sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Ti Rita e Tio Augusto



Uma vez, já lá vão muitos anos, o tio-avô da nossa Margarida, José Augusto Alves, filho da Ti Rita (Rita Macedo) e do Tio Augusto  (Augusto Alves), estava a tocar o seu harmónio na taberna do Ambrósio, que era uma das muitas tabernas da nossa terra e estava situada na Rua do Convento. O Tio Zé, que também era poeta, adorava aquele instrumento e sabia tocar muito bem.
O Ambrósio, que estava a encher copos do lado de dentro do balcão, reparou que, na rua, meio escondido, se encontrava o Tio Augusto a espreitar o filho. Por velhacaria começou a desafiar o Zé:
- Vá agora com manha!
O Zé começava a tocar mais devagar e mais apurado.
- Vá agora sem manha!                          
E o Zé tocava mais rápido.
O Tio Augusto, que tinha herdado dos seus avós o apelido “Manha”, não gostou da brincadeira. Subiu a rua, entrou em casa, procurou um  foição e regressou à taberna. Chegou-se ao filho e diz:
- Nem com manha nem sem manha!
E, sem dó nem piedade, cortou o harmónio ao meio, para grande desgosto do filho.
Esta história (verdadeira), não era para ser incluída neste texto, mas hoje apareceu no Posto Médico o filho do Zé, o Domingos da Conceição Alves, e estivemos a conversar um bocado, tendo eu já em vista este artigo, e foi ele que me confirmou com detalhes esta história que eu já conhecia.
A Ti Rita e o Tio Augusto eram um casal muito sui generis. Há tanta coisa a dizer sobre eles que até tenho dificuldade em começar. Tinham uma propriedade nos Aldeões que pegava com a nossa só que a deles era muito maior. No entanto a nossa também é grande, tão grande que eu fecho os olhos e tudo o que vejo é meu! É tão grande que um trator andou dois dias para a lavrar! (esteve avariado quarenta e seis horas!) Desculpem lá, não era bem isto…
O Tio Augusto era muito surdo; hoje soube que era meio surdo. Um dia em que ele andava no leirão fundeiro junto à estrada e tinha a burra (grávida) presa como de costume à macieira, passa o Sr. Coronel Barreiros a caminho do Casal do Grilo que é logo ali.
O Sr.  Coronel, que adorava conversar,  perguntou ao Tio Augusto se já tinha arrancado as batatas. Resposta do Tio Augusto, mas referindo-se à burra:
- Anda barronda, anda, Sr. Coronel!!!
Nós costumávamos atravessar este leirão fundeiro para  ter melhor acesso a pé à nossa horta. Isto era feito a conselho do Tio Augusto, porque o nosso acesso era mais longe.
Um dia, quando estava a passar pelo Tio Augusto, neste leirão,  desequilibrei-me e caí um enorme trambolhão.  Quando tentava levantar-me, diz-me de lá o Tio Augusto, em tom sarcástico:
- Então, estavas a malhar a quarta?
Cabe explicar, por causa dos mais novos, que ”malhar a quarta” ou ”bater a quarta” era o que se dizia quando os burros, e não só, se espojavam, se rebolavam na terra,  quiçá para se livrarem de parasitas.
Como vizinhos que éramos, as nossas propriedades eram muito diferentes. A deles tinha água todo o ano; a nossa tinha um pocito que mal dava para ogar meia dúzia de couves. Era aqui que eu queria (finalmente) chegar: Nunca ao meu avô ou ao meu pai faltou a água para regar ou para beber oferecida pelo Tio Augusto e a Ti Rita. Gente de coração grande e generoso, além da água eram as cerejas, as maçãs, as ameixas; repartiam sempre tudo o que a terra e o seu trabalho davam.

Guardei para o fim a Tia Rita. Mulher de porte médio, vestida de cores claras, não largava o seu avental e o seu lenço verde com florinhas atado no cimo da cabeça. Quando falo dela ou penso nela, vem-me imediatamente à memória a arrecadação da casa do Cimo de Vila, a abarrotar de maçãs e malápios com o seu cheiro maravilhoso, onde ela me levava pela mão,  a fim de eu me ensarroar à vontade.
Nesse tempo, não havia eletricidade quanto mais televisão, mas parece que havia mais alegria.
Onde estava a Ti Rita, não havia tristeza. Pelo Carnaval, pelo São João, pelas Festas de Verão, quando as mulheres queriam folia, iam ter com a Ti Rita e lá vinha ela com o seu inseparável adufe a dar a volta à vila, com toda a gente atrás.
O Tio Augusto não era muito destas coisas e então, quando acontecia ser necessário requisitar a Ti Rita  para algum divertimento noturno e as mulheres lhe iam bater à porta, ela vinha de lá e dizia -lhes:
- Tende paciência, cachopas.  Eu vou num instante fazer um chá de ervas dormideiras ao meu Augusto e depois vou a correr ter convosco!
Daí a pouco, lá aparecia ela com o adufe e começava a festa. Ali não havia maldade.
Gente simples, gente boa.
Muito raro.

E.H.

6 comentários:

Anônimo disse...

Representa muito bem, em poucas palavras, vários episódios da vida real desse extraordinário casal de velhinhos que eram a Ti' Rita e o Ti' Augusto. Tão diferentes entre si, mas tão coesos na sua caminhada comum por esta Beira, que o destino lhes quis reservar.
O texto é recheado de ingredientes muito concretos, mas sarcástico (na história da concertina que eu também já conhecia em parte), jocoso, humano, alegre, divertido, mordaz. Uma espécie de aguarela!
Abraços.
ZB





José Teodoro Prata disse...

Aconselho os leitores a (re)ler o texto "A avó Rita", publicado em 2012. Basta escrever o título na janela ao alto, à esquerda.
Para mim, que não era da Vila (e por isso vivi à margem dos folguedos do Carnaval e do São João), nem vizinho de horta, o Tio Augusto e a Ti Rita eram apenas os avós do Chico.
Estas histórias do Ernesto ensinam-me mais sobre a generosidade das pesoas simples do nosso povo.
Já havia o empréstimo temerário ao Chico Cigano, agora a partilha da água, nos Aldeões. Na época, não era coisa de somenos!
Passou o seu tempo, mas deixaram cá gente boa. Por isso são eternos!

Ernesto Hipólito disse...

Zé Teodoro.
Foi genial essa tua ideia de recomendares a leitura do texto que o F.Barroso escreveu em 2012 do qual já não me lembrava. Gostei de rever a Tia Rita agora já vestida de preto e com a Margarida tão pequenina.
Não haja dúvida que o neto conhecia muito bem aqueles avós e descreve aqui com grande saber como realmente eles eram.
Como vivi vários anos com a minha avó Maria do Carmo no Cimo de Vila, e ela era muito amiga da Tia Rita, foi daí que vieram os meus conhecimentos sobre este casal de gente boa e o meu texto é um pequeno complemento do do Francisco.
Quem ganhou foi a Margarida que em vez de uma história sobre os bisavós, ficou com duas.
Um abraço.

E.H.

Anônimo disse...

Com o relato de muitas memórias de infância, o Ernesto tem tido um papel importante no eternizar de algumas pessoas que marcaram a vida da nossa terra, mesmo que já tenham partido há alguns anos.
Não me lembro do Ti Augusto (na altura a distância entre o Fundo Vila e o Cimo de Vila era muito grande e, pelos vistos, a Praça dele era mais a Serra), mas lembro bem a Ti Rita cuja alegria, ajudada pelo adufe, chegava para animar um povo inteiro.
Pelos vistos, para além da alegria, eram também gente generosa, o que muito nos deve orgulhar porque, ao contrário do que conclui o Ernesto, acho que a maior parte das pessoas da nossa terra são gente boa. Há sempre as ovelhas negras (ranhosas), mas isso existe por todo o lado, infelizmente…

M. L. Ferreira

Anônimo disse...

Este Ernesto é uma espécie de biblioteca viva da comunidade vicentina. Estimem-no. E betinho que foi, até me admira os termos ancestrais que conhece como ôgar e espojar. É o melhor herdeiro do património imaterial da nossa terra, que conheço, na linhagem do ti Albertino Maiaca e da ti Aurélia.
O seu texto levou-me a entrar outra vez na casa dos meus avós e a sentir o perfume envolvente a maçãs e malápios que enchiam o forro no outono, inverno.
Bem hajas Ernesto pelo perfume que me fizeste chegar aqui a Lisboa.
FB

Margarida Gramunha disse...

Gostei muito Ernesto, Bem haja pela partilha.
O que são Malápios ? O nome não me é estranho.
Quem não tem arte nem manha, morre no ar como uma aranha ;P