domingo, 3 de maio de 2020

Com um abraço!


Este confinamento físico a que estou obrigada está a deixar-me macambúzia e a limitar-me também em termos psicológicos. Como não consigo escrever nada, valho-me da capacidade criativa alheia e tenho andado a ler alguns livros que já li há muito tempo ou fui deixando para trás. Nos últimos dias voltei ao Mário Zambujal e, em «HISTÓRIAS DO FIM DA RUA» encontrei uma passagem que me fez lembrar uma história publicada neste blogue (28 maio de 2013), uma das que mais gosto do livro «DOS ENXIDROS AOS CASAIS…».

A do Mário Zambujal, aqui fica também:

«Alguém falou aí no nome de Julião Galo? Respeito e a máxima consideração em tudo o que disserem, fazem favor. Favor é como quem diz, obrigação. Nesta rua passou muita gente boa, do melhor, mas homem como o Julião Galo, meu amigo, irmão, nem procurando com uma candeia ou mesmo holofote. Tipo mais completo ninguém conheceu, nas quatro partidas do mundo, não desfazendo no distinto pessoal. A mim ensinou-me ele a tocar concertina. E sabia ele tocar concertina? Não Senhor. Então, como? Muito simplesmente: assobiando. Quem não o ouviu pode chorar-se, pouca sorte, nunca em dia nenhum há-de escutar um artista assobiando assim. As modas todas. Davam-nas na telefonia, apanhava logo. E depois tocando-as melhor, mais perfeição só com os beicinhos dele. Grande homem. Qual violino, qual clarinete! Ao pé do assobio do Julião Galo, todo o instrumento soava desafinado e fanhoso. E sem se cansar, de manhã à noite, tirando os retratos ou encostado na porta da loja. Comprei a concertina, nem arranhar sabia. E as músicas? Nada. Então ele afinca-se à minha beira, vá lá esta Geraldo, agora aquela, o Geraldo no assobio e eu dando aos dedos, a ver se engatava no tom, as voltinhas todas. Custoso. Aquilo não era homem, um pássaro. E apertando comigo, só mais uma vez, olha que linda valsa, noites e dias, até ser quem sou de concertina nas unhas. A ele o devo.
Deixou fama em toda a freguesia. Punha-se a assobiar e calava as conversas, escutavam-no como a um bispo. As senhoras em especial, verdade se diga. Não há esses das Índias que tocando flauta encantam as cobras? Assim ele com o mulheril: pareciam periquitos atrás da alpista. E o Julião afinadinho, a caprichar, apreciando os olhos delas na boca dele.
Foi assim o caso com dona Lucinda, sua esposa, mão do Vitorino Francisco, inda cá anda. Fotografia Recordação. Complicado. Porque dona Lucinda, anteriormente, encontrava-se casada com Arménio Fagolas, da serração. Tipo decente, por acaso. Mas também o Julião e a dona Lucinda. Culpa ninguém teve. Começou por ela: deu em prender-se ao assobio, vá de janela mal lhe zunia no ouvido à espera. Tango hoje, valsa amanhã, rumbas, fox-trotes, à mistura com olhares e fosquinhas, é o que dá: Julião ardendo pela ouvinte, pedaço de mulher, respeitosamente, e vice-versa. Tanto se encegueiraram, acontece o natural de acontecer nestas conformidades: fugiram. Sem malandrice ou menos vergonha – gostavam, gostavam, resiste-se a tudo menos ao bom. Trouxa às costas e aí vão, ele assobiando, ela toda ouvidos.
Quem rabiscou o seu bocado foi o Fagolas, temos de compreender. Até me apareceu, a mim!, pedindo e teimando: «Geraldo, saímos à busca deles.» E eu disse: «Agora, assobia-lhe às botas.»
Depressa se lhe gastou a pena, daí a nada pendurou-se no rico braço da menina Salustiana, bem servido. Mas por causa das moscas, o Julião e a sua senhora tardaram um ano a voltar para a rua. Sorte eu já ter aprendido os segredos da concertina.»

Com um abraço!

M. L. Ferreira

4 comentários:

José Barroso disse...

O Mário Zambujal era (e é?) jornalista desportivo. Fazia programas dessa área, na televisão. E acho que também fazia rádio. Ainda não li qualquer livro dele; apenas conheço alguns títulos, sendo o mais popular, creio, a 'Crónica dos Bons Malandros', até porque foi levado ao cinema. Mas li esporadicamente alguns textos.
Por aquilo que conheço do estilo, ele emprega uma linguagem muito simples e popular e, até, humorística; e o meio onde decorrem as ações dos personagens dos livros dele é, sobretudo, urbano.
Há uns anos atrás houve filhos de colegas meus que andavam no 12º. ano que me mostraram um exame final onde saiu um texto deste autor.
Tendo em vista o que disse a Libânia sobre a inspiração para a escrita, ouvi, precisamente, o Zambujal dizer, certa vez, mais ou menos o seguinte: 'Há dias em que me sento e não sai nada, outros parece uma torrente'! Portanto, Libânia, primeiro que tudo, senta-te!
Abraços, hã!
JB

José Teodoro Prata disse...

Às vezes somos injustos com pessoas que nem conhecemos e eu fui-o com o Mário Zambujal.
Diverti-me tanto a ler a sua Crónica dos Bons Malandros, mas depois nunca mais voltei a ele.
O Mário Zambujal é um observador, como o Torga, mas urbano (como escreveu o ZB) e com um estilo um pouco diferente

M. L. Ferreira disse...

Do Mário Zambujal também só conheço “Histórias do fim da Rua”, de onde retirei esta história e “À noite logo se vê” que já tinha lido há muito tempo. Agora voltei a pegar neles e tive uma boa surpresa, principalmente pela forma simples e bem-humorada como constrói as personagens e vai contando as várias histórias que se cruzam ao longo do livro. E, embora ficção, torna tudo tão verosímil que às vezes até nos parece que conhecemos aquelas pessoas. Para momentos descontraídos, vale a pena.
José Barroso, essa de ficar sentado à espera de inspiração, vê-se bem que resulta contigo. Mandei este artigo ao José Teodoro um dia ou dois antes da publicação da tua última história. Quando a li até pensei: «Como é possível tanta criatividade num tempo destes?» E senti uma pontinha não sei bem se de vergonha ou de inveja, porque comigo é mais o “esperar sentado”…


Anônimo disse...

Para quem gosta de cinema e não pode ainda sair de casa, esta semana a Quarentena cinéfila da Medeia tem filmes que vale a pena ver...