Só com uma porta e sem
janelas, descia-se um degrau e pisava-se o chão de mato traçado que tapava o
frio e o sujo da terra. No canto da direita, atrás da porta, uma prateleira
dentro da parede, com a bilha da água e o coucho, a candeia do azeite e o
caçolo de barro, com um garfo e uma colher dentro. A navalha não, acompanhava-o
sempre, para as precisões de um homem. Mesmo ao canto, o lume, aceso de
manhazinha e à noite, nos dias bons, porque nos de inverno toda a lenha era
pouca.
A seguir, para o fundo,
arrumava os molhos de feno e as faixas de canas. Era lá que dormia, em cima de
uma manta de trapos, tapado com o capote, quando fazia frio.
A parte da esquerda estava
separada do resto por um bardo de varas, onde metia as duas cabras e os chibos,
quando os havia. Não se podiam deixar à mercê dos lobos da serra, sempre esfomeados, e
faziam estrume para estercar o milho e os feijões que enchiam o lameiro, no
tempo bom.
O pai fizera a casa depois
de comprar aquele bocado do Ribeiro Dom Bento ao Conde. E levantaram paredes
naquela barreira que descia para o ribeiro. Foram anos de muitos trabalhos. Arrancavam
a pedra no alto, à picareta. Não era muito difícil, pois as pedras estavam em
camadas e bastava meter-lhes o bico. Depois, ele e o irmão punham-nas
em cima da padiola e levavam-nas até ao pai, onde ele erguia as paredes. E
fizeram a serruba das terras, sempre a tentar endireitá-las, para segurarem as
águas da rega.
Nos tempos desses trabalhos,
nem iam dormir à casa da Vila. Acomodavam-se pelo chão, cada um para o seu
lado, quando, já noite cerrada, acabavam de cear os feijões refogados com
cebola. De manhã, à primeira luz do dia, a mãe acordava-os para as sopas de
broa com leite.
Num ano, andaram todo o
verão a abrir a mina ao fundo da presa do ribeiro. Havia lá um gemedouro de
água, mesmo nos setembros mais secos, quando o ribeiro já parara de correr há
muito tempo, e o pai achou boa ideia explorar o nascente, na esperança de ter
mais água para o renovo. Era lá que ia buscar a água para beber, muito fresca
nos dias em que o calor abrasava. Entrava pela mina a dentro com a bilha na mão
e ao fundo enchia-a, numa poça que ali tinham feito.
Quando casou, o pai deixou-o
ficar naquela casa. Sempre tinha um telhado onde se abrigar e uma horta para
ajudar no sustento. Ganhava o pão onde calhava, pois era homem para pegar em
qualquer coisa. Os filhos foram nascendo e morrendo. Só vingou uma menina, no
lugar da mãe, que morreu do parto. Criou-a e depois também ela se foi embora,
para casa do homem dela.
Desde então vivia sozinho.
Acabara por ficar sempre naquele palheiro, sem possibilidade de ter uma casa
melhor e mais perto da Vila. E agora também já não valia a pena. Havia dias
melhores e outros piores, mas não tinha posses, nem vontade de se mudar. Casar
também não, já ninguém o queria e bastavam-lhe as recordações dos seus filhos
desaparecidos e da companheira de tantas canseiras. A filha bem o chamava para
o Sobral, mas mais valia ser-se desejado que desejar.
Falava com os seus botões,
enquanto as cabras roçavam as ervitas ribeiro abaixo. Primeiro subira com
elas pelos matos mais soalheiros, à espera que a geada derretesse nos sítios sombrios. Nestes dias tão pequenos, em que o caramelo nunca chegava a
descongelar nalguns lados do vale, ficava-se por perto, sem se aventurar para os altos
das Lameiras, onde havia sempre boa erva, mesmo no tempo seco. Mas esses pastos
andavam bem guardados pelo feitor da Borralha, sempre faminto de agradar ao
patrão.
Agora eram só ele e as suas cabritas.
O cão morrera-lhe na primavera. Ficou-se em pouco tempo, a espumar pela boca. Um
sofrimento horrível e ele sem poder fazer nada. Comera de certeza carne envenenada
que os lavradores colocavam perto das covas dos lobos e das raposas.
Era véspera de Natal e mais
uma vez ia passá-lo sozinho e sem filhós. A mulher nunca faltava com elas,
mesmo logo depois de casar, ainda sem experiência nenhuma. Nos últimos anos,
tinha sido a filha, mulher desembaraçada como a mãe. Num ano foi ajudar a tia e
no seguinte já as fez sozinha. Por esse lado, o marido nunca teria uma pontinha
de unha a apontar-lhe. E por outras razões também não, que mulher
desenxovalhada como ela havia poucas.
Já anoitecia e o vento que
soprava da Senhora da Orada deixava-o gelado. Encaminhou-se para casa, seguido
das cabritas. Elas já sabiam o cantinho delas e o dono só teve de encostar a
grade de paus. Antes, tirou-lhes um pouco de leite, que ia ferver no asado, ao
lume. Seria o seu jantar de Natal. O resto ficava para os cabritos, a quem
tirou os barbilhos, para se consolarem.
Acendeu o lume e sentou-se
num banco, a aquecer-se. Pouco depois, o aroma do leite aquecido encheu a
casita. Ouviu ranger a porta, só encostada. Foi fechá-la, julgando ser o vento.
Mas um cãozito castanho recuou ao vê-lo, receoso da reação do dono da casa. E
fitou-o com um olhar meigo e ansioso, abanando levemente o rabo.
O homem voltou para dentro, mas
deixou a porta entreaberta. Fez umas sopas de leite e deitou um pouco numa
tigela que levou à porta. Depois voltou para dentro, a cear.
Acabou de comer e veio à
porta a recolher a malga. O cão ficou-lhe à mão e ele chamou-o
para dentro. Não se mexeu e voltou para o lume. O animal espreitou várias
vezes e o homem voltou a chamá-lo para dentro, uma vez com uma côdea de pão. O
cão acabou por entrar e aproximar-se do calor. Passado um bom bocado, deitou-se
junto ao fogo. O homem levantou-se, foi fechar a porta e estendeu-se sobre a
palha. Antes de adormecer, sentiu o cãozito aninhar-se a ele. Sorriu consigo e afagou-lhe a cabeça. O cão respondeu com uma lambidela. Depois
sentiu o calor do animal e adormeceram…
José Teodoro Prata
Notas:
- Em 1972-73,
não consigo precisar o ano, houve um concurso de contos de Natal, no seminário
do Tortosendo, onde eu estudava. Não ganhei e ainda fui gozado pelo meu
prefeito, o Pe. Jerónimo, por ter comparado um cão ao Menino Jesus (Nesse
tempo, ainda não havia Pai Natal). Criado entre cabras e cães, ele terá
sido dos poucos a perceber-me. Por isso, o privilégio da chalaça. Este ano,
impus-me o desafio de o reconstituir. O cenário é o mesmo (o Ribeiro de Dom
Bento) e o tema também (a solidão e a necessidade dos afetos), o do
Garrinchas de Miguel Torga, que eu certamente li nesses tempos.
- O cão é o
nosso Rabomole, agora Saltitão, como a Libânia já deve ter desconfiado. No
conto original, era um cão pastor alentejano, um dos que o Tio Albano tinha
para guardar os rebanhos. O outro morrera envenenado, facto que me aconteceu na
infância, a uma cadela nova, chamada Preta, que a tia Laura e o primo Zé
me tinham dado.
- Todas
aquelas terras do Ribeiro de Dom Bento e do Carvalhal Redondo eram do Conde de
São Vicente, que também tinha o Pinheiro, a Oriana e muitas mais. Em
meados do século XIX, tê-las-á vendido e um meu antepassado comprou o Ribeiro
de Dom Bento, pelo menos uma parte. Esta história procura recriar o mundo dos
últimos anos desse século XIX.
- O coucho
tem forma de malga, formado pela cortiça que envolve um nó do sobreiro. O asado
é um recipiente de barro, pequeno e com uma asa, que as pessoas antigamente
tinham sempre ao lume, com água. O barbilho é um objeto feito pelos pastores,
com um pau que se mete na boca do cabritinho, impedindo-o de mamar, preso à
cabeça com tirinhas de cabedal. Comia-se num prato fundo de barro, tipo
alguidar pequeno, chamado caçolo. A colher e o garfo seriam de ferro ou mais
provavelmente de madeira.