segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Atrás de tempo, tempo vem

Talvez, na Taberna da Viúva

Chegou. 
Era um estranho de vestes brancas e longas! 
Assomou à porta da Taberna e disse à sociedade:
— Que estão vocês aqui a fazer, reunidos?!
— A olhar o calendário do ano de 2016 e a mirar de soslaio o passado – disseram.
— Já viram por aí os anos de 1893, 1924, 1951 ou 1960?!
— Ói, ói, ói, ói! Lá para trás, lá para trás!... Parece que somos os velhos destes tempos.
E o forasteiro, autoritário:
— Vocês já estão mortos, ouviram? E os vossos filhos também! Vocês são um "Coro de Defuntos".
— Ah! Sim?
— E quem é você?
— Sou um anjo do Senhor.
Jerolme tomou a palavra e disse:  
 — Atrás de tempo, tempo vem!
— Palavras de sábio - asseverou Canhoto.
E mais não queriam eles dizer!
Que as cruas palavras do anjo lhes tinham ferido fundo a alma, provocando-lhes enorme inquietação!
Mas Garrancho ergueu a voz para um dos mirones do adjunto, de modo que todos ouvissem:
— Sabes o  que é isto meu rapaz?
— Humm!
— É a senilidade!
Houve  um grande rumor entre os presentes.
E, de facto, como declarara o homem das vestes brancas, viu-se que se assemelhavam a um "Coro dos Tribunais", de voz fria e atitude austera.
Todavia, o anjo no seu esplendor, buscando alguma harmonia:  
- Olhai: os velhos de hoje não são vocês. São os vossos netos!
Ora, porque essa era a pura da verdade, não puderam responder-lhe.
Contra fatos não há jumentos! Pois todos sabiam que estes apenas usam albarda.  
Então, o anjo limpou a parede às suas vestes!
E, tal como surgira, assim dali se sumiu, lesto.
Mas antes, desejou:
— Tenham um bom futuro!


Boris de Viana

4 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Isto anda lindo!
Primeiro tivemos o narrador duplicado do JMS e agora este Boris, ainda por cima de Viana.
Já me tinham falado no outro, que ainda não tive a honra de conhecer, mas este deixa-me os olhos em bico, ou melhor, os neurónios num emaranhado.

Anônimo disse...

A coisa é enigmática!
Por entre certas imagens, conseguem-se, contudo, perceber algumas outras. Por exemplo, entende-se que o caso se passa hipoteticamente, há muitos anos, na taberna da Viúva. Os homens que lá estão, são velhos. Mas como se fala no calendário de 2016, dá a impressão que esses homens são ainda mais velhos do que imaginavam. E os velhos atuais são, afinal, os seus netos! Pelo que só um anjo que, por definição, atravessa a eternidade, consegue dizer-lhes a verdade que eles parece não compreenderem. No resto, a interpretação é, como se costuma dizer, aberta.
Abraços.
ZB

Anônimo disse...

O espanto do Zé Teodoro, sobre os últimos textos, é certamente sentido por outros leitores, como no meu caso. É uma questão que me parece interessante, porque sendo a maioria do material publicado focado no mundo da recordação, estes apelam sobretudo ao mundo da imaginação (que vamos perdendo com a velhice) e isso é bom.
Parabéns aos autores pela sua frescura.
FB

Anônimo disse...

Não entendo é o que estava o Canhoto a fazer na taberna da Viúva. Só se faziam como o Zé Pasteleiro e o Ventura, que todos os dias vão ao café um do outro beber um copo. Cortesias…
Quanto ao resto, vou aproveitando o que posso destes magníficos exercícios literários, mas sobretudo de memória. A sorte dos Jerolmes, já defuntos (e dos Patanuchos, e dos Garranchos…), que aqui vão sendo lembrados! Enquanto alguém falar deles, permanecerão entre nós.

M. L. Ferreira