Apresento alguns trechos do livro "A Casa da Malta", do médico-escritor Fernando Namora. As partes escolhidas narram a paragem dos ratinhos na Casa da Malta (Tinalhas), a caminho do Alentejo. Podiam ser os nossos pais ou avós, aqueles camponeses...
«Era
uma espécie de saguão, colado à forja do ferreiro. Em tempos servira de abrigo
às manadas de porcos da Granja; mas o patrão fora-se embora para a cidade, o
portão de castanho abrira feridas ao sol e às chuvas das bandas do montado, e
agora os que vinham de longe para roubar, pedir, emigrar, sabiam que era ali a
sua casa. Um resto de palha da malhada forrava o chão térreo e cada ambulante
acamara mais um molho de feno, de urze ou de trapos velhos. Ainda no domínio do
saguão, em dois metros quadrados roubados ao adro, os ciganos arrumavam
carroças e animais e expunham sedas vermelhas ao pessoal da vila.
Um
dia aparecera por ali uma mulher estragada, das da vida, e uma semana depois
davam com ela morta e podre num canto do saguão. Foi enterrada quando os bichos
comiam a sua carne lívida e desfeita em água ludra; a autoridade foi contar que
as palhas tinham sangue seco dos seus pulmões e toda a casa um cheiro
empestado. Ficou o saguão com a fama de um lugar de nojo, maldito e sem dono.
Agora é dos malteses: vagabundos, ciganos, gente do mundo que não escolhe
tecto. É a casa da malta».
(…)
«O
velho tinha chegado pela manhã, açaimara as palhas no canto protegido dos
ventos, sentara-se a comer um punhado de castanhas que lhe haviam dado na Granja,
e foi depois ao outro extremo do barracão olhar as nuvens pardas e a cacimba,
enquanto desatava a sacola.
O
filho mais velho do cigano enrolara um cigarro de barbas de milho e acendia-o
na ponta chamuscada de um graveto. O cigano olhava, quase indiferente e
enfadado, a mulher estendida sobre a manta. Ela voltava-se para a parede, gemia
e, no intervalo das dores, apoiava-se nas lajes para se erguer e praguejar. O
velho despia os farrapos do corpo e ia-os secando ao bafo das chamas».
(...)
«Veio
a noite. O lume apagou-se, a vasilha de água quente deixou de desprender vapor
e os homens aninharam-se nos cantos. Mas a sonolência foi logo quebrada pelos
gritos e injúrias da cigana. O velho sentou-se de novo, sem mostrar desagrado,
e perguntou ao cigano:
- É pra hoje?
O
homem tinha as faces transidas; os olhos húmidos, banhados de uma cor ictérica,
fixaram-se nas trevas, e respondeu nuns sons incompreensíveis.
Com
o amanhecer a chuva parou, a manhã nasceu serena e fria, derramando no céu uma
luz álgida, sob a qual as árvores se erguiam soturnas, ensonadas. Aos poucos a
névoa engoliu a claridade e dois carros de bois surgiram no adro, saídos, de
súbito, de um rasgão de nevoeiro. Do grupo destacou-se um camponês com as abas
do capote alentejano a abafarem as orelhas.
- Vivam.
Olhou o lume que o homem reacendera e disse:
- ‘tá frio. – esfregou as mãos duras e depois
remexeu-as, enervadas, sem objectivo, pelo capote grosso. Estava a preparar a
pergunta: - Haverá lugar prá gente, mestre? Venho aí com uns camaradas pràs
ceifas.
- Casa de ambulante é casa de todos.
- É. Também me disseram prà gente procurar
este sítio. Vamos de passagem.
- Todo o homem vai de passagem. A gente é como
se fosse sempre a viajar neste mundo. É uma coisa sem destino certo. A gente
atropela uns e outros sem pensar que a vida é mesmo uma viagem, e mais vale
ajudar um camarada que fornicá-lo.
O camponês ficou entontecido das falas do
velho e julgou-o esparvoado. Quis disfarçar a conversa e disse, a fingir
intimidades:
- Deixe-me chegar à quentura. Vossemecê vai
cozinhar? – E sem esperar resposta gritou para a névoa: - tragam daí uma saca!
– E voltou-se para o velho e para o cigano:
-
Vem aí que comer. Estamos a caminho do Alentejo, vamos prevenidos. Somos ratinhos. Vossemecês já ouviram falar em
gaibéus e ratinhos?
O velho acenou que sim. Sabia tudo. Conhecia
todas as estradas; sabia que quem não tem pão na sua terra vai procurá-lo
longe. E há homens, os ratinhos, que
vão moirejá-lo no Alentejo.
O ciganito tinha ouvido falar em comida a
achegou-se, mas no caminho deu uma volta larga para não se aproximar da mãe. O
camponês reparou na mulher quando o berro rompeu do escuro. E, alarmado, tirou
o chapéu:
- ‘stá d’ordens?
Ia para sair, embaraçado, mas o velho pôs-lhe
sossegadamente a mão no braço:
- ‘stá de criança, sim, mas tem demora.
Entraram outros camponeses, enquanto dois mais
novos desatrelavam os bois. Foi preciso que o velho lhes espevitasse a coragem:
- A casa é de todos.
A cigana torceu-se no chão, levou os dedos ao
ventre e deu outro grito. Os homens dos carros abriram um dos sacos e
distribuíram toicinho e chouriço. O cigano estava isolado.
- Vossemecê quer comer?
- Nan…
- Quer: ele tem as tripas vazias – insistiu o
velho.
Depois beberam de uma garrafa, limparam o
gargalo à manga e ofereceram. Também a cigana bebeu aguardente. As dores vinham
agora menos espaçadas e mais fortes. A mulher não encontrava posição. O útero
contraía-se como um fruto espremido e depois ficava inerte, extenuado, mole. A
mulher então suspirava, aliviada. O velho ajeitou-lhe a pele de carneiro por
debaixo das nádegas e ordenou, imperioso, ao cigano:
- Isto está por pouco. Vá arranjar uma mulher
por aí e um lençol.
O garoto cigano fora esquecido na roda de
aguardente, pediu ao pai o seu quinhão e levou um sopapo rijo. O garoto puxou
de um canivete, encarando o pai com desafio e maldade. Um dos homens do campo
riu e agarrou-o pelas calças.
- Olha o ganapo!
Mas teve de safar o braço da ameaça da
navalha.
O camponês, ao lado do velho, tornou a
baralhar as mãos e deu voz ás suas cogitações:
- ‘stá-se-me a afigurar que vossemecê é daqui.
Vive cá na casa.
O velho abriu a boca e as gengivas inchada
realçaram na buraca negra.
- Sou um homem que vive da esmola. Já disse a
vossemecê que ando em viagem. Ando assim a rodar, como uma bola, e o mundo
também roda. – Fez um gesto circular, repetindo-o uma e outra vez, soltando uma
gargalhada. – Venho a esta casa quando calha passar por aqui.
O
camponês apoiou com a cabeça, receando desmentir o velho e excitá-lo. Não havia
dúvidas de que o velho tinha falhas de juízo».
(…)
«O
cão lambia as migalhas caídas e o ciganito pôs-se também à procura dos restos,
afastando o animal. Este voltava sempre, lambuzando-lhe as faces e as mãos;
depois ganiu quando o jovem dono lhe assentou o punho fechado entre os olhos. O
velho pegou num braço do garoto e disse.
- Põe-te lá fora, sobejo! Se ainda não encheste
a tripa, logo a compões. Agora não é hora de estarem aqui fedelhos.
O cigano acudiu a empurrar o ganapo para a
rua.
- Vai à praça pedir fruta.
«Pedir
ou roubar», pensou o velho.
O
garoto, amuado, rosnou vingança, repuxou as calças e saiu quando a mãe gritava
como se tivesse o diabo no corpo:
- Ai, que eu estoiro!
Ele
sabia que as mulheres berravam para ter a canalha. Vira uma, certa vez, num
pinhal, a rebolar-se no chão, mas essa lembrança esfumava-se no tempo. Agora
era um homem e precisava saber ao certo como um ganapo saía de uma barriga
inchada. O velho espantara-o, mas ele iria espreitar pelas frinchas do portão.
Cruzou as pernas escamadas de poeira e apoiou-se às tábuas, um olho ajustado a
uma fenda. Lá dentro era tudo escuro: tinha de abrir, com jeito, uma fenda
maior, e depois, desfeito o segredo, largaria para a praça a negociar com um
amigo cigano a sua descoberta. Talvez lhe dessem uma navalha das grandes,
semelhante à do pai, se ele contasse tudo bem como era. E então viria coma
navalha rasgar a barriga do velho, como se faz aos borregos.»
(...)
«Os
homens tinham saído para junto dos bois. Amparados ao muro de pedra que
separava o adro, cismavam. Amparados nos muros, a afeiçoar pedacinhos de sobro
com a navalha, como nos dias longos da aldeia, quando não havia trabalho para
ocupar os braços, depois de baterem à porta dos feitores, que os despediam com:
- Pró que há, bonda a criadagem.
Lá dentro ficaram a cigana, a rapariga a o
velho mendigo. O ciganito agachara-se por detrás do muro, à espera que os
camponeses se arredassem.
A parturiente deu um grito maior que todos os
gritos, um camponês disse a exclamação do seu povo: «Fora cão!», e fez-se de
novo um silêncio grande».
(…)
«
- Nasceu um menino! Que pretinho que ele é!
Os homens descolaram do muro, esquecendo o
cigarro apagado, emocionados.
A
cigana estava pálida, quieta, meio adormecida; tinha os braços caídos e gastos
ao longo do corpo. Os homens não sabiam palavras para dizer. A criança
pertencia um pouco a todos eles.
- Agora a gente vai preparar um jantar –
anunciou, num timbre de festa, um dos camponeses.
- As brasas inda estão quentes.
- A gente vai assar chouriço e um naco bom de
carne.
-Há tempos que não punha o dente em carne
fresca, mas vossemecês hão-de assim desfazer-se da comida para todos nós?
O
velho mastigou saliva para dizer:
- Quando um homem encontra outro com fome,
reparte. Divide o que tem para comer. Pois tu querias fazer como a gente graúda:
dar um pedaço de pão seco e comer os guisados?...
Troupas
riu das próprias palavras e o camponês, aprovando sentenciosamente com a
cabeça, tirou um navalhão do bolso para cortar uma grossa fatia de presunto.
Cheirou várias vezes a carne.
- Isto está que nem um regalo, homem! –
exclamou o velho.
- Eu queria morrer aqui hoje mesmo – disse o
velho. Todos se voltaram para aquela face ressequida, onde o brilho súbito dos
olhos punha qualquer coisa de anormal, de transfigurado. – Queria morrer mesmo.
Hoje morria de barriga cheia e sem odiar ninguém. Tenho medo de morrer com o
fel no coração, sinto que ele me entrou nas veias e que, certas vezes, me chega
aqui ao peito. Se aqui chegar, morrerei como Satanás. Hoje estou contente com o
mundo e não tenho nada na cabeça que seja das coisas feias que eu vivi. Vocês
julgam que estou doido, mas quero falar assim mesmo. Nasceu uma criança e eu
posso morrer. Ela virá fazer a viagem por mim. Se estou louco, pronto, estou
louco, acabou-se. À vezes tenho vontade de ir por aí matar gente. Mas hoje
não».
(…)
«Ninguém
respondia ao velho, rostos atordoados de emoção. Sempre era certo o Troupas
mendigo ser virado do juízo, mas sentiam que nessas palavras desvairadas havia
uma coerência, uma revelação, que iam direitas ao íntimo de todos eles; elas
traziam consigo lágrimas, mas também afecto e um certo conforto».
(...)
«- Vamos comer, gente! Cheirem só este
pedacinho.
O
velho estendeu os dedos para o seu quinhão, arrancando um grande pedaço com as
gengivas duras, e, de riso nas palavras, enquanto os músculos do pescoço
ondulavam com a mastigação e os lábios escorriam gordura, comentou.
- Isto está bom como o diabo!».
M. L. Ferreira
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