domingo, 3 de abril de 2022

Escravos em São Vicente da Beira

 A escravatura, nas diversas formas que foi adquirindo ao longo de milhares de anos, em diferentes civilizações, terá sido a prática mais aberrante de organização e relacionamento social. A partir do século XV, com os milhares de escravos trazidos de África para a Europa ou levados depois para a América, tornou-se ainda mais desumana.

«Os escravos pululam por toda a parte. Todo o serviço é feito por escravos e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. Estou em crer que em Lisboa os escravos e as escravas são mais que os portugueses livres de condição. Dificilmente se encontra uma casa onde não haja pelo menos uma escrava dessas. Mal pus o pé em Évora julguei-me transportado para uma cidade do inferno – por toda a parte topava negros.» É com esta citação de um flamengo em Portugal no século XVI que Fernando Rosas começa o programa “Escravos e escravatura em Portugal” (https://ensina.rtp.pt/artigo/escravos-escravatura-portugal/) que vale muito a pena ver ou rever.

E também houve escravos em São Vicente! Não será possível saber ao certo quantos, mas seguramente muitos mais do que estas duas mulheres que, por terem tido filhos, ficaram identificadas nos Registos Paroquiais:

José, que nasceu no dia 21 de outubro de 1738. Diz o registo que era filho de Luzia de Jesus, preta, escrava de Francisca Xavier de Andrade, que a trouxe de Lisboa. (Francisca Xavier de Andrade, filha de Manuel da Costa Aragão e Maria Simões, possivelmente uma das sobrinhas e herdeira do presbítero Manuel Simões). O padrinho da criança foi o licenciado Francisco Simões Cardoso.

Luzia de Jesus teve uma vida longa - faleceu em 1798. No registo de óbito dizem que se chamava Luzia Preta e que era pobre…

Este registo dá-nos conta do nascimento de uma criança (Francisca?) em 1753, filha de Francisca (?), solteira, menor, escrava de João da Costa Fragoso, natural do Teixoso. O registo está muito danificado, mas percebe-se que Francisca teria vindo da América, dizia que não conhecia os pais nem sabia os seus nomes. Os padrinhos da criança foram o licenciado António de Mesquita, e Cecília Velosa, recolhida no convento da Vila.

Não consegui saber se estas crianças sobreviveram e deixaram descendência. É possível que sim, e alguns de nós tenhamos sangue escravo a correr-nos nas veias.

Em Portugal a situação dos escravos começou a mudar a partir do século XVIII, com a legislação do Marquês de Pombal. Mas, com muitos avanços e recuos, incumprimentos e ambiguidades das muitas leis produzidas, só passados mais de cem anos, em 1869, a escravatura foi finalmente abolida de todo o território nacional. Seguiu-se-lhe depois a servidão, principalmente nas comunidades rurais, que muitos ainda conhecemos.

M. L. Ferreira

Nota: há comentários novos e interessantes, nas duas publicações anteriores; peço desculpa aos autores pelo atraso.

José Teodoro Prata

4 comentários:

Margarida Gramunha disse...

Que interessante, vou espreitar o link.

Quantos dos nossos comportamentos atuais, todos como normais, serão daqui a centenas de anos considerados aberrantes?

Só conseguimos ver até onde a nossa consciência nos permite, é por isso que era perfeitamente normal a escravatura, no passado , e agora só o é em locais remotos e que consideramos " selvagens", onde se sobrevive em vez de se viver.

Quero com isto dizer que se não se têm as necessidades de sobrevivência do corpo, maioritariamente asseguradas, não há possibilidade de preocupação com outro tipo de necessidades, como as do intelecto ou do espírito.

Ainda que a escravatura, laboral , esteja maioritariamente extinta no planeta, a precariedade e os baixos rendimentos de muitos trabalhos deixam-nos menos distantes dela.

Temos novas escravaturas individuais, dos nossos pensamentos negativos e autocrítica, dos média e redes sociais, substâncias tóxicas e aditivantes.

E sobretudo, no coletivo, a escravatura da juventude... Imaginem o que seria se de cada vez que uma folha de árvore mudasse de cor ou caisse, no outono, nós corressemos a pinta-la novamente de verde ou a cola-la de novo no ramo...

Eu pessoalmente tenho o outono como a minha estação preferida, pela diversidade de cores e abundância.

Não fazia ideia da existência de escravos em S.Vicente. Muito muito interessante. É bem provável que haja algo de negro e mouro no sangue de cada português.

José Barroso disse...

É um assunto muito vasto e dos mais polémicos desde que o homem é homem! Provavelmente, a escravatura terá começado cedo, com os povos derrotados nas guerras e aproveitados pelos vencedores como mão de obra barata. As sociedades antigas e até as mais civilizadas da época, eram todas esclavagistas. A Bíblia é fértil nessas descrições. Os hebreus tinham escravos, mas também aparecem como escravos, quer no Egito, quer na Babilónia! A Grécia, berço da civilização ocidental, apesar da democracia, tinha escravos. E a comunidade romana, com os seus escravos, é sobejamente conhecida, mesmo através dos filmes de Hollywood.
Mas creio que, se a escravatura pode ter começado com os prisioneiros de guerra, acabou por se impor como regra, uma vez que os descendentes, na sua maioria, herdavam a condição dos pais. Um professor meu disse, uma vez, que a escravatura, a certa altura, já não era "fruto da maldade humana", mas que tinha que ver com a estrutura social; visto que o escol dominante não estava talhado para o trabalho e então tinha que haver a classe dos trabalhadores.
Jesus de Nazaré veio elevar o escravo à dignidade do seu amo. Naquele tempo isso foi mais importante que mudar a própria lei. Ele nunca se incomodou muito com a formalidade ("não vim mudar a Lei"), mas, sim, quis mudar a substância. Esse germe ficou e continuou a produzir frutos ao longo do tempo. Demasiado tempo! Mas o humanismo que se encontra hoje plasmado nas leis (mas, às vezes, não na pática) das nações civilizadas, sem dúvida que, pelo menos no Ocidente, tem as suas raízes mais profundas no Cristianismo!
Creio que todos têm uma ideia da penosa condição de escravo. Há mesmo textos quase impossíveis de ler sem comoção, como é o caso de uns trechos que li sobre a separação dos escravos que tinham chegado de África a Lagos, Algarve, no séc. XV. (Gomes Eanes de Azurara). Apesar de tudo, de o escravo ser apenas uma mercadoria, também há imensos exemplos de senhores e escravos entre os quais se desenvolvia uma relação muito estreita de laços pessoais.
Mas, sem dúvida, que a coisa era objetivamente má, porque era ocasião para que o homem, em regra, vilipendiasse o homem. E a sua abolição foi uma vitória para o próprio homem!
Abraços, hã!
JB

José Teodoro Prata disse...

Temos em São Vicente os Chão dos Negrinhos, na Corredoura, ao alto da Rua do Eiró. Foi comprado pelos meus tios e padrinhos José Candeias e Stela e é agora dos meus primos Luzita e João Candeias.
Não existe uma família com o apelido Preto?
Há certamente sangue negro, mouro e árabe a correr nas nossas veias, embora recentemente se tenha concluído que a população vinda da Arábia e do Norte de África foi diminuta e o grosso da mourama eram os antigos cristãos que, após a conquista muçulmana da Hispânia, se converteram em massa ao Islamismo, uma religião muito parecida ao Cristianismo, ambas filhas do Judaísmo.

Anônimo disse...

Vai fora de tempo, já se vê, mas aqui fica.
Interessante - de facto não fazia ideia nem deste conterrâneo José, nem da conterrânea Francisca, descendentes de escravas; também não sabia do Chão dos Negrinhos.
Obrigado Libânia e ZTP.
A importância de sabermos isto, a meu ver, é irmos tendo consciência do material de que somos feitos; somos o produto disto tudo. Sem julgamentos, mas cientes de que - também - do comércio escravo vem parte do (conforto, riqueza, bem-estar) que temos hoje.
Vem a propósito recordar a obra de José Capela, um estudioso do comércio negreiro português, e especialmente o (penso que) recente "Conde de Ferreira & Cª", sobre um filantropo de nomeada, boa pessoa, cidadão exemplar, protector dos pobres e desafortunados, nobilitado, com o nome ligado a n escolas por todo o país, cujos capitais vieram em boa parte desse comércio. Não é só dele que trata o livro, e digo-vos, os números são impressionantes.
Lembro-me a propósito de três coisas que me obrigam a pensar e passo também a bola a quem interessar: 1-que o escravo-mercadoria era africano (e não asiático, ou americano); 2-o que ouvi, na semana passada, a uma estimável senhora que sofreu a guerra civil em Angola, em 1975, e que se interrogava por que razão o mundo se interessou menos por essa guerra do que pela que está a acontecer na Ucrânia, ambas terríveis, só que aquela "lá em baixo" e esta "aqui ao lado"; 3-interrogo-me se a máscara que uso, os ténis de marca que calço, a t-shirt amarela de que mais gosto foram ou não produzidas por trabalho escravo.
Do coração, bom 25 de Abril, meus queridos.
JMT