quinta-feira, 12 de novembro de 2015

A nossa gente

    Fotografia cedida pelo Pedro Gama Inácio

Esta fotografia tem perto de setenta anos e foi tirada na Senhora da Orada. O homem do meio, com a guitarra, chamava-se Joaquim Inácio e penso que era o mais velho de seis filhos. Está rodeado por dois dos irmãos. À direita o César Inácio com a sua Patrocínia; à esquerda (a segunda a contar da ponta) a Maria José com o seu Guilhermino. À roda, alguns dos muitos filhos que ambos os casais tiveram; alguns já casadoiros, outros ainda crianças de colo.
Nasceu em 1895 e, como muitos rapazes daquele ano, foi mandado para a França durante a 1ª. Grande Guerra. Esteve lá para cima de dois anos e quando regressou trazia uma folha de serviço quase limpa, o que lhe valeu ser admitido na GNR, apesar de, muito provavelmente, não saber ler nem escrever.
Foi colocado no Quartel do Carmo e diz-se que valeu a muitos conterrâneos que iam ter com ele a pedir ajuda. Uma vez, era o Zé Marau ainda rapaz novo, foi a Lisboa e, às voltas pela cidade, foi ter ao Palácio de S. Bento. Admirado com o jardim que havia à volta, quis ver melhor e encostou-se ao muro para espreitar. Ainda mal tinha posto a cabeça dentro, sentiu-se agarrado por um polícia que lhe perguntou:
- Olha lá, meu burro, não sabes que não se pode passar para lá do risco encarnado?
O Zé Marau bem tentou explicar que não tinha visto risco nenhum e só queria ver o jardim, mas o guarda meteu-o num carro e levou-o preso para o Quartel do Carmo. Por sorte, quando lá chegaram, encarou logo com o Jaquim Inácio que lhe deu um abraço e afiançou que era filho de boa gente. Depois pegou-lhe por um braço e foram os dois beber um copo no primeiro sítio que encontraram.
Sempre que podia, voltava à terra e as festas de Verão e a Senhora da Orada não se faziam sem ele. Parece que a mulher e as filhas nem sempre o acompanhavam, mas a guitarra trazia-a sempre, bem afinada. Era uma alegria quando se juntava com os amigos, à noite, e corriam as ruas da Vila, do cimo ao fundo, a tocar e a cantar. Só paravam à porta das tabernas para afinar a garganta. E na Senhora da Orada, depois de comerem a merenda, pegava na guitarra e armava-se logo ali o baile, com a família e os amigos todos a dançar.
Os irmãos tinham um grande orgulho nele e disputavam entre si quem é que lhe dava de comer e de dormir sempre que cá vinha. Apesar de serem todos muito pobres, esmeravam-se nos mimos cedendo-lhe a melhor enxerga e pondo-lhe na mesa o que de melhor tinham em casa. Diz que um ano coube a um dos irmãos mais pobres recebê-lo. Como não tinham roupa à altura do que sentiam que ele merecia, foram pedir a outra irmã os lençóis do casamento para lhe fazerem a cama. Ficou tão bonita que até parecia um altar.
Um dia, meados de maio de 1961, chegou cá a notícia de que tinha morrido. Diz que nesse ano ninguém da família foi comer a merenda à Senhora da Orada…

M. L. Ferreira

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