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domingo, 29 de janeiro de 2017

Conversas na Vila

Era mais uma manhã escura de janeiro. Na vila, fazia frio e chovia. Corria um daqueles invernos habituais, longos e modorrentos com chuva miudinha e persistente. Com a humidade excessiva, os quintais, à ilharga das casas, onde se acumulava o estrume dos animais, que se acomodavam na loja, por baixo ou ao lado das habitações, tinham um cheiro peculiar a decomposição, pouco agradável! O tempo passava lento, com aquele assardaniscar do carujo a ensopar a terra, mas a fazer crescer as águas freáticas e a ribeira, o que era bom!
Mas certo é que, com o tempo que fazia, a vida nas fazendas era muito agreste. Mesmo assim, todos se levantavam logo pela manhã cedo, ainda ao lusco-fusco.
A mulher punha o almoço em cima da mesa da cozinha. Comiam as migas ou as sopas de leite ou o feijão pequeno e, ala que se faz tarde! Com o almoço na barriga, os homens lá iam, casaco pelas costas, para se protegerem da humidade e do ar frio da manhã, dar o almoço aos vivos, que já faziam a chinfrineira matinal com a fome. A burra zurrava assim que ouvia a voz do dono e os porcos cuí, cuí, pediam também o almoço! A manhã avançava e andavam por ali, entretidos, a dar as forragens secas ao gado, guardadas desde o último verão. Ração de feno para ovelhas e cabras. Palha triga e caneirões de milho para os animais de carga e de tiro.
— Raio de tempo este que não deixa fazer nada nas fazendas! — disse Bernardo Garrancho, de si para si, arreliado com a invernia que tudo trazia enchapuçado!  — As fazendas querem ver o dono todos os dias! E ninguém as trata melhor! Por isso, lá diziam os antigos, “Quando o dono morre, as fazendas vão com ele!”
Por vezes passava ali pela porta da loja um vizinho ou mesmo um conviva habitual dos domingos à tarde, na taberna:
— Bons dias nos dê Deus!
— Tu por aqui, Tonho?! Tu que moras da praça baixo, aqui no cimo de vila a esta hora?! Anda por aí passarinho novo!
O seu nome era António Dias, mas os amigos chamavam-lhe Tonho Racha! A alcunha vinha-lhe de repetir muitas vezes na roda de conversadores, na praça ou na taberna, sobretudo quando já estava com um copito: “Se for preciso, racha-se já um diabo!” Apanharam-lhe o ponto! Mas lidava bem com a alcunha que, afinal, não lhe arrancava nenhum bocado! À provocação de Garrancho respondeu:
— Ná! Não quero, nem tenho idade para isso! A minha mulher tem feito vir muitos ao mundo porque … é a parteira da terra!
— Bem sei! E que tem isso?!
— Tem que, para alvoroço de crianças, já basta as que tenho, que são minhas e dela e as dos outros que ela vai ajudando a nascer! 
— Então e depois?!
— Depois, é que vim só a dizer ali ao João Jarêto para falar com o patrão a ver se me pode ir lá dar uma jeira daqui a um mês ou dois, à entrada da primavera. Tenho a fazenda do Vale de Caria com o mato a querer avançar para um leirão que este ano quero semear de batata. Aquilo tem que ser atalhado quanto antes. Senão, os vizinhos vá de me censurarem a dizer que ali não entra ferro de enxada nem charrua! E, como bem sabes, a semente quer mudar de terra de vez em quando, senão deixa de luzir! Olha lá, ou!... Mas, que andas tu a fazer, Bernardo?!
— O que hei de andar a fazer, Tonho? — respondeu Bernardo Garrancho. — Com o tempo como tem ido, ando aqui a dar de comer à burra e aos bácoros, porque as cabras, essas, estão sempre na serra. O meu neto, que pode bem melhor que eu, ainda hoje tem que dar lá um salto para lhes dar a ração, apesar do tempo que faz! Tenho lá ainda as galinhas e os coelhos que também estão sempre a reclamar a sua parte. Na semana passada a raposa fez-me lá estragos! Escavou um buraco por baixo da parede de madeira e rede do galinheiro, conseguiu entrar e matou-me meia dúzia de galinhas, o estupor! Aquilo deve ter sido um desassossego! Mas quê?! Se é no verão, estamos a dormir lá ao lado, em casa, e podemos acudir logo que haja alarido nos animais. De inverno vimos a dormir para a vila e é o que se vê! Já viste como vai este ano que ainda há dias começou?! Um alagoeiro que alto lá com ele! Nada se pode fazer que as terras não estão capazes!
— Deixá-lo — retorquiu Tonho Racha. — Uma temporada assim é boa para as couves negras e, sobretudo, para as nascentes. Sem elas como é que, no verão, regamos as batatas, os tomates e as alfaces?! Sofremos esta inclemência, se é que podemos assim chamar-lhe, mas a partir da primavera, vamos gozar o que agora estamos a amargar! E lá diz o ditado: “Quem manda, pode”!
S. Pedro, que era quem podia, não estava a colaborar. Aquela invernia ensopava tudo!
— Mas — acrescentou Tonho Racha — volúvel, é a oração do crente! Agora quer chuva, logo quer sol e calor! Por isso é que o santo decide como lhe apraz, sem atender aos rogos dos homens!
O resultado ver-se-ia na primavera, com a natureza a rebentar, prenhe vida.
O “casarão”, assim designado pela família, era a loja térrea dos animais em casa de Garrancho, onde os dois amigos se encontravam em amena conversa. Espaço em parte coberto pela “casa velha”, também assim apodada pela família e, em parte, a céu aberto. Tinha um portão largo que dava diretamente para a rua, por onde entravam as carradas de mato e carqueja, mas também o feno, a palha e os caneirões para o gado, no inverno. E de onde saía o estrume para todas as fazendas que ele cultivava.    
— Mas, ó Tonho — disse Bernardo Garrancho — tenho aqui um barril de tinto na loja. Está ali a ouvir a conversa! Vai um copinho? Olha que é de boa vontade!
Tonho Racha era um grande apreciador de aguardente, a sua bebida preferida pela manhã cedo, logo que se levantava! Depois, durante o dia, passava tanto para o vinho tinto como para o branco! Dizia que nunca fora homem com preferência por qualquer cor! E nunca recusava um copo à porta de uma adega, desde que fosse cheio de uma bebida da família da uva fermentada.
— Se vai?! Homessa! Ó Bernardo, isso nem se pergunta! Um homem, para ser um bom cristão, nunca deve recusar um copo de vinho! É como se fosse uma obrigação e até um preceito da nossa religião! Na adega, como na missa, há de beber-se sempre vinho! — riram!
Bernardo Garrancho estendeu-lhe o copo de meio quartilho que Tonho levou à boca e bebeu sem descansar.
— Aaah! — fez de satisfação!
A seguir a um copo foi outro, que Garrancho gostava de tratar bem os amigos! E Tonho Racha não se fez rogado.
— Já fui a muitas adegas cá na vila a provar o deste ano — disse — e olha que este é um dos mais bem apaladados! — concordaram os dois!
— Espera! — disse Garrancho — tens ainda que beber mais um. Vou ali à salgadeira buscar um bocado de presunto para acompanhar.
Veio um pedaço de presunto. Febra bem curada de sal, com uma tira de gordura entremeada para não saber a seco! Mas Bernardo foi ainda buscar um bom naco de queijo de cabra curado que a mulher era hábil em fazer e metade de um casqueiro!
— Mau, ó Bernardo, não me estejas já a arranjar o jantar! Olha que ainda é muito cedo! Ainda agora é de manhã!
— Nada disso. Hoje já comeste o almoço?
— Bebi só um copo de aguardente com passas de figo.
— Ora então aí tens! Isto é apenas uma bucha para aconchegar. Toca a comer e a beber!
Depois, aproveitaram para conversar sobre a agricultura e as sementeiras. Como é que ia o tempo, como é que não ia. Se andava bom para as colheitas, se não andava. E mal se descuidaram estava a chegar a hora do jantar. Despediram-se com mais um copo para a sossega!
Não fossem os afazeres com os animais nas lojas e os amigos para o palratório e estes homens andariam ali por casa a rebolar, sem nada produzir, como que a morrinhar ou sentados à lareira. Quando assim era, uma dormência tolhia-lhes o corpo habituado que estava à exercitação diária do trabalho. As pernas entorpeciam. Depois, levantavam-se e iam ao janelo da cozinha, encostavam-se à vidraça a olhar o horizonte. Lá fora, via-se a invernia muito agarrada que acaçapava todo o vale onde se situa a vila, ao fundo da encosta da Gardunha. E depois punham-se, absortos, a ver cair a água dos beirais, mesmo ali nas casas defronte. O regato à roda das parede de ambos os lados da calçada lá ia, rua abaixo, com pouco mais que uma chisca. Com as trovoadas e aguaceiros é que a valeta, pouco profunda, não podia conter o caudal que extravasava para a calçada.
Mas muitas vezes os homens, nestas manhãs molhadas, também iam para a taberna fazer sociedade. Bebiam, riam em voz alta, jogavam as cartas, ao tanguinho ou ao burro. Falavam dos negócios do gado, da vida agrícola e contavam passagens para matar o tempo. E assim passavam a maior parte destes invernos feios e mortiços, sem nada poder fazer!
Inverno rima com inferno!
Seria isto uma grande verdade, não fosse certo que a água é um bem precioso que não podemos dispensar e que torna a natureza úbere!
Eram estes homens, prisioneiros da sua própria condição, que vinham às portas das lojas, das casas ou das tabernas. Olhavam, impotentes, o cinzento carregado do firmamento, enquanto a chuva fazia o seu caminho do céu à terra, aspergindo-a vagarosamente como uma canção dolente!

Nota: neste texto foram utilizados termos ou expressões regionais ou locais.  

José Barroso 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Nos bancos da praça

— Já vou estando velho! — disse Chequim da Oles para os companheiros, como princípio de conversa, naquela tarde. — E, passados todos estes anos, ainda não atinei com a resposta!
Era conhecido por aquele nome por ter nascido nas casas da Oles. Toda a sua mocidade foi trabalhar e guardar gado nas terras baixas e férteis daquele sítio. Mas herdara a casa que os pais tinham na vila! Os que estavam com ele, sentados no banco da praça, ouviram o que tinha dito e olharam-no. Não percebiam o que queria ele dizer com aquilo!
— Que estás tu para aí a relatar ó Chequim?! Parece que estás arloucado! Vê lá se falas com’é dado, de maneira que a gente te entenda! — interveio o Zé Canhoto. Canhoto, por ser esquerdino, já se vê! Aproveitara um momento de pausa dos fregueses e viera à praça dar fé do que se passava. Mas podia continuar a vigiar a porta da sua taberna, ao fundo da igreja, que deixara aberta! — Picou-te o moscardo ou estarás tu a esgrouviar da cabeça, meu dialho?
— Por que raio teriam eles feito aquilo? — continuava a perguntar, de viva voz, o Chequim da Oles ao adjunto de tagarelas. Mas fazia-o como se não esperasse resposta.
Não era burro de todo. O pai ainda o mandara aprender algumas letras com o Padre José David dos Reis. Onde é que isso já ia!...
Muitos lustros passaram! Quem o queria ver agora, já bem entrado nos anos, era sentado na praça, a dar dois dedos de conversa a outros da sua igualha e com idade do mesmo quilate!
— Certas idades, convidam a novas vidas! — tinham-lhe zumbido aos ouvidos.
— Vós falais que nem doutores, falais. — teria dito. — Isso soa bem à rapaziada nova, como diz o outro! Mas é de mau agouro para os que por cá andam há muito!
Lembrava-se dos tempos da sua juventude, quando era cachopo novo, todo cheio de nove- horas!
— Dali, já só para a quinta das cruzetas! — pensava, em voz alta, quando via os velhos da vila, sentados nos bancos ou no muro da praça, encostados às pilastras.
Nessa altura andava a zurzir segredos de bem-querer ao ouvido das cachopas. Acabou por casar com a Rosária das Lameiras. Boa moça e de alguns haveres. Veio a herdar, por sua banda, algumas courelas e um bom pedaço de pinhal. Juntas às dele, davam umas boas jeiras em ricas terras aráveis e tinham lenha para as invernas. Punham pé nas baixas junto à ribeira, depois, também, nas Lameiras, na Fonte da Portela, nos Aldeões e na Serra. Com boas e abundantes colheitas hortícolas, fruta, batata, milho, azeite, vinho, trigo, centeio e pasto. Praticamente tudo! Governava a família e tirava das fazendas o sustento para o gado miúdo, rebanhos e animais de carga.  
Tiveram doze filhos! Seis machos e seis fêmeas. Sãozinhos e escorreitos, que os benzera Deus! Era vê-los a espigar e a calcorrear paredes e cômoros atrás das cabras e das ovelhas e à frente dos bois, a guiá-los, nas lavradas, com o pai na rabiça do arado! Aquilo era rapaziada de ímpeto e vivacidade que nem as ondas do mar alteroso!
— Uma dúzia de filhos, ó Chequim! Assim é que se vê quem é que tem… unhas! — diziam-lhe os amigos, a mangar e com uma pontinha de malícia!
— Tende lá tento na língua rapazes, que eu bem sei o que vos vai nessa mente corrupta! — ripostava sem se abespinhar. — Mas perdoe-vos Deus metade da vossa maldade, almas do dialho, que eu vos perdoo o resto. Não quero, um dia, ser responsável por entrardes com a consciência pesada na eternidade! — disse-lhes.
Mas o tempo fora-se, impiedoso! D’abanão, mal deu por ela, encontrava-se ele nos bancos da praça, no lugar da provecta gente de outrora.
— Cá na vila, já não há velhos como dantes! — mal se ouvia dizer no soalheiro.  
— Ele há coisas! Criaturas com a maluqueira que o tempo apenas vai fluindo para o vizinho!
Parecia-lhes que os velhos eram sempre os mesmos que por ali costumavam ver sentados nos bancos. Na verdade, todos tinham cabelos já muito ralos e brancos. E ostentavam, na face, profundas gaivas, que os tornavam semelhantemente uniformes para a morte! — Como diz o santo a respeito do pecado: “Veem o argueiro no olho do próximo mas não veem a tranca no seu próprio olho!” Se calhar é por não terem ângulo de visão! — riam.
Esperem-lhe pela volta!
— Não há velhos? Há sim senhor! Então, os velhos agora somos nós! Nós é que vamos ocupar os bancos da praça onde eles se sentavam antigamente! — sentenciavam. E com razão!
— Cada um tem que estar onde manda a idade! — falava a experiência pela boca de Bernardo Garrancho que, entretanto, interviera na conversa. A alcunha deste, vinha-lhe de ter o dedo indicador direito curvado em gancho. Devido a um ferimento, em consequência de um acidente de trabalho, o dedo sarara naquela posição e não mais voltara a endireitar-se!   
— É assim mesmo! — ripostaram-lhe.
Fossem lá pedir agora ao Chequim da Oles, para cavar um bocado de vinha! É o cavas! Já não tinha genica nenhuma! Isso era dantes! Ah! caraças! Levantava-se de manhãzinha, ia cortar um molho de mato, ougava-o, trazia-o às costas para a furda e traçava-o, tudo em menos duas horas! Outros tempos!
Mais tarde, já casado, a família crescera, a vida, graças a Deus, melhorara e pôde atirar-se, a custo, à compra de um carro e uma junta de bois, com que passou a ir ao mato e à lenha, acompanhado dos dois filhos mais velhos. Duas sonaves que alto lá com eles, como se podia ver pelos ombros forçudos e pela grande chave das mãos de que, na vila, poucos se podiam gabar.
Mas Chequim tinha trazido à conversa, naquela tarde, um pensamento:
— Farto-me de matutar por que raio teriam eles tirado o concelho à nossa terra?! — disse, esclarecendo, enfim, a curiosidade dos circunstantes. — É o demonho duma pergunta que fiz toda a vida!
Para onde fora a câmara, o tribunal, o notário-tabelião e os registos, que cá estiveram tantos séculos e que tanta falta nos faziam?!
— Dizem que os ricos não queriam cá o concelho porque, quando quisessem tratar dos seus assuntos bem podiam fazê-lo, indo de charrete, refastelados, a Castelo Branco! Gente rica! Vai lá, vai… É mais fácil passar um camelo…
— Ah! Finalmente percebe-se a tua inquietação e compreendem-se agora as tuas perguntas! — declarou Adelino Cansado que até ali estivera sem bulir um som.
Ao contrário de muitos dos do seu tempo, Chequim da Oles sempre tivera o bichinho de se incomodar com os caminhos que ia trilhando a comunidade vicentina. O que nos reservava o futuro com os dias cada vez mais sombrios que se atravessavam. O assunto, achava ele, devia interessar a todos! Mas era como clamar no deserto! Não compreendia por que é que os seus companheiros de ajuntamento não se interessavam por coisas tão importantes.
— Cedo percebi que fomos uma terra de grandes pergaminhos. A nossa vida, no correr do ano, estava cheia de datas assinaladas!
Ah! Caramba, havia grandes acontecimentos nas Festão de Verão, no Natal e na Páscoa. Enormes procissões do Senhor Santo Cristo e do Enterro do Senhor. O pálio estava reservado aos homens mais importantes da vila! Hoje andam ó tio, ó tio, a perguntar quem lhe quer pegar! — disse para o adjunto. Não teve repercussão naquelas cabeças toscas.
— Tinham alguma consciência coletiva ou andavam no mundo por ver andar os outros?! — intrigava-se. E começou a vociferar:
— Vocês destas coisas não querem saber! Só vos interessa as vossas leiras e beber copos na taberna! Do resto não vos acusa a consciência! — continuava no seu solilóquio. — Por isso chegámos ao que chegámos!
Os outros nada opinaram sobre o assunto que há muito o afligia. Lá lhe pareceu que estavam desatentos, talvez a pensar nas vindimas do fim do verão que se aproximava, que era o que concretamente mais lhes tocava. Vai daí, arreliou-se:
— Mas, que diabo! Ninguém quer falar da nossa terra? Vocês parece que estão mortos! Mortos!
— Ali o Tonho Insonso só dorme! — e apontou para a extremidade do banco. — Já parece o Tonho da Lija que tem a doença do sono! Ó Tonho picou-te a mosca ou estás a remoer as couves?!   
Com a algazarra, o Tonho Insonso, acordou! Cerrou as mãos em punho, meteu os indicadores dobrados nas covas dos olhos e esfregou-os! Estava modorrento e como não discernia muito bem, Chequim da Oles atirou de través, entre dentes, aos companheiros de conversa, como quem lança um osso a sete cães:
— Este alma de chichentes faz justiça à alcunha que lhe puseram! Parece que não tem sal! Sim senhor! Ora com fêto! Se calhar, por isso, é que nunca arranjou mulher!
Todos gargalharam com a tirada. Mas ele ainda ouvira parte do comentário. E a zombaria era como se esses cães o mordessem, fundo, no ego!
— O que foi?! Que berraria é esta?! — disse, finalmente, confuso, o pobre homem. Tinha a certeza que chasquearam dele e que lhe tinham chamado ruminante. Mas, optou por nada dizer, que era homem cordato e boa pessoa, lá nisso todos concordavam!...
João Jerolme, outros dos presentes, que tardava em se juntar à conversa, aproveitou um avo de compasso de espera e retomou o assunto do Chequim da Oles:
— Não te assanhes, ó Chequim! Se bem estou a perceber, estás a meter-te em política! — disse. — Olha que isso, nestes tempos, não é coisa boa, meu homem! — confidenciou-lhe, paternalmente, como mais velho do grupo. Ele sabia a rês que estava a governar em Lisboa por aqueles tempos!
— Não me meto em política! O que ninguém pode é impedir-me de querer saber das coisas que se passam na minha terra! Se isso é política!... — replicou Chequim da Oles.
— Tu lá sabes. Mas não te adiantes muito nos condutos. Às duas por três, podes ter que ir parar a África à força, se é que, pelo caminho, não vais mas é servir de comida aos peixes e nunca mais se ouve falar de ti! Não te metas com políticos que é má gente! E lá dizia o outro que a ignorância se manifesta pela política!
Chequim da Oles, feito um exame de consciência, concordou com o amigo. E, embora a contra gosto, aceitou o seu conselho. Por uns tempos prometeu não maçar a reunião de comparsas com as questões da política!
João Jerolme era o mais instruído dos do grupo. Pela idade e pelo saber. A sua família, mais abastada, tinha-lhe permitido frequentar um colégio de jesuítas por alguns anos.
Muitas vezes, nas tertúlias, se falava do tempo. Como é que andava, como é que não andava, se ia bom para as colheitas, se não ia. Se chovia ou fazia sol para medrarem as árvores e as searas e darem boas colheitas!...
Bernardo Garrancho, cuja escola tinha sido a terra, o campo, a chuva com muitas molhas e o sol com escaldões, animais e plantas, sabia bem ler-lhe as aparências. Se uma nuvem grossa e escura aparecia, no horizonte, a ocidente, ao fim da tarde, ajuizava:
— Ó rapazes, há uma barda além por cima do Ingarnal. Amanhã chove pela certa! Assim eu tivesse a certeza de entrar no reino dos céus!  
João Jerolme, mais pensador, percebia os efeitos do tempo, mas não podia compreender que ímpeto da natureza era aquele. Apenas sabia que fora essa força imparável que o relegara para o banco da praça ou para o balcão da taberna. Era quando, amiúde, erguia o copo de vinho na mão, já trémula, declarava, simplesmente, para o círculo de amigos, como um presságio:
— O tempo! O tempo! …
E, fosse ou não o efeito do vinho a subir-lhes às cachimónias, o que é certo é que alguma coisa ali parecia pairar. Por instantes, todos os da roda quedavam. Enquanto os olhos da sua natureza rude aparentavam alcançar alguma luz por entre a escuridão. Eles bem compreendiam o Jerolme: o tempo era, afinal, o grande mestre que tudo ensina, tudo cura, tudo faz esquecer, tudo cria e tudo destrói!
Tinha sido o tempo, esse mesmo, esse vilão, o que eles não podiam nem sabiam qualificar, que lhes roubara as suas vidas!

Nota: Neste texto foram utilizados termos regionais ou locais, incluindo nomes de pessoas, que não se encontram na ortografia e dicionários oficiais.
                                                

José Barroso

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

O Guimarães

Mais coisa menos coisa, andar-se-ia pelos idos de 1930. Por esta altura ainda Salazar não tinha tido tempo de impor a ordem no Retângulo da Europa, quanto mais no império que lhe restava, ilhas e além-mar, da África à Índia e a Timor! Mas já conjeturara a lição que iria dar aos iletrados portugueses, que ficaria para a história!
Neste Portugal europeu, rural, pobre, alegre e simples, tal como o governante o imaginara, deambulavam malteses de pau e manta, vagabundos, pequenos ladrões, malfeitores de pouca monta (mas havia alguns perigosos que podiam matar!), pedintes e zés-ninguéns esfomeados! Em suma, miseráveis de toda a condição! A faixa da Beira-Serra, por alturas da Gardunha, não fugia à regra.
Nas cidades e vilas mais importantes da região já havia pequenas guarnições do corpo da Guarda Nacional Republicana, como acontecia no Fundão. Onde pontificava o austero sargento Silva, nascido na vila de S. Vicente da Beira, irmão do ti’ António da Silva, alfaiate, com atelier posto na rua Manuel Mendes e pai das manas “Silva” que moraram nesse mesmo local até há pouco tempo.
Na vila, porém, apenas o Regedor e a força de Cabos de Ordem tentavam suster o freio à vadiagem e manter a legalidade, como o sherife, com os seus ajudantes, num qualquer western americano.
Há muito que o sargento Silva esquadrinhava a serra da Gardunha e arredores, com a sua gente, na peugada de delinquentes como o Pistotira, o Cireneu ou o Tonel, considerados pelas autoridades como perigosos e, que se sabia ou se presumia, andarem pelas bandas da vila.
De entre os vários e conhecidos bandoleiros que varriam a região, havia um que dava pelo nome de Guimarães. Não se sabendo se de seu nome de batismo, se por ser oriundo da cidade berço. Eventualmente, andaria fugido às autoridades do norte, tendo vindo parar a estas terras beirãs por mero acaso ou estratégia de fuga. Apesar de ser um marginal e homem de porte atlético, capaz de bater qualquer um que lhe fizesse frente, não era, pelo menos por aqui, considerado dos mais temidos. Fosse porque, pelas dificuldades de comunicação, não se sabia do seu currículo, fosse porque ainda não tivera tempo de fazer desacatos, por estes lados, dignos de assinalar! Mas em todo o caso, já sinalizado como marginal de furtos menores!
Um dia — possibilidade sempre à espreita dada a sua atividade de risco, como assaltante — foi preso por vários vizinhos que, discretamente, se reuniram, na Oles, lugar em que se tinha aventurado à cata de galinhas para matar a fome. E onde foi encurralado, apesar da sua estrutura física de meter respeito! Mas, afinal, que faria ele contra vários homens decididos a guardar o que era seu, que tanto trabalho lhes custara e que era o seu próprio sustento e das suas famílias?! Quando se viu acossado, calculou as suas probabilidades. E entendeu que, sozinho, nada podia contra eles. Pois apercebeu-se que os vizinhos estavam firmes, para fazer justiça por suas próprias mãos, se resistisse. Ele bem sabia como a justiça, nestes casos, pode ser muito dura e pouco proporcional ao ato criminoso! Nem era pelo valor dos animais roubados, se bem que isso já fosse um prejuízo, mas pela violação da paz e sossego do lugar e pelo medo e inquietação causada. Estando ele apenas munido da faca com que degolara as aves que já levava debaixo do braço, pensou que o mais certo era algum dos do grupo que o cercava trazer o canhangulo, arma de fogo que, mais ou menos clandestinamente, quase todos tinham em sua casa, naquele tempo, com que matavam um ou outro coelho ou perdiz e que também os podia defender de maus encontros. Ora, duas ou três galinhas não valiam a sua vida! Por isso decidiu não oferecer resistência e rendeu-se.
Era já noite e os homens, após lhe terem atado as mãos, muniram-se de duas lanternas e cada um pegou em seu varapau para defesa contra imprevistos do caminho. Iniciaram a marcha para o levar à vila, a fim de o entregar às autoridades locais. Subiram a estrada de macadam desde o fundo da barreira da Oles até ao cruzamento com a Cascalheira, onde descansaram um pouco. E continuaram pela mesma estrada que os havia de levar à entrada da povoação, por S. Sebastião, Fonte Velha, rua do Beco, até à praça, em direção ao edifício da antiga câmara municipal.
Ao passar pelas tabernas que havia neste percurso, que ainda se encontravam abertas, aquele tropel de transeuntes levando um prisioneiro, não podia deixar de despertar a curiosidade de alguns basbaques que vinham à porta, com o copo de vinho na mão, meio bebido, a dar fé do que se passava. Uma ocorrência como aquela não era vista todos os dias. Muitos dos presentes deixaram a taberna, seguindo a turba até ao edifício da antiga câmara, a espreitar qual seria o desfecho daquele inusitado caso.     
Chegados ao local, um dos homens que trazia o delinquente foi dar parte da situação ao Regedor, que logo mandou chamar os Cabos de Ordem, enquanto os outros ficaram na praça velha, junto à porta que nos fica à mão direita quando observamos lateralmente o edifício desde essa praça.      
Aí se situava a cadeia. Mas também se recorria muitas vezes, como prisão improvisada, ao antigo coreto, entretanto demolido, existente na grande praça, ao lado do pelourinho, cuja construção assentava numa base sextavada, robusta, construída em pedra, com dois metros de altura. Tinha porta forçuda, numa das faces, a abrir ao nível térreo e dois estreitos óculos para entrada de luz e ar a meio de duas das outras faces. Esta base era coberta por uma laje de alvenaria e ferro. De cada um dos seis cantos desta laje, partiam altas colunas em ferro e uma ao centro, sobre as quais assentava uma cobertura em chapa de metal vigoroso, a tapar o coreto. A ligar as colunas em todo o perímetro da laje, uma grade de proteção em ferro de um metro de alto, com uma abertura a meio de um dos lados. Acedia-se ao coreto por essa abertura, através de uma escada metálica amovível que se colocava nos dias de concerto da banda. Era, aqui, por baixo, no coreto, neste autêntico forte de pedra, que se encarceravam os prisioneiros.
Foram convergindo, paulatinamente, para junto do edifício da câmara, onde se encontrava o adjunto dos vizinhos com o prisioneiro, o Regedor, os Cabos de Ordem e muitos mirones que deram pelo sururu e que tinham vindo das tabernas próximas.
Acontece que estava ocasionalmente em S. Vicente da Beira, por esses dias, o sargento Silva, na sua missão de tentar capturar os malfeitores que andariam aqui pela Gardunha, segundo informações que haviam chegado ao Posto da GNR do Fundão.
Os marginais, quando eram capturados pelos vizinhos, uma espécie de milícias, como aconteceu com o Guimarães, estavam inevitavelmente sujeitos à exposição pública. Após serem amarrados, dados como inofensivos e submetidos à irrisão popular, desencadeavam na massa popular vários tipos de sentimentos contraditórios e mudanças repentinas de humor e agressividade coletiva. Certamente dependentes do caráter e da forma como cada um entendia as ofensas destes agentes do desassossego. Mas a maioria do povo assanhava-se muito contra eles, não tanto pelo que roubavam, como já se referiu, mas porque perturbavam a pacatez das suas vidas e eram, muitas vezes, uma ameaça séria para as pessoas, não hesitando em fazer sangue, se fosse caso disso. Pois, como muito bem se sabia, um ladrão acossado é como fera brava enjaulada. Torna-se furibundo e, no seu próprio desnorte, é capaz de matar e chacinar seja quem for que se atravesse no caminho da sua fuga.
Chegara, entretanto, à praça, o sargento Silva porque ouvira dizer que o Guimarães tinha sido preso por vários homens que já lá se encontravam e onde também já estavam o Regedor e os Cabos de Ordem. Vinha munido da competência e da legalidade que a farda da GNR lhe conferia. E diz ao prisioneiro do alto da sua autoridade, agarrando-o pelos colarinhos:
— O que te vale a ti, meu sacana, é não seres quem eu procuro!
É que o sargento Silva, como já se referiu, investigava, na altura, na vila, o paradeiro do Pistotira, do Cireneu ou do Tonel para lhes deitar a unha, o que, até então, ainda não tinha sido possível! 
Dito aquilo e, num assomo de fúria e gesto súbito, rápido como um raio que rasga o horizonte, atirou contra a face do prisioneiro um molho de chaves e algemas que trazia. E logo o sangue na sua fronte se soltou abundantemente!
O sargento talvez tivesse percebido, por momentos, que se tinha excedido no seu zelo e competências! Pois o homem permanecera, até ali, calado e aprisionado! Mas o tempo já era de repressão como preconizava o novo governante de Lisboa! Começava a faltar o respeito e dignidade pelas pessoas!
Com este passo, porém, a turma agitou-se e manifestava-se com grande algazarra:
— Ponham o homem na enxovia!
— Prendam-no e levem-no a tribunal!
— Deem-lhe umas valentes chicotadas no lombo!
— O que ele precisava, sei eu! Era ser metido num barco e levado para o degredo para as colónias de África! — diziam vários dos presentes.
— Mate-se já aqui este bandido! — gritava alguém mesmo ali ao lado do prisioneiro! 
— Escache-se agora este ladrão! — berrava o mesmo indivíduo!
O Guimarães, com a face cheia de sangue, olhou para ele. Não o conhecia! Mas era da vila! Era o Zé Parrito!   
Ao cabo de um bom pedaço nesta giga-joga, espécie de vindicta de rua, foi então que interveio o ti’ Zé Pedro, homem respeitado em toda a vila e arredores pelo seu caráter e pulso, talvez o único que se podia bater, mano a mano, com o possante Guimarães.
— Não senhor, aqui não se mata ninguém! — disse com firmeza.
— Então vai-se matar um homem como se fosse um animal?!
— Pois enquanto eu aqui estiver ninguém mais lhe toca!
Todos recuaram um pouco na sua sanha contra o preso, não só por respeito ao homem devido à autoridade natural que infundia como também pelo seu porte físico. Todo ele se impunha pela sua honorabilidade! Salvou-se o Guimarães, desta feita, de uma possível vingança popular, pela intervenção e verticalidade deste homem.
Um a um foram-se os espectadores da assistência afastando. Voltaram às suas vidas ou regressaram à taberna para acabar o sorvo do copo do vinho que o alarido da prisão do Guimarães lhes havia interrompido.
Ficava o detido agora apenas nas mãos do Regedor que deu ordens aos seus Cabos para que o encarcerassem, justamente, no coreto da praça. Não houve outro remédio porque a cadeia da casa da câmara estava em obras! Alegava que o homem era suspeito de vários assaltos. Tendo, inclusivamente, sido surpreendido em flagrante delito, a roubar galinhas, na Oles, por vários vizinhos que se uniram para o prender. Durante a noite em que o Guimarães dormiu, preso, dentro do coreto, alguns energúmenos ainda se divertiram a meter paus compridos pelos óculos da entrada de luz e ar, na tentativa de atingir o prisioneiro!
Mas o destino destes homens fora da lei, apanhados na Gardunha, estava traçado. Eram levados, no outro dia de madrugada, a pé, para a Soalheira. E dali, de comboio, até Castelo Branco, onde eram entregues às autoridades concelhias. Foi o que também aconteceu ao Guimarães. Uma vez na cidade e, após ser julgado e condenado pelos atos criminosos que cometera, cumpriu ou cumpria prisão — não se sabe bem porque as fontes não são esclarecedoras. Tudo aponta, porém, para a sua evasão da cadeia de Castelo Branco. O que se sabe, com certeza, é que o Guimarães tinha voltado à liberdade, pelo menos por uns tempos. Mas não mais se esqueceu daquela sua detenção na Oles, da prisão, por uma noite, no coreto de S. Vicente da Beira e das injúrias, afrontas e agressões de que então foi alvo!   
Sucede que, à época, havia bastante comércio de madeiras entre os proprietários dos pinhais da serra da Gardunha, designadamente, da freguesia de S. Vicente da Beira e os empresários da construção civil da cidade de Castelo Branco que crescia a olhos vistos! Como é bom de ver, os transportes rodoviários de camioneta não existiam ou eram incapazes. O transporte da madeira era então efetuado quase exclusivamente por carros de bois. Era vê-los, numa azáfama, a carregar madeira por esses pinhais! E juntarem-se depois, em fila, estrada abaixo, tão ronceiramente como vagarosos eram os bois, a caminho da cidade! Iam pelo escuro da manhã e estavam de volta à noite!
Ali pela estrada nacional, sensivelmente próximo de Alcains, costumavam parar a marcha para a bucha e descanso de pessoas e animais. Só se pondo em andamento após recobro de energias que bem precisas eram.
Os carros formavam-se numa grande fila, bem encostados ao longo de um dos lados da estrada, enquanto durava a pausa da fatigante caminhada. Eis senão quando aparece o Guimarães que então gozava tempos de liberdade fosse ela definitiva ou precária. O que é certo, é que ele ali estava, alto e garboso, junto dos ganhões de S. Vicente da Beira, com redobrada pujança e renovada energia. Ora, o Zé Parrito era um dos ganhões mais assíduos no transporte das madeiras, atividade com que ganhava a vida. O Guimarães tinha-o visto apenas daquela vez na praça em S. Vicente da Beira e não conseguia identificá-lo. Apenas se informara que ele costumava fazer o transporte da madeira por aquele trajeto, juntamente com os outros ganhões. Por isso, deveria estar por ali. O antigo prisioneiro do coreto da vila acercou-se, pois, do adjunto dos transportadores de madeira que ali se encontravam a repousar da jornada — e se eles eram muitos! E sem medo ou receio algum — que ele era um homenzarrão! — berrou, destemido, alto e bom som para que fosse bem entendido pelos presentes:
— Onde é que está aqui aquele que em S. Vicente da Beira, quando lá estive preso, disse: “Mate-se já aqui este bandido!” e “Escache-se agora este ladrão!”. Se o apanho, quem o mata já aqui sou eu!
Os presentes ouviram e calaram! O Guimarães apenas veio a saber, junto dos transportadores de madeira, por este e por aquele, por entre dentes que, nesse dia, o Zé Parrito, vá-se lá saber porquê, não fizera o transporte da madeira como era seu assíduo costume!
E foi assim, por um acaso da fortuna, que o Zé Parrito escapou a uma morte quase certa!
Outros tempos!

Fonte: História ficcionada que teve por base algumas passagens narradas pelo ti’ Albino Moreira.
Nota: Ressalva-se o eventual emprego, no texto, de alguma palavra regional ou local com grafia não oficial.


José Barroso   

domingo, 5 de junho de 2016

Juventude que já lá vais...


Quando recebi esta foto do Zé Teodoro que, por sua vez a recebera da Luzita Candeias (essa nossa menina!), para comentar qualquer coisa sobre ela, não sabia, num primeiro momento, o que dizer. Por isso, mal alvitrei o título deste texto que será, decerto, para vós, apenas um vulgaríssimo lugar comum.
Mas, bom, tinha, forçosamente, que pensar em juventude! Quantas alegrias, quantos projetos, quanta inspiração, quantos versos escritos, quantas coisas bonitas se escrevem sobre ela!
Depois, pensei no tempo, esse grande mestre! Aquele, como sabeis, do qual Santo Agostinho dizia não saber o que seria, se lhe perguntassem. Mas que saberia, com certeza, o que era, se não lhe perguntassem!
Ora, se o Santo não pôde defini-lo, como poderei eu, simples mortal, carregar sobre mim tão hercúlea tarefa?! Confessemos a nossa ignorância e não mexamos, pois, no assunto, porque nada sabemos sobre ele!
Só há uma coisa que sabemos: é a ação que ele tem sobre nós! Porque o sentimos! E é também o que experimentamos quando olhamos para uma fotografia da nossa juventude, como foi agora o meu caso, já que sou um dos que nela estão incluídos!
Mas, curiosamente, a surpresa, embora agradável, não foi total. E com isto espero não desiludir a Luzita. As razões são duas.
Em primeiro lugar, não é a primeira vez que, publicamente, faço o exercício de tentar identificar os figurantes de uma fotografia da nossa juventude em S. Vicente da Beira, tirada há décadas. Nesta, estou eu próprio e mais alguns que irei identificar. Já lá vamos! Mas havia outras fotografias em que estavam outros nossos coevos compagnos de route. Tal exercício aconteceu numa das “Noites da Taberna”, na Casa do Hipólito Raposo, organizadas pela Junta de Freguesia. Em que o José Manuel dos Santos apresentou uma fotografia com alguns jovens vicentinos que, a custo, lá consegui decifrar!
Em segundo lugar, porque a fotografia, que agora aqui se junta, já tinha sido exibida pelo Tó Sabino, o ano passado, nos dias das Festas de Verão, na praça, através de slide, num grande ecrã, nos intervalos da publicidade!
Sobre o caso, queria ainda dizer duas coisas. Desde logo, eu, pessoalmente, não fazia a mínima ideia que tinha tirado tal fotografia e muito menos sabia que alguém a tinha em seu poder. E nem sei como foi parar ao Tó Sabino. Ele saberá. Não cheguei a falar-lhe sobre isso. Ele já fez algumas exposições de fotografias antigas de pessoas e coisas ligadas a São Vicente. Mas, certamente, deve ter sido fornecida por algum dos que nela figuram.   

Depois, numa das noites de arraial das da Festas de Verão, quando a fotografia apareceu no ecrã da praça, sucedeu uma coisa curiosa. É que eu, neste caso, não consegui identificar todos os que lá estão! Apesar de eu próprio lá constar. E foi a Jú Jerónimo, estava ali perto, que me elucidou. Pelo que, se hoje consigo saber quem eles são (embora não saiba o nome de alguns, porque não são da vila), isso só foi possível com a ajuda dela!
O que posso dizer, então, sobre isto? É o seguinte: a fotografia deve ter sido tirada, talvez, em 1969 ou 1970, pelo João Duarte do Casal da Fraga, conhecido por João Brito ou João da Mila. Ele tinha uma máquina fotográfica a preto e branco e andava a tirar-nos fotografias para depois nos vender como recordação. O café onde foi tirada é, de facto, o da Sra. Tomásia, mas acho que, à data, ainda seria da Sra. Eulália. Digo isto porque na fotografia está um filho dela, o Júlio, e ao meio está um rapaz colega dele da tropa com uma bandeja com copos, na mão. Os figurantes são, então, da esquerda para a direita: Miguel Rodrigues (ou Miguel Prata), conhecido por Leca. A seguir está o João Pereira (para nós, João Rolo). Depois vem um indivíduo (filho?) de um feirante que vinha sempre às Festas de Verão (de quem não sei o nome). Ao meio, com a bandeja, está o rapaz que era colega de tropa do Júlio (de quem não sei o nome). Depois, atrás, e sempre no sentido indicado, está o Júlio, estou eu, o José Joaquim Roque Henriques (o Coluna), infelizmente já falecido. A seguir o Francisco Vitório (Chico da Mercês ou Chico Guião). Há ainda um outro personagem que mal se vê e por isso não se sabe quem é.
Antes de terminar deixem-me ainda que vos diga que a surpresa, embora não tendo sido total foi, isso sim, muitíssimo saborosa! Obrigado, Luzita e beijinhos!

Luzita Candeias (foto)

José Barroso (texto)

sábado, 30 de abril de 2016

Dia da Mãe

A Mãe, por Miguel Torga
Introdução
Para celebrar todas as Mães, lembrei-me deste poema do Miguel Torga, um dos grandes poetas deste país. Foi também contista, romancista, dramaturgo e ensaísta. É outro daqueles escritores com quem mais me identifico, já que era um homem ligado à terra, o que diz (ou devia dizer) muito a quantos nascem no interior de Portugal, mais perto da montanha, das plantas e dos ribeiros! O escritor era médico em Coimbra, onde estudou e onde ainda tive o privilégio de o conhecer em vida.
Sempre fez questão de celebrar a sua origem rústica de transmontano. Prova disso é que tendo, pelo batismo, o nome de Adolfo Rocha, veio a adotar, enquanto homem de letras, o nome de Miguel Torga. E, como se sabe, torga, é a raiz da urze com que se fazia o carvão. O que diz bem da intenção de não ser apenas português por ter nascido em Portugal, como ter no solo pátrio mergulhadas as suas raízes. E fê-lo, de maneira emblemática, através de uma planta (dita) pouco nobre. O que também revela a sua humildade e vontade de continuar, simbolicamente, unido às montanhas da sua aldeia, onde ia de tempos a tempos, matar saudades e até caçar.     
Homem, portanto, de grande apego à ruralidade que se deixava entrever, diz quem com ele privou, nos seus modos e até – Oh! Natureza! – na sua figura telúrica de camponês, somos depois confrontados por uma alma, uma sensibilidade e uma inteligência que surpreende, atestadas pela sua poesia e escritos em geral.
Fiquem, então, com este extraordinário poema à Mãe, no momento em que ela lhe faltou para sempre.
José Barroso
Mãe
Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu, 
Que ficaste insensível e gelada? 
Que todo o teu perfil se endureceu 
Numa linha severa e desenhada? 


Como as estátuas, que são gente nossa 
Cansada de palavras e ternura, 
Assim tu me pareces no teu leito. 
Presença cinzelada em pedra dura, 
Que não tem coração dentro do peito.



Chamo aos gritos por ti — não me respondes. 
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio. 
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes 
Por detrás do terror deste vazio. 



Mãe: 
Abre os olhos ao menos, diz que sim! 
Diz que me vês ainda, que me queres. 
Que és a eterna mulher entre as mulheres. 
Que nem a morte te afastou de mim! 

Miguel Torga, in 'Diário IV'