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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

As Fontes do Campo

É rica e diversa a natureza em que se insere a povoação de São Vicente da Beira.
A norte ergue-se a serra da Gardunha. A sudoeste fica a charneca, assim chamada por, no passado, ser de matos rasteiros a vegetação que cobria as terras enrugadas da margem direita da Ribeira da Vila (ou Ribeirinha) para o poente. A margem esquerda, a sudeste, tem também o solo irregular, mas aos poucos vai-se alisando e torna-se campo, que se estende, com raras depressões e elevações, até ao rio Tejo.
Esta última zona, situada no sopé da serra, vai da Ribeirinha à Ocresa e foi povoada na época romana. Os muitos achados arqueológicos ali encontrados nunca mereceram o devido estudo, mas a sua abundância permite-nos essa conclusão.
Ficou-nos, desse tempo, a tradição do cultivo da vinha nesta área. A toponímia da zona atesta a existência de vinhas ancestrais: Vinhas, Monte das Vinhas, Alto da Vinha, Vinha do Fojo* e Vinhas de Miguel Vicente.
No século XVIII, há cerca de 250 anos, eram ainda essas terras um enorme espaço baldio, apenas salpicado por algumas propriedades semi-particulares, destinadas ao cultivo da vinha. Os vinhateiros eram donos das vinhas apenas entre o Santiago (1 de Maio) e o São Miguel (29 de Setembro), tempo em que as mesmas ficavam coutadas aos rebanhos. Nos restantes meses, todos eram livres de ali apascentar os seus gados.
O "Tombo dos Bens do Concelho" é um inventário feito aos bens públicos, realizado entre 1767 e 1785, a mando do rei D. José I, por Lei de 19 de Agosto de 1766. Dele já aqui apresentámos a demarcação dos Enxidros e dos Coutos da Vinhas.
Havia nestes Coutos da Vinhas três fontes públicas. A Fonte da Portela servia os vinhateiros e os pastores, mas também os viajantes, pois situava-se na estrada real que unia Castelo Branco ao Fundão e Covilhã, pela Ponte de Santiago, em Cafede, e pelo Alto da Portela ou Portela de São Vicente. Havia ainda um poço e uma poça de água, onde homens e gados podiam livremente matar a sede.
Das três deixamos a descrição, tal como foi registada no tombo de 1767-1785:

Medição e demarcação da Fonte da Portela
«E logo no mesmo dia, mês e ano atrás declarado (dezasseis dias do mês de Novembro da era de mil setecentos e sessenta e sete anos), no sítio da fonte da Portela, pelo dito ministro (o juiz de fora) foi mandado aos medidores medissem a dita fonte e, sendo por eles medida, principiou a medição pelo frontispício*.
Tem de medição quatro varas*, com os batórios*, e de comprimento uma vara e meia*. E o chafariz tem de comprimento uma vara e uma terça* e de largura uma vara menos uma sesma*. E assim a fonte, como o chafariz, que está pegado, é de cantaria.»




A actual Fonte da Portela (fonte e tanque). Comparando o texto com as imagens, conclui-se que a fonte já não tem a forma e a grandeza que teve no passado (além de se encontrar abandonada). O caminho que passa junto da fonte ainda apresenta troços de calçada romana bem conservada.

Medição e demarcação do Poço do Concelho que se acha na vinha de Joam Antunes de Abreu, ferrador desta Vila
«Logo no mesmo dia mês e ano atrás escrito e declarado (3 de Dezembro de 1768), em este dito sítio das Vinhas e vinha de Joam Antunes Ferrador desta vila (...).
Acharam que tinha duas varas de comprido e uma de largo e que era concelhio e o concelho se achava na posse dele.»



As Vinhas do Poço, na actualidade. O poço situa-se a sul (por baixo) da casa.

Medição e demarcação da Fonte da Mó
«…e vindo todos a este lugar nas Vinhas de Miguel Vicente que, no sítio dela, em vinha de Vicente José de Azevedo* desta mesma vila, se acha uma poça de água perene que tem nome de Fonte da Mó, a qual por sumária informação consta ser pública, tanto assim que, pretendendo o dito Vicente José mudá-la, lhe foi impedido pelo povo, constando mais que os ministros que servem nesta vila e seu termo impunham aos vinhateiros de limpar esta fonte ou poça, o Poço do Concelho sito nas mesma vinhas e a Fonte da Portela, pelo que ficava sem dúvida que a dita fonte ou poça era pública pelos públicos cuidados que com ela tinham os magistrados (…).
Tem a mesma a figura de uma poça da qual sai um rego de água (…), tem doze palmos* em circunferência e fica onze varas e meia arredada da estrada que pelo dito sítio das Vinhas de Miguel Vicente passa.»


Vocabulário:
Batório – Banco de pedra, para as pessoas se sentarem e pousarem os cântaros.
Frontispício – Fachada principal; frontaria.
Meia – Metade da vara.
Palmo – O uso do corpo para fazer medições foi anterior ao uso de objectos como a vara. No século XVIII, em medidas oficiais, ainda se usava o palmo para medições lineares em forma de circunfrência. Usou-se nesta poça de água e, na mesma época, também para medir a grossura (o perímetro) das colunas que sustentam o coro da Sé de Castelo Branco.
Sesma – A sexta parte da vara.
Terça – A terça parte da vara.
Vara – Antiga medida de comprimento, correspondente a 5 palmos. A vara traçada na porta oeste da muralha de Sortelha mede 1,1 metros. A vara era a unidade das medidas lineares usadas antes da introdução do sistema métrica, que ocorreu no início do século XIX, logo após as Invasões Francesas. Aliás, o sistema métrico decimal é uma criação da Revolução Francesa.
Vicente José de Azevedo – Vicente Joze de Azevedo Lemos Monforte e Andrade era filho de Manoel de Andrade Azevedo Monforte e de Maria de Lemos Franca, falecida a 28 de Fevereiro de 1766. Vicente Joze de Azevedo era cavaleiro da Ordem de Santiago. Em 1779, estava casado e tinha 3 filhos. A sua esposa era dos Escalos de Cima. Morava na Rua do Convento. Foi procurador do povo, em 1767. No dia 31 de Dezembro de 1775, substituiu o juiz de fora, como juiz vereador. Tinha um lagar de vinho na Vila, em frente da sua casa. Era dono do Caldeira, formado por um chão e um souto. No ano de 1762, a suas propriedades estavam avaliadas em 6.000 cruzados, mas, em 1781, a sua fortuna já subira para 10.000 cruzados (1 cruzado = 480 réis).
Vinha do Fojo – Actualmente, chama-se àquele local Vinhas do Poço e não do Fojo. Terão os militares que fizeram a carta percebido mal o nome ou Vinha do Fojo é um nome ainda mais antigo do que Vinhas do Poço? Um fojo era uma armadilha para apanhar os lobos, como já informámos na publicação de 8 de Julho de 2009.


Pormenor da Carta Militar n.º 268, apresentando a zona dos Coutos das Vinhas, onde se situavam as três fontes referidas. O sítio de Miguel Vicente ainda hoje mantém esse nome e situa-se por baixo da Oles, talvez no local indicado como Monte das Vinhas ou muito próximo dele. Clicar na imagem, para ver melhor.

sábado, 21 de março de 2009

Coutos e mais enxidros


Cerejeiras em flor, no Ribeiro de D. Bento. Ao fundo, os Enxidros (Cabeço do Pisco).

Este blogue iniciou-se com a apresentação dos Enxidros, nome próprio por que era designada a zona baldia da encosta da Gardunha acima de S. Vicente da Beira.
Por esses dias, encontrei, na Internet, nova referência aos nossos enxidros, mas desta vez a palavra era usada como nome comum.
Foi no sítio Ius Lusitaniae. Fontes Históricas do Direito Português, da Faculdade das Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
O endereço é: www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt
O sítio publica legislação antiga e o Alvará de 27 de Janeiro de 1680 refere-se à decisão judicial relativa a um conflito entre a Câmara Municipal de S. Vicente da Beira e o Convento das Religiosas Franciscanas, a propósito do uso das pastagens concelhias por parte do rebanho do convento. O poder real decidiu a favor das Religiosas do Convento Franciscano.
Devem ler a contenda judicial, mas fica aqui um resumo:
O Convento mandava apascentar o seu rebanho nos enxidros e nos coutos baldios, mas os oficiais da Câmara expulsavam de lá as ovelhas e multavam as religiosas.
Estas queixaram-se ao poder central, alegando que a vila não tinha açougue onde se abastecessem de carne e por isso precisavam de um rebanho, de pelo menos 100 cabeças, para sua alimentação.
O Príncipe Regente, futuro rei D. Pedro II, mandou ouvir a Câmara e depois decidiu que o rebanho podia pastar livremente nos coutos e nos enxidros, com a condição de, no tempo da castanha (Outono), pastar só nos coutos e, no tempo em que as vinhas estivessem com a novidade (Primavera e Verão), ir só para os enxidros.

Desconheço o significado de enxidros, mas a ideia que me surge, sempre que leio esta palavra, é de uma encosta de onde escorre a água que enche, provoca enchentes, enxurradas. Um dos ribeiros afluentes da margem direita da Ocreza, que desce da serra na zona da Oles, chamava-se ribeiro do Enxidro, no passado.
O termo couto designa, neste caso, uma terra que se fechava por algum tempo à livre circulação dos gados. Os coutos das Vinhas, que brevemente apresentarei, à semelhança do que fiz com os Enxidros, eram terras baldias, situadas desde a Fábrica e do casal do Pisco para sul, até abaixo do Valouro. No meio destes coutos, existiam muitas vinhas, cujos donos apenas detinham a sua posse entre S. Tiago e S. Miguel (de Maio a Setembro). No meio dos coutos, existia um poço concelhio, em vinha particular, para uso livre de pastores e vinhateiros.


O rebanho do Ângelo, o rendeiro do Casal do Aires, a pastar junto à Fábrica, onde começavam os Coutos das Vinhas. Primavera de 2007.