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quinta-feira, 15 de novembro de 2018

O nosso falar. vagamundo


Há dias, já quase noite e um frio de rachar, tocou o telefone. Era uma vizinha a avisar:
- Olha que tu fecha as portas bem fechadas, que está um vagamundo mesmo aí à frente da tua casa.
Fui espreitar e, de facto, vi um homem sentado na paragem da camioneta. Tinha o cabelo comprido e as barbas brancas chegavam-lhe até ao peito. À roda dele, no chão, tinha dois sacos de plástico cheios com qualquer coisa, provavelmente roupa. Passado um bocado voltei a espreitar e o homem continuava no mesmo sítio, mas já embrulhado numa manta, como se fosse passar ali a noite.
A pretexto de lhe levar algum agasalho, saí de casa e fui meter conversa com ele. Era espanhol, por isso tive dificuldade em entender tudo o que disse, mas percebi que tinha nascido numa terra da Andaluzia. Percebi também que não se quedava por muito tempo no mesmo sítio e por isso abalava, sem destino certo, por esse mundo fora. Desta vez tinha vindo para Portugal e já andava por cá desde junho.
Ao outro dia, bem cedo, o homem tinha desaparecido. Na paragem da camioneta não havia qualquer vestígio de que alguém tivesse dormido naquele sítio. No centro do banco estava apenas a malga da sopa que lhe levara na véspera, bem lavada. Por baixo dela, um bocado de cartão com a palavra “gracias” escrita em letras mal alinhadas.
Durante alguns dias pensei várias vezes naquele homem e em como há vidas… (qualquer adjetivo pode ser válido ou descabido). Compreendi, finalmente, o sentido do termo vagamundo utilizado pela minha vizinha. E, cá no fundo, fiquei contente porque, do alto da minha sapiência, por pouco não lhe emendei o falar.  

Nota: A palavra vagamundo ainda consta numa edição já velhinha (sem data, infelizmente) do Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (se atentarmos bem, o significado do termo não é exatamente o mesmo de “vagabundo”), mas já não se encontra em dicionários mais recentes, como o Houaiss da Língua Portuguesa.

Maria Libânia Ferreira