quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Pedintes

Naquele tempo a vida diária na vila era muito vagarosa, medieval. As três classes da sociedade medieva ainda imperavam. O clero estava acima na pirâmide social, o senhor vigário era uma pessoa respeitada ou temida, à hora da catequese mesmo os mais arredios tinham que deixar as brincadeiras, as rotinas diárias e entrar na igreja para aprender a doutrina.
As catequistas pacientemente ensinavam o pai-nosso, acto de contrição, confissão, credo, salve-rainha… Senhoras Matilde, Resgate, irmãs passaraças, Estela e Maria, menina Maria de Jesus;  as irmãs professoras, Susana e Teresinha…  Mestras do catecismo boas e pacientes. Se por ventura algum catraio não entrasse na igreja à hora marcada, o padre Tomaz ralhava, ameaçava que diria ao pai.
Naquela época ainda se viam homens, mulheres, crianças descalças; as mulheres do Casal da Serra trocavam o calçado atrás da capela de São Sebastião. As que viviam na charneca trocavam as chinelas debaixo da sobreira que ainda hoje existe no Casal, à entrada da quelha que dá acesso à ribeira; quando regressavam às suas casas, os sapatinhos eram guardados e voltavam a calçar umas alpergatas ou faziam o percurso descalças.
Os senhores eram os donos de quase tudo, as melhores terras pertenciam-lhes, as melhores casas eram deles e situavam-se nos locais mais nobres da vila. A praça atesta aquilo que estou explanando: o clero com duas igrejas, a nobreza com seus solares e o mais nobre de todos, ao menos isso, a domus municipalis, símbolo do povo.
Para os senhores trabalhava o povo de sol a sol, a troco de uma escudela… No tempo da azeitona, aos colhedores por cada oito ou nove litros de azeite cabia-lhes um; os rendeiros, para além de pagarem uma determinada quantia em dinheiro, tinham que levar ao senhor uma cesta com os melhores frutos; as uvas, a azeitona eram para os senhores, o desgraçado estrumava, cavava e só arrecadava o que a terra produzia com muito trabalho e suor:- batatas, cebolas, couves, figos, maçãs…
Se isto não eram tempos medievos!
Aos “nobres” não lhes interessava nada que alguém quisesse progredir, um exemplo flagrante foi a construção da serração, a fábrica, que empregava no primeiro quartel do século umas duas dezenas de pessoas. Quanto tempo durou?
Há um dito que diz: "Os espanhóis foram conquistando… quando encontraram pedras deixaram aos portugueses." Quem passar por Salamanca, Ciudad Rodrigo e por aí fora, em redor da estrada a paisagem, apesar de seca, não é pedregosa. Assim que entramos em Vilar Formoso, começam as serranias graníticas, pedregosas, giestais, matorrais…
Na vila acontecia a mesma coisa: Casa Conde, Casa Cunha, Casa Visconde de Tinalhas e por aí fora. O pobre tinha as serras, courelas pobres difíceis de arrotear, caminhos mal andamosos, estreitos e tortuosos, onde só passava o homem e o burro.
Parece que tudo isto se passou há uma porradoria de lustros, mas não.
As coisas só começaram a mudar com a partida dos homens para as Franças… as guerras de África, as saídas para Lisboa… Todos tinham um objectivo comum, a melhoria das condições de vida, melhores ordenados, menos horas de labor diário. Os que ficavam, os senhores não tinham outro remédio senão acompanhar a evolução dos tempos.
A prosa já vai longa e ainda não escrevi nada sobre a ideia que me fez escrevinhar todas estas palavras.
           
Naquela época, estávamos ainda nos anos cinquenta do passado século, de vez em quando os tambores rufavam pelas ruas basálticas da vila, comediantes anunciavam a sua chegada. Na praça montavam o trapézio, à noite comediavam e o povo encantava-se com as momices que se iam desenrolando.
Os porcos eram criados paredes meias com as pessoas, as furdas situavam-se nas lojas rés-do- chão das habitações. Não eram só os porcos que lá viviam; burros, galinhas, vacas… As ruas eram “enfeitadas” com bostas, galinhas esgravatavam à procura do milho rei. Os ganhões transportavam nos seus carros toda a espécie de géneros, os rodados iam desgastando os granitos que se encontravam nos caminhos, deixando sulcos por onde escorriam as águas na estação invernal. A miséria campeava, era rainha em muitos lares, de vez em quando apareciam pessoas que andavam de porta em porta a pedir, eram os pedintes.
Um deles era o Mudo da Torre, pessoa simples, andrajosamente vestido, bonacheirão, risonho, não fazia mal a uma mosca. Quando o víamos, não o largávamos e clamávamos: "Mudo da Torre… Mudo da Torre." Voltava-se para nós com um brilhozinho nos olhos e um sorriso nos lábios, tirava a gorra levantava-a no ar e dizia "É! É! É! É…" e nós voltávamos ao princípio "Mudo da Torre…"
Havia um que era o oposto do Mudo da Torre, chamava-se Diamantino. Timantino um homem alto, bem-posto, fato coçado, andar meio torcido, na cabeça usava uma boina. Parece que era natural da Lardosa. Até certa altura tinha tido uma vida estável, uma desavença e foi parar à cadeia onde passou alguns anos. Quando saiu, transtornado com a vida, passou-se. Andava de terra em terra a pedir, Mudo da Torre aceitava tudo que lhe davam, Timantino só pedia nas casas ricas. Nós, os catraios, um pouco afastados, atanazavamo-lo gritando: "Ó Timantino… Ó Timantino, Tino, Tino…". Com cara de mau, corria atrás de nós com uma faca na mão…
Havia um pedinte discreto, natural de Niza. Uma vez por ano visitava a casa do senhor José Lourenço que lhe dava uma esmola.  José Lourenço era o senhor todo-poderoso da Casa Conde, punha e dispunha, ia às feiras ver os gados, comprava, vendia… Este pedinte, quando saía, dizia-lhe: "Senhor José, se algum dia passar por Nisa, terei muito gosto em o receber na minha casa."
O feitor sorria amareladamente. Certo dia, resolveu ir a Nisa a uma feira e lembrou-se de o procurar. Dirigindo-se a um transeunte, perguntou onde morava o tal pedinte, este só faltou pôr-se em sentido. "Vá por esta rua abaixo, a sua casa fica ao fundo da rua."
Seguiu as instruções do transeunte e quando chegou ao local indicado disse para o criado que tinha ido com ele: "Não pode ser esta a casa, isto é um palácio."~
Em todo o caso, bateu à porta e imediatamente aparece um criado. "Diga ao seu patrão que está aqui o José Lourenço de São Vicente da Beira…" Subiu as escadas do casarão e aparece à sua frente o pedinte. O pobre era mais rico que ele. "Olhe senhor José, foi a pedir que consegui o que tenho."
A partir dessa altura nunca mais voltou à vila.
Naquela época ainda havia usos, costumes e preconceitos muito arreigados entre as populações, as sociedades viviam em espaços rurais muito fechados, o espírito comunitário imperava, assim como a miséria grassava e campeava. Havia uma coisa nos nossos dias cada vez mais rara: alegria. As pessoas mesmo com a barriga vazia mourejando de sol a sol, cantavam, ajudavam-se e à noite, ao toque das ave-marias, viam-se ranchos que regressavam às suas casas rezando ou galhofando.
Hoje não falta nada, mas falta o principal que se chama alegria e amor solidário.
Fiquem-se com mais esta: A ambição cerra o coração; mas o amigo conhece-se na adversidade; em contrapartida, o amigo fingido conhece-se no arruído.


J.M.S

4 comentários:

Anônimo disse...

Muita informação! Interessantíssimo! Lembro-me do mudo da Torre. Aliás, já aqui fiz referência e ele. Os rapazes davam-lhe uma moeda de 50 centavos (cinco tostões) (nós éramos mais miúdos e não tínhamos dinheiro). Depois, (a condição era essa), punham-lhe um papel à frente com letras para ele ler: "Guagum! Guagum!". Uma paródia a que ele se sujeitava, muitas vezes com algum penhor da sua dignidade. Mas a malta nova, como se sabe, é terrível... A ponto de ele se chatear e barafustar connosco!
Também me lembro do Ti' Mantino, Tino Tino!, mas se não fosse o JMS recordar aqui muitas destas coisas, eu já lá não ia!
O tal ambiente medial era mesmo ... medieval! Talvez não caiba na cabeça destas gerações mais novas o facto de as pessoas quase viverem com os animais! Até porque a casa era a mesma; a diferença é que eles apenas "habitavam" no rés do chão! As galinhas e os porcos andavam, literalmente, pelas ruas, a esgravatar e a fossar. Isto hoje parece inacreditável! Mas era uma pura e dura realidade. Só com Marcelo Caetano, no final da década de 60 do sec. XX, isto foi alterado; passando os animais a ser, obrigatoriamente, alojados nos currais e galinheiros das hortas e fazendas circundantes à vila.
Revejo-me totalmente no que aqui foi escrito. Mas não conhecia a história do pedinte de Nisa.
Abraços.
ZB

Anônimo disse...

É caso para dizer: as lembranças são com as cerejas. Então lembrei-me do Sr.José Lourenço a ensaiar uns versos de sua autoria, em sua casa, para a inauguração do Nicho, andaria eu na 1.ª ou 2.ª classe: "Passageiros e transeuntes, de transito a qualquer hora, nunca deixeis de rezar, à virgem Nossa Senhora." Bonito.
E digo ainda, que essa de viver com os animais, não foi nada má. Basta olharem no Natal para o presépio. Até o menino Jesus mostra grande alegria(os bracinhos no ar) de ter junto aos pais o Burro e a vaca. Por outra lado, essa foi uma das épocas mais felizes da civilização animal. Eram bem tratados. os borreguitos brincavam com as crianças, que os iam guardar depois da escola. Os porcos tinham uma alimentação variada e saudável com couves, aboboras, batatas e milho e agora? Ração, ração, ração...as galinhas em liberdade a esgravatar e apanhar bichinhos na terra que ofereciam aos filhotes com uma alegria contagiante. E à noite todos regressavam a casa, felizes e contentes, aquecendo-se uns aos outros. E agora Zé Manel também há muita gente a cantar, basta veres a TV ao domingo à noite e que bem que cantam. Só e triste porque depois tem uns espertos a dizer que uns cantam melhor que os outros e depois amuam e não cantam na rua. Antigamente todos cantavam porque não havia essas criticas parvas. Gostavam de se ouvir. Esta competição desenfreada trouxe-nos muito desconforto emocional, mas as pessoas vão cair nelas. Estou confiante.
F. Barroso

José Teodoro Prata disse...

Lembro-me ainda do escândalo que foi a Guarda chegar ao sr.º João Dias e dizer-lhe que as galinhas não podiam andar na rua. Como é que soube? A notícia foi tão extraordinária que em pouco tempo chegou à Tapada.
Não conheci os pedintes da Vila, só mais tarde os de Penamacor (Tonho da Aldeia e Tanã). Atualmente, encontro às vezes, junto à ponte sobre a Ribeirinha, na Póvoa, um homem que parece uma árvore de arame, tais são as tralhas que transporta consigo.

Anônimo disse...

A sorte desses pedintes, que devem estar todos no Reino dos Céus à conta daqueles a quem não interessava que o povo progredisse!
E a história do pedinte de Nisa? Só mesmo o senhor José Lourenço, com as qualidades que muitos lhe conheceram, podia inventar uma coisa daquelas. Também se contava uma história parecida sobre um casal de cegos que pedia esmola no Metro, em Lisboa. Diziam que tinham uma casa tão boa no Cacém, que era quase um palácio, e só pediam por vício. Se calhar era por isso que o tilintar dos tostões a cair no fundo da lata só se ouvia de longe em longe…

M. L. Ferreira