos doze e fomos num carro e numa carrinha. Em Lisboa, ficámos em Benfica, na residência do Verbo Divino, por cima dos Móveis Baía. Numa noite, fui com dois amigos encontrar-me com as minhas irmãs. No regresso, encontrámos o padre prefeito desanimado, pois os outros colegas tinham ido todos ver “A Grande Farra”, um filme com pessoas nuas a comer até vomitar e morrer, o retrato de uma sociedade decadente. Caramba: os nossos colegas não nos tinham dito nada! Era uma porcaria, mas o grande filme do momento. Como resistir-lhe? Impróprio para seminaristas, pensava o nosso prefeito.
Continuámos a viagem, pelo Alentejo, mas já com o ambiente estragado. De regresso à nossa casa do Tortosendo, adivinhava-se borrasca e ela chegou: três alunos expulsos, dos nove que tinham ido ver o filme. Depois, de três passou a um: o nosso conterrâneo Francisco Barroso.
Passei-me, com a discriminação. Na reunião que tivemos com o prefeito, para justificar a saída do Chico, aquilo já não me dizia nada e só pensava nas videiras que o meu pai tinha para enxofrar. Sim, estávamos em Maio e só faltava um mês para os exames finais no Liceu da Covilhã. Marcaram ao Chico o dia de abalada e eu comecei a avisar os professores para não contarem comigo na preparação para aos exames.
Foi numa sexta-feira e viemos os dois, primeiro de comboio até ao Fundão e depois na camioneta da carreira do Pião. Na Paragem, toca de carregar com as malas, a abarrotar com o enxoval de cada um, as roupas pessoais e da cama, incluindo uma manta de fitas. Ao alto da rua Nicolau Veloso, o Ernesto Hipólito veio à porta da mercearia e pôs-se a rir como que viu: dois ex-colegas do seminário vergados com as malas às costas um mês antes do ano letivo acabar. Continuámos a subida, deixei o Chico no Cimo de Vila e segui quelha acima para a Tapada.
A minha mãe veio à porta do balcão quando eu já o estava a subir e ficou triste, ela que tinha esperança de ver o seu filho padre. Anos depois, explicou-me que naquele momento foi como se tivesse feito de noite. E eram só cinco e meia de uma tarde luminosa de primavera.

José Teodoro Prata

5 comentários:

Anônimo disse...

Constou-me que o filme não terá sido a Grande Farra mas sim a Emanuelle.
E, verdade seja dita, ficou tão traumatizado com a expulsão (não com o filme) que um dia destes quis-lhe emprestar a trilogia dos filmes da Emanuelle e o nosso amigo Chico ia-me excomungando.
Então tu não sabes (claro que sabia) que foi por causa disso (terá sido?) que eu vi esboroar-se a minha vocação cardinalícia?
Hoje os tempos são outros e o Chico não teria sido expulso e seria "certamente" um ótimo cardeal, conhecedor do bem e do mal para dele poder falar.
António Casimiro Barata

José Teodoro Prata disse...

Então terá sido o "Emanuelle", que é outra loiça!
Já não tenho pena do Chico, tenho pena é de não ter ido ver.
Como diria o Diácono Remédios:
- Ó meus meninos! Então querem ser padres e ver o "Emanuelle"? Não pode ser: ou uma coisa ou a outra!

Ernesto.Hipólito disse...

Ai o malandreco do Chico!. Quem é que havera do dizer!!!

Anônimo disse...

Ó Ernesto, sabes o que foi? É que eu ainda sou do tempo em que não havia Internet...essa é qué essa, meu rapaz.

José Teodoro Prata disse...

Nunca soube quem era a empregada do professor Ernesto, mas penso ter ouvido dizer que era da família Machana.