domingo, 24 de abril de 2022

A herança de Abril e Maio

Em 2009, publiquei este texto aqui no blogue. Repito-o, pois muitos não o leram na altura e outros, como eu, podem recordá-lo. Tem tudo o que para mim significa o 25 de Abril.

Em 1974, eu frequentava o 6.º ano (atual 10.º ano), no Seminário do Tortosendo.
No dia 25 de Abril, logo cedo, o P.e Guerra, pároco diocesano de Peraboa, chegou de carro e saiu a correr para a sala de professores. A seguir tivemos aula de Português. Com um rádio junto à secretária e outro no fundo da sala, em emissoras diferentes, tentávamos saber mais qualquer coisa do que se estava a passar em Lisboa. Contagiou-nos com o seu entusiasmo, mas cumpriu o dever de educador: atenção, pois liberdade rimava com responsabilidade! Uma chatice, para quem tinha 16 anos.

No dia seguinte, fomos ao Tortosendo. Pessoas ligadas ao Unidos disseram-nos que queriam o nosso P.e Jerónimo no comício de 28 de Abril!

O Unidos era o grande clube desta vila operária, um centro da oposição ao regime, com o qual o Seminário tinha uma boa colaboração cultural e desportiva.

E depois veio Maio.

Já conhecia as tradições das lutas dos operários do Tortosendo no 1.º de Maio. Anualmente, vários trabalhadores teimavam que era feriado e faltavam ao trabalho. Os patrões avisavam a GNR e, pela tarde, os guardas e a Pide iam buscá-los, eles que apenas estavam a comer umas chouriças assadas e a beber uns copos com outros amigos, à sombra de uma latada.

Mas o 1.º de Maio de 1974 foi diferente. A Vila preparou os farnéis e mudou-se para a ponte Pedrinha, no rio Zêzere. O meu pai andava a fazer a instalação da rede de esgotos no Cabeço e também foi à festa. Encontrámo-nos na estrada, mas eu fui com os outros seminaristas e ele com a família de um companheiro.

Meses depois, veio a greve dos operários dos Lanifícios. Nas últimas semanas, já havia fome. Os operários das aldeias em redor tiveram de trazer comida para os camaradas do Tortosendo. E venceram.
A Construção Civil foi igualmente beneficiada. Melhoraram os salários e reduziu-se a semana de trabalho. Com mais dinheiro e tempo livre, o meu pai já passava o sábado connosco e pode comprar e recuperar a casa da Vila, que se tornou a nossa morada. Ele costumava dizer que a nossa casa fora construída graças ao 25 de Abril.

Em 1975, criaram-se as camionetas dos estudantes e os adolescentes, bloqueados após a conclusão da Telescola, puderam prosseguir os estudos em C. Branco. Também eu, sem emprego, nem possibilidades de ir para a universidade, beneficiei delas um ano depois e tornei-me professor do Ensino Primário.

Durante muitos anos, em cada 25 de Abril, emocionava-me aos primeiros acordes da Grândola Vila Morena. Agora, felizmente, já não. A liberdade e os direitos dos trabalhadores tornaram-se tão naturais como o ar que respiramos. E se, infelizmente, as coisas não mudaram o suficiente para o bem de todos, temos a liberdade de contribuir para que tudo melhore.

José Teodoro Prata


4 comentários:

M. L. Ferreira disse...

Um texto que resume bem o valor do 25 de Abril para os portugueses, mesmo aqueles que não tinham grande consciência política, como era o meu caso.
Para as mulheres, embora tanta coisa esteja ainda por fazer, o 25 de Abril foi ainda mais importante. Este excerto de um texto de Maria Velho da Costa (Mulheres e Revolução)diz bem das mudanças das suas vidas logo após a Revolução:
«Elas fizeram greves de braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta. Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas. Elas vieram para a rua de encarnado. Elas foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua. Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo. Elas ouviram falar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas. Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra. Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram medo e foram e não foram. Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas. Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro urna cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões. Elas levantaram o braço nas grandes assembleias. Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas disseram à mãe, segure-me aqui os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é. Elas vieram dos arrabaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada. Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos na mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens. Elas iam e não sabiam para aonde, mas que iam. Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas»

José Teodoro Prata disse...

Texto lindo!

Anônimo disse...

Um viva a todos neste 25 de Abril. E é bom recuperar estes dois textos, de que gosto e gostaria de ter escrito.
Ainda um dia (nos 50 anos, daqui a 2?) podíamos trazer aqui os 25deAbril1974 individuais dos que o podem recordar.
Sebastião Baldaque, em representação de J Miguel Teodoro

José Barroso disse...

Muita coisa foi dita sobre o 25abril74. E talvez não haja um "corte" tão importante como este na história de Portugal. Não é que não tenha havido outras datas importantíssimas, entre as quais, a Revolução de 1820 ou a instauração da República em 1910. A diferença é que nós, nas outras, parece que não estávamos ainda preparados para assumir a democracia plena, com voto universal e igualdade de género. Apesar de tudo, agora estávamos mais maduros para assumur muita coisa, ao contrario de épocas anteriores. O processo, mesmo assim, não foi fácil porque houve várias derivas, o que acontece com todas as revoluções; até que se encarreirou pelo caminho da moderação.
A entrada para a hoje UE acabou também por solidificar o regime português como uma democracia representativa dominante na Europa Ocidental. Foi possível lançar as bases da cidadania com o Ensino generalizado, a Saúde para todos (SNS), a Segurança Social, o Estado de Direito a sério, com igualdade formal perante a lei de todos os cidadãos, incluindo homens e mulheres. O dinheiro da UE claro que veio ajudar muito desde logo nas infraestruturas rodoviárias. Não há país desenvolvido sem vias de comunicação como os Romanos bem sabiam.
Não está tudo bem. Por exemplo, a Justiça é lenta, a mulher, na prática ainda é discriminada e há muita corrupção. Recentemente os grupos populistas aproveitam as fraquezas do sistema para o atacarem. A democracia não está garantida e por isso é preciso estar alerta.
Abraços, hã!
JB