quarta-feira, 30 de abril de 2014

Festas e romarias

O salto que ficou para trás…
«A Romaria da Senhora do Castelo tinha fama em toda a província, embora ninguém pudesse dizer verdadeiramente que prendas lhe afiançavam a reputação. Não se contratavam mais de duas bandas, o que era vulgar, pois uma banda, sem ter outra pela frente, logo o sopro lhe desfalece com uma hora de reportório, e vinho, chouriço, cantigas, danças de roda e adufes, se os havia à farta em Montalvo, também nunca escasseavam em qualquer arraial da beira estremenha.
Talvez o segredo estivesse na quadra do ano, quando o trigo é um ondular luxurioso em redor do ilhéu sobre que assenta o burgo, e há giestas a bordearem os caminhos, e os calores, mesmo com o sol berrando, ainda são macios. Talvez as pessoas se empolgassem com o uso de se evocar o lance histórico, muito diluído no tempo, em que, sitiadas as muralhas, os aldeões, já à beira da rendição, haviam engordado o último vitelo com o último alqueire de cereal, lançando-o depois sobre as ameias, num alarde de abundância que desenganaria o inimigo, levando-o a desistir do cerco. (Em lugar do vitelo, fazia-se rolar da mais alta torre um bojudo pote de barro com as entranhas prenhes de flores, que se despedaçava contra as arestas das penadias, num fragor exaltante, logo secundado pelo estrondo dos morteiros, pela gritaria dos ganapos e pelo excitado batuque dos adufes.) Talvez, enfim, a tradicional presença das autoridades da vila, de papo enfolado, quando não mesmo dos maiorais da cidade e do comando da guarnição militar, crivadinho de medalhas, como competia a um sucessor dos heróis do castelo, dessem à romaria, por entre aquela trovoada de galas, um lustre sempre de cobiçar.
Era caso para admiração que essa gente graúda se misturasse assim em tal balbúrdia labrega, mas o certo é que eles vinham, vinham com a saboreada ironia de peraltas numa feira de saltimbancos, embora lhes fosse incómodo trepar as ruelas quase a pino, abrir clareiras por entre cordas de camponeses vestidos de serrobeco da cor da terra quando alqueivada nas primeiras águas, até se chegar lá ao cimo, onde o ar se limpava da poeira revolvida e do farum a suor e a fogaças. Vinham, pois, com uns modos de fidalga benignidade, compensando a maçada pelo ensejo de evidenciarem a sua importância, que era feita de nadas significativos como a saudação quase muda, mas impositiva dos vilões­­­ – o chapéu erguido o tempo preciso até a retribuírem nem que fosse com um aceno enjoado, enquanto as mulheres sofreavam a traquinice dos fedelhos e lhes davam o exemplo de silêncio reverencioso, no qual se incutia um vago temor.»
Fernando Namora: Resposta a Matilde (O Rio)

Fui lá pela primeira vez, teria uns treze ou catorze anos. Naquele tempo subia-se a pé, desde a Relva até lá acima, ao castelo. As ruas, quase a pino, eram ainda um empedrado feito de calhaus irregulares e traiçoeiros; mas as pessoas, muitas a cantar ou a tocar adufe, outras com os cabazes da merenda à cabeça ou às costas, eram como formigas, com pressa, por ali acima.
Em dias de festa cada um trajava o que tinha de melhor. Não me lembro do vestido que levava, mas os sapatos eram pretos, biqueira quadrada, meio salto. Os melhores que tinha (se calhar os únicos…).
Ainda não ia a metade do caminho e um dos saltos prendeu-se numa pedra e soltou-se. Fiquei tão aflita que até me deu vontade chorar! Não tanto por não saber como é que ia chegar lá acima, a mancar, mas mais pela vergonha e medo que alguém tivesse visto. Olhei á volta, à socapa, e baixei-me para apanhar o salto, às escondidas. Quando me pus de pé estava um homem parado à minha frente, a olhar para mim. Destoava da maior parte de nós, gente da aldeia, pelo ar e pelo fato, à moda da cidade. Fiz-me de todas as cores, mas ele pousou-me a mão no ombro, fixou-me o olhar e, quase em surdina, disse-me assim: «Pois é, menina; na vida de uma pessoa há sempre um salto que fica para trás!...».
Fiquei a cismar nas palavras e também naquela cara que não me era estranha. Só à noite, já na terra, é que deslindei o caso. Era o homem do retrato na capa do livro que andava a ler. Chamava-se A Casa da Malta e tinha-o requisitado da última vez que a Biblioteca da Gulbenkian tinha estado na Praça. Quanto às palavras, são para ir deslindando ao longo do tempo. A vida é mesmo assim: cheia de avanços e recuos, mas se calhar é por isso que gostamos tanto dela!...

M. L. Ferreira

Nota:
Encontrei há dias, no Google, uma página sobre festas e romarias de todo o país. Fiquei um pouco desiludida porque na lista do distrito de Castelo Branco não há qualquer referência nem à Senhora da Orada, nem à festa do Senhor Santo Cristo, tão importantes para nós. Encontrei depois uma lista do concelho onde já são referidas, mas ainda diz que a festa do Santo Cristo se realiza na terceira segunda feira de Setembro. Há que tempos que isso foi! Nem sei se já havia internet…


2 comentários:

Ernesto Hipólito disse...

Libânia:

Deixa-te de modernices e compra o "Borda d,Água". São só dois euros com iva incluído e aí tens as festas todas!
Hoje lembrei-me dos rebuçados de café. Vinham nas rações de combate e eram parecidos com as aspirinas só que eram castanhos.
Todos nós deixamos um salto para trás mais do que uma vez na vida mas, subir a Monsanto com sapatos de salto não lembra ao Diabo!
Um abraço amiga.

E H.

José Teodoro Prata disse...

Ernesto:
Eram os sapatos de domingo!
(Naquele tempo, o calçado não dependia do piso, variava sim entre a semana e o domingo).
Mas conheceu e falou com o Fernando Namora! Na altura deve ter custado muito (uma perna bem mais curta que a outra, por ali acima), mas aposto que, depois de ver a foto no livro, ficou bem mais animada.