quarta-feira, 25 de maio de 2016

Os nossos professores

Com a Reforma de Rodrigo da Fonseca de 7 de Setembro de 1835, Portugal foi um dos primeiros países europeus a instituir a escolaridade obrigatória. Apesar disso, e porque a legislação nunca foi cumprida, a escolarização das populações permaneceu muito baixa, comparativamente ao que se passava no resto da Europa. Em 1900 cerca de 66% dos homens e 82% das mulheres não sabia ler nem escrever. Esta situação, que se manteve quase inalterada até meados do século vinte, era ainda mais grave nas zonas rurais, como é o caso da nossa terra.
Há tempos, a propósito duma pesquisa que nada tinha a ver com este tema, chamou-me a atenção o facto de na maioria dos registos de batismo de meados do século XIX (1860) constar a assinatura do padrinho da criança (em 76 batizados, apenas 21 não assinaram). Quanto às madrinhas, o número é bem menor: nos 76 registos consta a assinatura de apenas cinco, sendo que, pelos nomes, seriam quase todas da mesma família e pertenceriam a famílias ilustres da terra: D. Antónia Henriqueta Almeida de Brito, Maria Margarida Almeida de Brito, Maria Augusta de Brito Coelho Faria, Ana Balbina de Brito e Teodora Rita Xavier.
Durante a mesma pesquisa deparei com o nome de Manuel Marques Leite, professor do ensino primário. Manuel Marques Leite era casado com Clara Augusta e eram ambos naturais de Castelo Branco. Terão vivido por cá alguns anos, pelo menos entre 1860 e 1867, primeiro na rua Velha onde lhes nasceram três filhos, e depois na rua das Lajes, onde tiveram outra criança. Os padrinhos deste último filho foram dois irmãos mais velhos dos quais não encontrei o registo de batismo, talvez porque não tivessem nascido em S. Vicente (já nessa altura os professores teriam vidas errantes…).
É pouco provável que este Manuel Marques Leite fosse o único professor na terra, porque, mesmo que a escola fosse apenas para os rapazes, havia tantos nessa altura que um professor seria insuficiente. De qualquer forma a situação piorou nos anos seguintes.
Em 1880, dos oitenta e nove registos de batismo, só seis continuavam a ter a assinatura da madrinha. Quanto aos padrinhos, a situação era bem pior que vinte anos antes: cinquenta e três não sabiam assinar.
Em 1900 a situação continuava pouco animadora, mas os números eram mais equilibrados entre homens e mulheres: dos 99 registos de batismo, apenas 23 tinham a assinatura das madrinhas e 33 a dos padrinhos.
Estes números não podem ser lidos de forma simplista, mas são um indicador importante do estado de iliteracia na nossa terra, naqueles tempos.
Não encontrei referência a mais professores, mas deve ter havido outros depois de Manuel Marques Leite. Entre o final do século dezanove e o princípio do século vinte o Padre José Antunes, para além de padre, foi também professor de muitos rapazes durante aquele período. Devia ser pessoa de cultura vasta porque parece que, para além de ensinar a ler e escrever, ensinava também outras disciplinas aos alunos. Morreu em 1940 e está sepultado no nosso cemitério.
Deve ter havido outros antes deles, mas muitos já nos lembramos do professor Couto e da mulher. Ele era professor dos rapazes e ela das raparigas. Sobre este período, moí o juízo a uma das minhas tias para me contar porque é que não tinha andado na escola. A explicação dela:
 «Sabes, isto d’agente querer aprender é uma coisa que já nasce connosco. A tua mãe era muito inteligente, que nunca foi à escola, mas sabia ajuntar as letras e assinar o nome. Eu ainda lá andei aquase um ano, mas era burra e não aprendi uma letra. A professora também não ajudava, que mal entrava na sala, assentava-se na cadeira, amouchava a cabeça em cima da mesa e começava a dormir. Não sei lá o que é que ela andava a fazer de noite… Mandava era a filha do doutor Alves, a mai velha, fazer uns riscos na pedra de cada uma e dizia para a gente copiarmos. Eu sabia lá agora fazer aqueles riscos! De modos que quando chegou a altura, fui mas é a regar e a sachar o milho e os feijões, que era aquilo que nos enchia a barriga, e nunca mais pus os pés na escola».
Depois destes, vieram as nossas professoras: a Dona Susana, a Dona Teresinha, a Dona Natália, a Dona Nazaré, a Dona Maria do Carmo, e outras que já não são do meu tempo, mas a quem, cada um de nós, deve um pouco do que é hoje.
Penso que neste exercício de memória seria injusto esquecer o Padre Branco. Para além de ser o responsável maior pela implementação da Telescola (um marco histórico na democratização do ensino em Portugal) na nossa terra, foi também um professor empenhado e competente para muitos dos alunos que a frequentaram. Incluo-me nesse número.


M. L. Ferreira

7 comentários:

Anônimo disse...

Ao professor padre José David dos Reis se deve a edificação do hospital, foi ele quem aconselhou o padrinho padre Simão Duarte do Rosário a fundar a instituição na vila. Foi um mestre- escola extraordinário. José Duarte, Adelino Madeira, Manuel Diogo, Sebastião Jerónimo e tantos outros tiveram o privilégio de serem seus alunos. O edifício escolar era no velho salão pertença da santa casa onde mais tarde se projectavam filmes e se faziam representações teatrais. O clube a certa altura teve sua sede nesse salão. Foi demolido, no seu lugar edificou-se um funcional edifício ampliando-se desta maneira o lar. Nos meados dos anos cinquenta exerciam no velho edifício da câmara municipal as professoras:-Dª Emília, seu esposo professor Artur Eugénio Couto; Dª Susana e sua irmã Dª Teresinha. A minha primeira professora foi a Dª Susana, foi o último ano que deu aulas na vila, Dª Teresinha aguentou-se mais uns anos por cá.
Padre Branco, fundador da telescola chegou a ser contactado pelos responsáveis da escola de Alcains para dar aulas naquela progressiva vila, nunca aceitou o convite; professor, padre, arquitecto...
Sempre lutou pelo progresso da vila.
O ensino em Portugal durante muitos séculos foi ministrado nos conventos, colégios de jesuítas... com a expulsão destes pelo marquês de Pombal inicia-se a escola laica. A escola começou por ser uma instituição onde os rapazes estavam em maioria, nem todos a frequentavam, mais tarde tornou-se obrigatória, mesmo assim muitas raparigas quando terminavam a terceira classe ficavam por ali, os rapazes faziam a quarta classe e se quedavam também. Só uma ínfima minoria seguia os estudos liceais,ou no seminário. Feito o sétimo ano, uns poucos entravam na universidade
Com a revolução do vinte e cinco de Abril democratizou-se e todos os estudantes têm acesso ao ensino:- básico, secundário ou superior.
J.M.S

Anônimo disse...

Não posso deixar de me associar a esta retrospetiva da vida, tão importante, que é o acesso ao conhecimento com as primeiras letras. E que é, ao mesmo tempo, o início da preparação técnica para a vida e o prazer do saber!
Dos professores aqui falados, lembro-me, pessoalmente, dos que davam aulas cerca dos anos 50/60 do séc. XX e anos seguintes. Dos outros, ouvi falar de alguns como, por exemplo, o Pe. José David dos Reis ao qual julgo que se faz referência numa pintura colocada à entrada do Lar da Santa Casa.
Recordei aqui, há dias, a Professora D. Natália que, entre outras, foi a que mais me marcou. Enquanto professora era competentíssima. Enquanto pessoa, era extraordinária, cheia de valores humanos importantíssimos, daqueles que nos marcam para sempre. Tinha uma energia extraordinária!
Repito, devo-lhe muito, inclusivamente, as explicações (gratuitas) para o exame de admissão ao Liceu de Castelo Branco!
Mas é claro que não se podem esquecer outras pessoas, como o Pe. Branco que foi, realmente, o grande impulsionador da Telescola, onde também me conto!
Abraços.
ZB


José Teodoro Prata disse...

Penso que a Libânia se refere ao Pe. José David dos Reis, quando escreve sobre o Pe. José Antunes. Mas como não tenho a certeza, ainda não corrigi.
Este Pe. José David dos Reis deslocava-se regularmente a Castelo Branco, para integrar o júri dos exames do Ensino Complementar.
Penso que ele foi um dos educadores do jovem Hipólito Raposo, que não frequentou qualquer escola para se preparar para o exame de admissão ao Seminário Maior da Guarda. A documentação conhecida refere um Pad´ Zé, sem mais informação.

Anônimo disse...

Pad´Zé (alcunha por ter figura de padre), de nome Alberto Costa era um natural de Aldeia de Joanes, frequentou o Seminário da Guarda e o Colégio de São Fiel, até ir estudar Direito em Coimbra, conhecido tanto pelo o seu génio como pelo boémio que era, um dos fundadores da queima as fitas de Coimbra, era um opositor à Monarquia, tendo sido responsável por vários intentos de a derrubar, tanto que consta que participou na tentaiva assassinato do príncipe D. Manuel.

José Teodoro Prata disse...

Já há bastantes anos que tive conhecimento desse Pad´Zé de Aldeia de Joanes, pelo Jornal do Fundão.
Mas penso que este Pad´Zé que ajudou a preparar o Hipólito Raposo (nível do secundário) para o exame de admissão ao Seminário Maior da Guarda era o nosso Pe. José Antunes. Porque também era José e tinha certamente competências académicas para isso.
Mas...

Anônimo disse...

Como disse, este artigo foi escrito quase exclusivamente com dados que encontrei por acaso e outros de que ouvi falar ou tenho memória. Por isso terá muitas omissões; mas o bom destas coisas é que cada um possa acrescentar aquilo que sabe sobre o assunto.
Sobre o padre José Antunes, ouvi falar dele a propósito da história que escrevi sobre a Grande Guerra: tanto o senhor Albino como a minha amiga Zulmira me disseram que tinha sido professor dos pais deles e lhes tinha ensinado muitas coisas.
Depois, também por acaso, num dos meus “passeios” pelo cemitério, deparei com uma campa com uma inscrição que diz mais ou menos isto:
Padre José Antunes David dos Reis - Professor e benemérito desta vila. Nasceu em 1864 e faleceu em 1940.
Está logo à entrada, do lado direito.
Pelos vistos terá havido sempre padres que acumulavam as funções de sacerdote com as de professore. Talvez isto ajude a explicar o facto de o número de homens alfabetizados ser maior que o de mulheres, porque nesse tempo não havia cá misturas…
Um dado interessante sobre este assunto é que, nas conversas que tive com os utentes do Lar, provenientes de algumas anexas de São Vicente, sobretudo da Partida, constatei que, aparentemente, a percentagem de pessoas que sabia ler era superior à da Vila. Contavam que a professora chegava logo de manhã, amontada num burro, e à tarde abalava outra vez. Ainda os professores de agora se queixam…

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

O último parágrafo do comentário da Libânia pede ainda uma achega.
O regime de grande propriedade, nas mãos de três grandes famílias, ainda em meados do século XX, fragilizava muito o tecido social, na Vila.
Na Partida, por exemplo, também havia grandes proprietários, mas estavam ausentes e as terras arrendadas em pequenas/médias parcelas, aos moradores.
Em São Vicente, muitas pessoas só tinham trabalho em certas épocas do ano e tinham de empregar os filhos em idade escolar, como criados/criadas ou pastores dos "ricos" e até de médios proprietários.
Na Partida, os rendimentos familiares também eram pequenos, mas a terra própria garantia um ganha-pão mais seguro e regular e, por outro lado, escasseavam as oportunidades para colocar os filhos como criados, logo aos 10 anos.
Por isso, uma maior percentagem de filhos dos pobres, na escola da Partida, relativamente à da Vila.
A mesma razão para uma maior mortalidade na Vila dos que nas anexas, durante o século XX, como aqui já referi.