sábado, 19 de novembro de 2016

A infância

Acorda com a voz da mãe a chamá-la e levanta-se rapidamente. Agora a vida é diferente, tem outras responsabilidades. Lava-se, veste-se e senta-se à mesa grande de madeira, que está encostada à parede de taipa que divide a sala e os quartos da cozinha. Come as migas de pão com leite e café que a mãe lhe preparou numa malga.
Pega na sacola de ganga que a mãe fez para o irmão: tinha uma alça comprida, à rapaz, que a mãe cortou e da qual fez duas pequenas, à menina. Lá dentro, leva uma pedra e um ponteiro. Por agora é suficiente. Lápis e cadernos só mais tarde.
Começa a descer a quelha. A meio, suspende a descida. Avistam-se os telhados das casas da vila e a torre da igreja, onde o sino toca as horas e outros acontecimentos do dia. É para ali que vai, e, sente-se importante com esta nova vida. Chega ao cimo de vila e desce as ruas com chão de terra batida e com as casinhas pequenas de pedra muito escuras. Na praça, as andorinhas voam em todas as  direções e muitas já se vão alinhando nos fios dos telefones.
Continua pelas ruelas até à escola. Como é grande e bonita! Entra por um pequeno portão. O espaço exterior é dividido por um muro de granito que separa as meninas dos meninos, assim como o edifício da escola: do lado direito os meninos e do esquerdo as meninas. A sua sala é no piso de cima e tem que subir uma escadaria larga, com um corrimão. Que sorte! É uma correria escada acima e abaixo, ao toque da campainha.
Adora a hora do recreio: as corridas, as brincadeiras e os jogos com as amiguinhas. Num saltinho, corre à padaria da Senhê Céu. Ela é muito simpática e bonita, e, dá-lhe um papo-seco quentinho, com duas maminhas nas pontas. Que bem que lhe sabe!
Na sala de aula, a professora Nazaré vai escrevendo no quadro preto enorme, que está na parede. Por cima, duas fotos enormes de homens com um rosto sisudo e, ao centro, uma cruz com Jesus Cristo. Os dias vão passando: como é bom aprender! Adora quando é dia de prova escrita pois pode escrever com uma esferográfica naquelas folhas enormes e com muitas linhas. E não se pode enganar nem dar erros, para ficar tudo bonito!
Com o passar do tempo a responsabilidade aumenta: há que fazer bem os problemas de matemática. A professora tem uma régua grande, e, a cada erro, leva três reguadas. Ai! Ai! Já começa a esfregar a mão no vestido de lã: assim quente não dói tanto. Depois da reguada, para aliviar a dor, passa a mão na chapa metálica fria do suporte da mala.
Também há o dia das vacinas: vem a enfermeira, a menina Isaura. Ela trabalha no hospital da vila, onde também dá consultas o Dr. Alves, o médico, que também mora na vila. A menina Isaura sabe muito bem dar as injeções: só se sente a palmada.
Então, as meninas fazem uma fila sob o olhar vigilante da menina Ilda e da Senhê Zézita. As vacinas que custam mais são aquelas em que rasgam a pele com um aparo até fazer uma estrelinha. Doem mais, mas tem que aguentar senão as outras riem-se.
À hora do almoço, vai à cantina, que é por detrás da igreja. Desce um degrau: de um lado e do outro há várias mesas compridas de madeira com bancos corridos. Antes de comer vai para uma fila de crianças, que esperam para tomar a colher de óleo de fígado de bacalhau. Todos fazem caretas e riem. "Há por aí um gomito de tangerina?" É para tirar o mau gosto que fica na boca. Quem tem divide com as outras. Comem uma malga de sopa acompanhada de pão; outras vezes é uma malga de leite, feito de leite em pó.
Antes de regressar a casa ainda se atreve a jogar ao paspelho com as amigas, no largo da fonte velha. Mas não pode demorar-se, senão a mãe vai ralhar.
Sobe a quelha e, por vezes, vira-se para trás com medo, não vá algum lobo, uma bruxa ou a má-hora a segui-la, resultado de conversas ouvidas aos adultos, que a reportam para um mundo imaginário.
Chega a casa e a mãe já não está nada contente, pois há tarefas para fazer. Pega outra vez na sacola e conduz a cabrita até à barreira: caminha à sua frente, sempre a mordiscar o mato nos rebentos mais tenrinhos. Ao fundo avista-se o lameiro verdinho e a reluzir de água cristalina. Há roupa estendida sobre a relva, a corar. A roupa é lavada no ribeiro que corre abundantemente sobre as lajes de granito. Por vezes acompanha a mãe e as irmãs na lavagem da roupa. Aproveita ainda para chapinhar com as irmãs naquele caudal abundante, onde crescem plantinhas com flores lindas, amarelas e azuis, e onde veem as libelinhas, os peixes cabeçudos e as freirinhas. Mais abaixo, o caudal precipita-se pelas pedras muito inclinadas, formando uma grande cascata. Quando o caudal baixa e as pedras ficam a descoberto, as mesmas servem de escorrega. Então, a criançada é um ver se te avias, a escorregar pedra abaixo uns atrás dos outros, e aquele lugar enche-se de vida com as suas gargalhadas.
A cabrita lá continua, comendo as ervas tenrinhas pela regueira adiante, que leva a água da regadia até às Lages e às Tapadas de Baixo. Atravessa o ribeiro para o outro lado da barreira e sobe à pessera grande, que tem muitas saliências e para onde vai brincar às vezes com as irmãs. Tem uma saliência tão grande que até dá para se abrigarem da chuva. Senta-se lá e faz os trabalhos de casa. A cabrita continua a remoer, com os olhos por vezes postos na dona.
O sol começa a declinar e a cabrita inicia o percurso de regresso, lentamente, ainda mordiscando aqui e ali. A barriga já vai redondinha e as tetas tesas de leite. A cabrita dirige-se para a loja. Vai buscar a cafeteira para a ordenhar e enche-a de leitinho morno a espumar. Está a ficar fresco e a chaminé já fumega: a mãe está a preparar o jantar.
Corre a buscar a sua bola saltitona e vai para a quelha. Atira-a contra a parede da casa, apanha-a no ar e vai saltitando e cantarolando: "Ao ar, sem lugar, sem mexer, sem me rir, sem falar, uma mão, à outra, um pé, ao outro, à frente, atrás, cruzar e bailar".
A mãe chama todos os rebentos para dentro. Sentam-se à volta do lume com o prato do jantar ao colo. A seguir todos rezam o terço com os olhos postos no braseiro. Vai ao balcão e espreita a rua: a noite está fria e escura como breu. Olha o céu, cheio de estrelinhas a cintilar e volta para dentro. “A sua bênção mãe.” A mãe estende-lhe a mão e sorri. “Que Deus te abençoe e faça de ti uma santa!” Depois vem o sono reparador, aconchegada na cama com as suas irmãs.


T.T.

8 comentários:

Luís Miguel Diogo Leitão disse...

Simplesmente delicioso este texto.

Anônimo disse...

Esta história campestre, descreve o tempo não muito distante que era a vida de uma família que vivia fora do burgo,sacola transformada onde se guardava a pedra e o ponteiro, a ida à escola uma descoberta, tão bonita e grande; o sobe e desce das escadas, a aprendizagem, as brincadeiras no recreio, o papo-seco acabado de sair do forno...
Nos dias em que havia um exercício era uma alegria para a criança, nesse dia escrevia com uma esferográfica em folhas muito grandes até tinham linhas e tudo. A preocupação da aluna para não dar um único erro, à medida que aumenta a idade cresce a responsabilidade; erro ou problema errado a régua da professora Natália trabalhava. As vacinas não custavam a tomar, a enfermeira Isaura sabia. O óleo de fígado de bacalhau era cá uma purga! o que valia era o gomo da tangerina.
Até chegar a casa ainda se entretinha a jogar ao paspelho,a quelha era a morada das bruxas, da má hora, quando chegava a casa levava a cabrinha para o mato ao mesmo tempo fazia os deveres, lá em baixo a água corre pura, cristalina no lameiro, algumas mulheres lavam no ribeiro, a alegria que era chapinharem na água escorregarem pelas pequenas cascatas e a cabrita continuava a comer a erva saborosa que abunda nas regueiras, com o aproximar da noite a cabra inicia o caminho de regresso, a mãe acende a lareira, enquanto prepara o jantar ainda tem tempo de jogar à pela atirando a pequena bola contra a parede enquanto vai dizendo uma lenga-lenga cantarolada
-Meninos... chama a mãe; entram de roldão, sentam-se à volta do lume cada um com seu prato de comida. Finda a refeição, dão graças a Deus, rezam o terço...
Antes de se deitar, abre a porta olha o céu estrelado, volta a entrar, pede a bênção à mãe e vai para a cama.
Magnifica esta história.
J.M.S

Anônimo disse...

Espelhos da minha infância. Eu já fui um pouco priviIegiada, acho que já não tive o ponteiro e a pedra, mas já cadernos. O 25 de abril apanhou-me no 2ºano, derrubaram os muros que separavam os meninos das meninas, os quadros, vieram novidades como colónias de férias, teatros. O meu irmão (José Teodoro) mandou-me fazer quadras do 25 de abril : ainda me lembro de duas:

O 25 de abril
é muito nosso amigo,
pois veio a Portugal,
livrar-nos de todo o perigo.

O 25 de abril
deu-nos a paz,
com um pontapé no Marcelo
e outro no Tomás.

Mas as brincadeiras na barreira, o guardar das cabritas e borrego (uma vez um marrou-me toda), as brincadeiras no intervalo da escola, o jogar à bola na parede da quelha, apanhar ervas para fazer comida, bolinhos de terra (uma vez eu a Belita e não sei se a Adélia, acendemos uma fogueira num buraco na parede para cozermos os nossos bolinhos no forno, o que nos valeu foi a ti Carlota que veio acudir e apagar o incêndio que provocámos) mantiveram-se.
Ontem, fiquei triste quando ouvi uma aluna perguntar a outra se, no intervalo, queria ir brincar " à morte e solidão", fiquei chocada, perguntei o que era aquilo? Explicaram-me que era qualquer coisa de vampiros, nem quis entender e disse: "no meu tempo jogávamos à bola na parede, à macaca , à linda falua... e um aluno perguntou: o que é isso?" Prometi-lhe que qualquer dia íamos jogar.
Senti-me triste por eles, hoje têm tudo, mas nós tivemos uma infância bem mais feliz!

M.Luz Teodoro

Anônimo disse...

Fiquei emocionada com todas estas lembranças da nossa infância cheia de experiências tão enriquecedoras, onde havia tempo para brincar, estudar e ajudar nas tarefas da família. Hoje fico surpreendida quando estou em São Vicente e quase não vejo crianças a brincar na rua, nem acompanham os pais nas tarefas das hortas. O que se passa com estes casais jovens que deixam os filhos entregues aos jogos virtuais e não lhes proporcionam estas vivências do contacto direto com a Natureza? Depois nas escolas temos que criar as hortas pedagógicas pois eles não têm a mínima noção do que é uma semente ou como se desenvolve uma planta.

Conceição Teodoro

Anônimo disse...

Belo texto! Enquanto o lia, iam passando na minha memória muitos momentos da minha própria infância, igual à de quase todas as crianças daquele tempo.
Revejo-me também nos comentários, principalmente nas preocupações que alguns revelam. No nosso tempo não havia brinquedos, tínhamos que ajudar nos trabalhos da casa e do campo e os afetos e a preocupação pelo nosso sucesso escolar não eram muito explícitos. Apesar disso, e certamente porque tínhamos acesso a experiências muito diversas, não existiam os problemas de indisciplina, tristeza, desmotivação e várias outras situações que se traduzem no insucesso escolar e no desenvolvimento das mais variadas patologias infantis.
E isto é mais estranho ainda porque cada vez os pais são mais instruídos e têm mais acesso à informação, os professores têm melhor formação e é mais valorizada a opinião e intervenção de técnicos especializados em saúde e desenvolvimento infantil. Uma grande parte do problema estará em que não os ouvimos quando dizem que não damos às crianças tempo para elas próprias, principalmente tempo para brincar.
A propósito de jogos infantis: durante alguns anos fui responsável pelo desenvolvimento de vários projetos escolares. Um dos que teve mais sucesso e me deu mais gozo, pelo entusiasmo das crianças e participação das famílias, foi um que tinha como tema os jogos tradicionais.
M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

Pois...
Se as crianças não brincam tanto como dantes, a culpa é nossa, que programamos o mundo delas.
E não é tão verdade assim: as crianças brincam imenso, de muitas maneiras. Aliás, quando andava a estudar havia uma máxima que dizia: "A criança aprende brincando".
É verdade que as massacramos, é verdade que as viciámos nas tecnologias, mas também é verdade que parte destas ideias são saudosismo nosso e pouco mais que isso. E têm de concordar que aqueles tempos foram duros: contem os minutos do dia que a minha irmã teve para brincar (aquilo a que chamamos brincar, pois a brincar andava ela quase sempre)!

É curioso como num mesmo espaço, em tempos diferentes, eu e as minhas irmãs vivemos vidas originais, cada uma única e diferente.

Anônimo disse...

A TT tem uma forma magnífica da contar as coisas. A história é deliciosa, mas como diz o irmão Zé, a parte quente da emoção tem a ver principalmente com o nosso saudosismo. As crianças continuam abertas à descoberta do mundo. A organização da vida. A desertificação e concentração nas cidades. A falta de tempo ou pachorra dos pais é que os faz assim. São ignorantes do passado, mas vivos de todo para o futuro. Telemóveis e computadores é com eles. São seres do seu tempo não do nosso. Essa é que é essa. E a os pais e a escola é que muitas vezes se perdem nas sua próprias rotinas.
FB

Anônimo disse...

Não digo mais nada! Repito apenas o que disse o primeiro comentador: é um texto delicioso!
Curiosamente, embora a TT seja mais nova que eu, tudo o que ela ali diz era ainda assim no meu tempo!
Muito bem!
Abraços.
ZB