sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Tempo livre

Há uns tempos, o Ernesto Hipólito ofereceu-se um livro antigo. Foi a minha leitura deste verão.
Chama-se A Paixão de Jane Eyre e foi escrito por Charlotte Bronte, irmã da autora do Monte dos Vendavais. A primeira edição saiu, em Inglaterra, no ano de 1847. A edição portuguesa não está datada e parece ser de meados do século passado.
A ortografia é diferente da atual e também da anterior ao acordo ortográfico agora em vigor. Além dos aspetos visíveis, ainda se usava o ponto de interrogação invertido no início da frase interrogativa (que não pude reproduzir).
No trecho que aqui vos deixo, a cena passa-se num colégio de meninas órfãs, propriedade da Igreja Evangelista local. Decorre uma visita/inspeção do pastor, acompanhado pela sua esposa e filhas…

Entretanto, Mr. Brocklehurst, em pé, diante do fogão, com as mãos atrás das costas, passava majestosamente revista à classe inteira. De repente, piscou os olhos, como se qualquer coisa lhe ferisse ou chocasse a vista; virando-se, disse com um tom mais rápido que até aí.
- Miss Temple, Miss Temple! Quê? Quem é aquela aluna com cabelos frisados? Cabelos vermelhos, senhora, e frisados, todos frisados?
Levantou a bengala e apontou êsse horrível objecto; a sua mão tremia.
- É Júlia Severn – respondeu, com tôda a tranquilidade, Miss Temple.
Júlia Severn, hem? E porque frisou ela os cabelos? Porque razão, apesar de todos os princípios e regulamentos desta casa, uma casa evangélica, um estabelecimento de caridade, procede ela como se estivesse lá fora, no mundo? Aqui não se querem caracóis!
- Os cabelos de Júlia são assim mesmo, naturalmente encaracolados – respondeu Miss Temple, ainda mais tranquila.
- Naturalmente! Sim, mas nós não nos devemos conformar com a natureza; quero que estas meninas sejam filhas da Graça. E depois, porque tanto cabelo? Já disse, e torno a dizê-lo, que quero os cabelos penteados, com modéstia e simplicidade. Miss Temple, é preciso mandar cortar os cabelos a essa menina: mandarei amanhã um barbeiro. E estou a ver aqui outras com excesso dessas excrescências. Aquela crescida, diga-lhe que se volte. Diga à primeira divisão que se levante. Que se virem tôdas para a parede.
(…)
- Êstes carrapitos têm de ser cortados.
Miss Temple pareceu discutir.
- Minha senhora, - prosseguiu êle – sirvo um Amo cujo reino não é deste mundo: a minha missão é mortificar nestas raparigas as vaidades da carne e ensinar-lhes a vestirem-se com modéstia e sobriedade, e não a trazerem os cabelos enfeitados com ricos atavios. Cada uma das raparigas aqui presentes anda penteada como se a vaidade em pessoa a tivesse arranjado por suas mãos. Repito: êstes cabelos têm que ser cortados; pense no tempo perdido…
Aqui, Mr. Brocklehurst foi interrompido pela entrada de três senhoras. Pena foi que não tivessem chegado um momento mais cedo, para ouvirem êste sermão sôbre os adornos, pois vinham admiràvelmente vestidas de veludo, sêdas e peles. As duas mais novas (duas lindas raparigas de dezasseis a dezassete anos) traziam feltros cinzentos; à moda de então, enfeitados com penas de avestruz e, sob os graciosos chapéus, viam-se-lhes as tranças e os caracóis; a mais velha das três vinha envôlta num rico chaile de veludo enfeitado de arminho e com uma franja de cabelos postiços tôda encaracolada.
As senhoras foram recebidas com tôda a deferência por Miss Temple (eram Mrs. e Misses Brocklehurst) e conduzidas aos lugares de honra, ao fundo da sala.


José Teodoro Prata

Um comentário:

Anônimo disse...

Como dizia o outro: “Bem prega Frei Tomás… “.
Esta cena passou-se há muitos anos, mas mantém-se atual. Ainda hoje, aqueles que mais apregoam a moral e os bons costumes são muitas vezes os que mais pecam, e vivem sem quaisquer sentimentos de culpa.
Amigo Ernesto, como vês isto sem ti não é a mesma coisa. Faz-nos falta o teu bom humor e, já agora, os teus “miminhos”…

M. L. Ferreira