quinta-feira, 15 de maio de 2014

A caqueira

Não é fácil separar a Céu Parrita da comadre Aurélia. Apesar de serem muito diferentes, mas, em certos aspetos,  completavam-se uma à outra. Nos cantos religiosos e profanos da nossa terra, estavam sempre as duas. Nos antigos teatros, nos passeios e até na  "marouva" que era e ainda é o roubo de frutas da época, lá estavam elas.
A Aurélia, de seu nome Aurélia Augusta Gama, tinha aquilo a que eu chamo "velhacaria boa" que no fundo é o sal que faz com que a nossa vida não seja uma coisa insípida, mas pelo contrário algo que vale a pena.
Já de pequena, no tempo em que se faziam teatros em S.  Vicente, ela lá estava.  Contava-me o meu pai que um dos teatros que cá se fizeram teve tanto êxito que tiveram um convite para ir representar às Minas da Panasqueira e lá foram. No fim da sessão, a pequenina Aurélia veio ao palco agradecer e disse:
- Vivam as Minas da Panasqueira!!! Vivam os Panascas todos!!!

Lembro-me de, muito novo, ainda ter tido o privilégio de cantar os Martírios, no grupo dela, fazendo eu a segunda voz.

Mas, porém, todavia, contudo, havia a parte da velhacaria:
Num tempo em que as festividades eram vividas com muita intensidade, o Carnaval não era exceção. Uma das atividades ou jogos desses dias era "a caqueira". Tenho que explicar aos mais novos que a caqueira era duas coisas:
 1º: Um jogo de Carnaval:  Roubava-se um cântaro de barro, enchia-se de palha seca e ateava-se o fogo. O barro aquecia e o jogo consistia em atirar o cântaro de uns para os outros, sem se queimar e sem o deixar cair. Quando alguém deixava cair o cântaro que naturalmente se partia, tinha que ir roubar outro para o jogo continuar. Era um tempo bom para os oleiros!
2º: Uma partida de Carnaval: Enchia-se uma lata velha com todo o tipo de lixo, muitas vezes com excrementos e pequenos animais mortos e, aproveitando a calada da noite e o facto de as chaves estarem sempre nas fechaduras das portas, lançava-se a lata para as escadas de modo a cair por elas abaixo e espalhar toda aquela porcaria.

A Aurélia adorava escrever cartas de Carnaval! Eram cartas muito engraçadas que eram dirigidas a alguém de quem se queria fazer troça. Metiam alguns palavrões, algumas cenas picarescas, alguns desenhos maliciosos, etc.
Naquele ano, a pessoa escolhida para destinatário dessas cartas fui eu. Veio a primeira, veio a segunda e eu sem saber a proveniência. Quando uma noite me preparava para sair de casa, vejo uma terceira carta a ser metida por debaixo da porta. Abro de repente e vejo a Ermelinda a escapar à esquina, a caminho do café da Janja. A Ermelinda já era quase nora da Aurélia e daí eu fiquei a saber quem era a autora das cartas: Era a Aurélia!!
Urgia uma vingança ou eu não fosse "Escorpião" de gema.

Eu e os meus amigos, dos quais destaco o Zé Barroso, costumávamos reunir  à noite, à volta da braseira do café da Janja, e foi aí que foi delineado o  plano de ataque.
Arranjei uma lata de tinta vazia, roubei meia dúzia de malaguetas (caralhetos) secas à minha mãe e passámos pela casa do Zé Barroso que naquele tempo vivia na Rua da Costa e onde o lume estava sempre aceso. Enchemos a lata de brasas e fomos direitos à casa da Aurélia.
Chave na porta é porta aberta! Foi só por a lata no lumiar, por as malaguetas dentro e fugir.

No 1.º andar da casa estava a Aurélia, a Céu Parrita e a Ermelinda, já que o namorado, o meu amigo Elias, trabalhava de noite, por ser padeiro. Estavam todas a ver televisão, mas a dormir no rés do chão estava o Sr. José Roque, marido da Aurélia, que, além de ser um santo homem, sofria de doença pulmonar crónica. Tínhamos esquecido o Ti Zé Roque!!!
Quando, mais tarde, fomos espreitar à esquina, o quadro que vimos foi o seguinte:
Três mulheres com o rabo voltado umas para as outras, a tossir convulsivamente e uma delas (a Aurélia ) a gritar:
- Foi aquele cabrão daquele Arnesto!!!
Como é que ela adivinhou?

Dêmos graças a Deus por não termos morto o Ti Zé Roque!


EH

6 comentários:

Anônimo disse...

É verdade! O humor dá aquele toque de sal, que confere algum sentido à vida!
De sal, pimenta ou … malagueta! Porém, todos são condimentos! E devem ter uma certa medida. Mas, vai-se a ver, e acho que fomos mauzinhos! Porque a dose de malaguetas era excessiva. Lá está, uma pontinha de velhacaria…má.
Curiosamente, o Ti’ Zé Roque terá sido o menos afectado. Estava cá em baixo e tinha a porta do quarto fechada. Foi o que valeu! Porque a lata das brasas com os caralhetos a arder foi colocada talvez a meio da escadaria e o fumo subia quase só para o andar de cima. Era onde estavam as mulheres e foi aí que teve maior efeito.
Não dava para ver, porque era de noite e nós estávamos escondidos na esquina, a rir-nos da tramóia. Mas acho que a Aurélia, a Céu Parrita e Ermelinda deviam estar quase como os soldados na guerra dos gases, na segunda guerra mundial! Para ter uma noite minimamente descansada a solução foi a Aurélia ter de abrir as janelas para arejar …
Que malta esta!

Abraços.

ZB.

Anônimo disse...

Ó Arnesto, esta história parece mesmo tirada daqueles livros velhinhos que guardas com tanto amor! Depois foi só mudar o nome aos personagens…
Mas é através de pessoas como a Ti Aurélia (uma vanguardista, a dar vivas aos Panascas todos, já naquela altura!), a Céu Parrita e tantas outras que, por um motivo qualquer, fizeram a diferença, se vai contando a História da nossa terra. Que bom haver pessoas como o Ernesto (e os amigos dele) que, naquele seu jeito invejável, vai avivando algumas tradições da cultura da nossa terra. Estas partidas de Carnaval, então, deviam ser mesmo de mijar a rir… O que aqueles velhacos se haviam de divertir a espreitar, de longe, a reação das vítimas. Até parece que estou a vê-los!
A este propósito, é fabulosa a Choradela de Entrudo contada aqui por alturas do carnaval de 2009. Vale a pena ler ou reler.
Uma pessoa com sentido de humor é mesmo outra coisa! Parabéns!

M. L. Ferreira

Ernesto Hipólito disse...

Ontem 15/05/2014, por volta das seis da tarde, vindo de Castelo Branco com a minha Celeste, encontrei na Rua da Igreja por alturas do adro o Rabomole.
Parei o carro para me certificar de que era ele e era. Olhou para mim com confiança sinal de que está bem integrado. Notava-se pelo aspeto que está bem.
Que olhos bonitos tem o animal!.

E.H

Anônimo disse...

Que bom ter notícias do Rabomole! É que não estou no Casal desde há uns dias e tenho andado desassossegada com medo que lhe aconteça alguma coisa.
Mas há quem diga que não há coincidências, Ernesto… Será que esse encontro do Rabomole contigo e a Celeste não poderá ter sido o princípio de um grande “amor”? Vá lá… Não me ofereço para madrinha, porque já tem um bom padrinho, mas farei de ama sempre que for preciso.

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

O Rabomole já tem um padrinho (Zé Barroso), já tem uma casa (Dos Enxidros - pena que seja virtual e por isso inútil para ele), muitos amigos (colaboradores e leitores do blogue, novamente inúteis, pois os verdadeiros amigos são os que se cruzam com ele e o tratam bem), já tem uma advogada protetora (Libânia), só lhe falta mesmo uma casa de verdade!

José Teodoro Prata disse...

Ernesto:
Boa caqueirada!
Pena não ter vindo no Carnaval.
Mas tu és assim: agora está a sair, temos de aproveitar!
Eu e a Libãnia andamos à procura de histórias, tu já as tens contigo, é só escrever!
Vamos ver se me lembro de a republicar no próximo Carnaval.