terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Vidas do avesso

Não se sabe ao certo de onde é que era, mas pode bem ter nascido nas encostas da Gardunha, talvez perto da Senhora da Orada. Os pais, pobres e cheios de filhos, mourejavam de sol a sol em searas alheias, que de si não tinham nada.
Ele também começou cedo. Primeiro a guardar cabras, ainda ganapo; depois, já cachopo, ninguém lhe ganhava a cavar ou a ceifar, e não faltava quem o quisesse à jorna, sempre que era preciso.
E assim se foi fazendo homem, grande, bem parecido e com a força de um touro. Se calhar por isso não lhe foi difícil encontrar mulher para casar: uma bonita cachopa, trabalhadora que até dava gosto; e não tardou um ano, nasceu-lhes o primeiro filho. Um belo menino, rosadinho, que se via medrar de dia para dia.
Foi nessa altura que soube que andavam a fazer uma grande barragem lá pela parte de cima do Casal da Serra e foi-se lá oferecer. Era trabalho ruim, mas certo por alguns anos. Mal encararam com ele, um homenzarrão daqueles, puseram-no a cortar pedra.
Foram bons, aqueles primeiros anos de casado: trabalhinho certo; o comer sempre a tempo e horas; a mulher amorosa e um verdadeiro braço de trabalho em casa e na horta; o filho a saltar que nem os cabritos.
Mas, lá diziam os antigos: «Não há bem que sempre dure…» e um dia vem de lá o diabo duma pedra direitinha a ele, que o ia esmagando. Não o matou, mas levou-lhe dois dedos e a força toda da mão direita. Teve que abalar, que sem força nas mãos, disse o capataz, não prestava para aquele serviço. E fez-se de novo pastor, que para guardar gado até os havia sem braços.
Sentiu a falta da companhia dos outros homens, que a dos bichos não é a mesma coisa, mas, às duas por três, até já estava avezado e um dia deu consigo a falar com as cabras como se fossem gente.
Mas eram danadas, aquelas almas do diabo; sempre à espreita duma distração para se meterem pelo renovo adentro e darem cabo dele enquanto o diabo esfrega um olho. Um dia foi de tal modo a estragação que fizeram na seara dum ricalhaço que este não esteve com meias medidas: nada menos que 400$00 escudos pelos prejuízos. E se fossem para tribunal, que nem quisesse saber por quanto lhe ficava.
Como não tinha meios para pagar tal fortuna, foi adiando, até ao dia em que viu aparecer-lhe a Guarda à porta. Saltou pela postigo das traseiras e ninguém tornou a pôr-lhe a vista em cima, lá na terra.
Vivia escondido nas partes mais altas da Serra e só se abeirava duma casa ou dum palheiro quando tinha muita fome ou muito frio. De vez em quando, pela calada da noite, ia até casa para matar saudades da mulher e do filho que já estava a ficar um homenzinho. Olhava para ele, a dormir, e só pedia a Deus que o guardasse, melhor do que tinha feito com ele.
Uma vez, numa noite de invernia, esfomeado e a escorrer, passou perto duma casa por cima de São Vicente. Sabia ser de um amigo que tinha arranjado havia muitos anos, uma vez que tinham ido juntos ao quinto lá para os lados do Alentejo. Voltaram depois a encontrar-se nas obras da barragem e eram quase como irmãos. De certeza que repartiria com ele alguma coisa de comer.
Bateu à porta e perguntou pelo amigo, mas a mulher disse-lhe que não estava, mas não tardaria a chegar. Deu-lhe uma malga de caldo bem quente e secou-lhe a roupa ao lume. Assim, aconchegado, aprontava-se para abalar, quando entra por ali adentro uma chusma enfurecida que lhe amarra os braços e o arrasta para a cadeia, na Praça da Vila. 
A meio da noite arranja maneira de fugir, aproveitando-se da bebedeira dos guardas. Mas não vai muito longe, porque foi apanhado ainda mal se tinha refeito do susto. Levam-no para Castelo Branco e ele torna a escapar. Pelo caminho dizem que matou gente e levam-no para uma enxovia perto de Lisboa, com água pelos joelhos.
Passaram-se alguns anos e um dia, já doente e sem esperança, quis cumprir o desejo de tornar a ver o sol e conhecer o mar. Agarrou nas últimas forças e «…conseguiu partir os grilhões e fugiu a nado. Chegou ao paredão e subiu-o de arrastos, tolhido das pernas. O sol quente, uma coisa tão boa! Passou o barco patrulha e soou um tiro. O corpo rebolou e voltou à água.»

Nota: A parte do último parágrafo, em itálico, foi retirada da história “O Pistotira” escrita pelo José Teodoro e que faz parte do livro “DOS ENXIDROS AOS CASAIS…”.

M. L. Ferreira

3 comentários:

Anônimo disse...

Texto do melhor que aqui se produz. Estava-se mesmo a ver que era o Pistotira! Esta versão toca em alguns pontos do que já se escreveu antes. Mas o curioso é que a sua leitura não perde interesse. Muito pelo contrário. São as histórias das nossas gentes nos deliciam. A lenda e a magia continuam!
Abraços.
ZB

José Teodoro Prata disse...

O nosso povo conta vários finais desta história, quase todos de outras personagens.
Quando era pequeno, contava-se que o Pistotira se tinha suicidado na prisão, cortando as veias, e ao ver o sangue correr dizia: "Corre sangue, que és tão lindo!"
Uma outra dizia que ele, durante uma fuga às autoridades, no Ribatejo, caíra a um poço e morrera afogado.
Não são só os escritores de agora que inventam. Sempre foi assim na literatura oral de todos os tempos.

Anônimo disse...

Quem conta um conto, acrescenta um ponto, lá diz o ditado.
Muito saborosa a escrita da Libânia. Como uma verdadeira talhada de morcela de cozer. Não das que se compram agora do Sobral ou doutros lados, mas daquelas que as nossas mães faziam com as nossas tias de roda do lume. Não é só da história em si, é do tempero. Os arcaísmos, a construção frásica, a fluidez do texto dão-lhe um paladar tão equilibrado e delicioso... coisa não para menos duma estrela Michelin...
Feliz Natal para pessoal da Praça virtual
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