terça-feira, 7 de maio de 2019

A Casa da Roda de São Vicente da Beira


Não se sabe ao certo a data da criação nem o local onde terá funcionado a Casa da Roda (dos enjeitados, como era designada na maior parte dos registos de batismo da época) de São Vicente da Beira, mas é provável que tenha sido nesta casa, ao cimo da rua da Cruz. Pela data inscrita na pedra por cima da janela (1785), ela já existiria na altura em que Pina Manique, em 1783, ordenou o alargamento destas instituições a todas as sedes de concelho. Por outro lado, situando-se na periferia da Vila, facilitava o acesso às pessoas que vinham deixar as crianças, sempre pela calada da noite, garantindo o máximo de privacidade e sigilo, como era recomendado. 
Quanto à data de sua criação, tanto quanto percebi, os primeiros registos de batismo que referem crianças expostas na roda da Vila datam de 1787. Foram dois meninos, o Francisco e o António, batizados no dia 11 de fevereiro, que teriam dois dias de vida quando foram deixados na roda. O primeiro foi dado a criar a Inês Leitoa, solteira, dos Pereiros. O segundo foi entregue a Maria Gonçalves, mulher de Manuel Leitão, da Partida.  


Os expostos eram, quase sempre, crianças de famílias muito pobres que não podiam sustentá-las e as abandonavam na esperança de que alguém pudesse criá-las em melhores condições. Vinham quase sempre mal agasalhadas e alimentadas, e muitas acabavam por morrer passado pouco tempo. Mas havia também um número significativo de crianças abandonadas que eram o resultado de relações ilícitas ou moral e socialmente condenáveis; o abandono era a melhor forma de esconder o “pecado”.
Quando as crianças eram expostas, raramente traziam com elas alguma coisa que pudesse identificá-las, mas, por vezes, tinham a indicação do nome e a informação de já terem sido batizadas em casa. Mesmo assim eram novamente batizadas “sob conditione”, como é referido em alguns registos. Por vezes traziam também algum objeto ou sinal que permitiria, no futuro, reconhecê-las. Isto acontecia quando, da parte dos progenitores havia intenção de recuperar a criança mais tarde. De acordo com os regulamentos das casas dos expostos, esta recuperação estava sempre garantida, pois em qualquer momento os pais podiam requerer a guarda dos filhos sem se sujeitarem a qualquer penalização ou julgamento.
Alberto, exposto em outubro de 1870, é um bom exemplo desta situação: filho de Joaquim Urbano das Neves e Castro, que na altura desempenhava o cargo de Presidente da Comissão Administrativa da Misericórdia de São Vicente da Beira, e de Maria da Piedade e Castro, nasceu antes do casamento dos pais. Foi entregue na roda e dado a criar a uma ama dos Pereiros. Não se sabe por quanto tempo, mas terá sido mais tarde entregue aos progenitores, que, após o casamento, declararam ser filho deles.


Alberto Carlos das Neves e Castro teve depois uma carreira de sucesso como militar. Foi um dos sanvicentinos que participaram na Grande Guerra.

A rodeira era a pessoa responsável pelo acolhimento das crianças expostas. Era normalmente uma mulher casada, que habitava na casa, e estava disponível, de dia e de noite, para responder prontamente ao toque da sineta e prestar os primeiros cuidados ao recém-chegado. Tinha depois que informar as autoridades.Era ela também a responsável por tomar nota de todas as informações relevantes sobre cada uma das crianças: dia e hora de exposição, estado de saúde, idade aproximada, o que trazia vestido, se trazia ou não qualquer objeto que a identificasse, data e local do batismo, a que ama tinha sido entregue, etc. Para além disto tinha a obrigação de verificar periodicamente as condições em que as crianças eram tratadas nas famílias que as acolhiam.
Por vezes era a rodeira que ficava responsável pela criação de alguma das crianças expostas. Foi o caso de Ana Henriques que, de acordo com os registos de óbito da altura, alimentou várias crianças ao longo dos anos em que foi responsável pela Casa da Roda de São Vicente. Ludovina e Iria foram apenas duas delas:

 
Maria Castanheira terá sido também uma das rodeiras da Vila, a seguir a Ana Henriques, e terá criado algumas das crianças expostas. Foi o caso de Alfredo João, que morreu com cinco anos de idade, de bexigas, uma epidemia que matou a maior parte das crianças e adolescentes nascidos nesses anos.

  
As amas eram um elemento muito importante da casa da Roda. Deveriam ser escolhidas entre as mulheres mais capacitadas do concelho, normalmente casadas, com idoneidade comprovada, de boa saúde e que tivessem sido mães há pouco tempo. Infelizmente nem sempre era possível observar todos estes requisitos, uma vez que era difícil encontrar mulheres disponíveis e capazes para acolherem estes filhos de ninguém. Muitas só se disponibilizavam pela necessidade que tinham de obter algum rendimento, mas as condições para desempenharem o papel de ama eram poucas, sobretudo pela miséria em que, por vezes, também viviam. A maior parte eram casada, mas também havia viúvas e solteiras, recrutadas em quase todas as localidades do concelho, principalmente na Partida, Paradanta, Casal da Serra e São Vicente. Mas também havia amas dos Pereiros, Vale de Figueiras e Rochas de Cima.
De acordo com as regras das Casas da Roda, as crianças eram entregues a uma ama nos dias imediatos a terem sido expostas, a qual ficaria responsável pelo seu sustento, cuidados de saúde e alimentação, vestuário, etc. Por este encargo a ama recebia um salário que era pago pela Comarca. Se tudo corresse bem, a criança ficaria à guarda dessa ama até aos sete anos, altura em que seria entregue a uma família onde pudesse começar a trabalhar ou aprender um ofício.
Mas a maior parte das vezes nem tudo corria bem: as amas revelavam-se incapazes e tinham que ser substituídas; outras vezes eram as próprias que desistiam de cuidar das crianças. Pior que tudo isto, era o alto índice de mortalidade entre os expostos, em idades ainda muito precoces. É verdade que a mortalidade infantil era muito elevada naquele tempo, mesmo entre os filhos legítimos criados pelos pais biológicos, mas as condições de grande debilidade que muitas crianças apresentavam quando eram acolhidas, aliado ao desinvestimento afetivo durante os primeiros anos de vida, potenciavam todos os outros fatores. Poucas chegavam à idade adulta.  A prová-lo está o elevado número de expostos nos registos de batismo, e tão poucos os que constam nos registos de casamento.
As Casas da Roda foram extintas por volta de 1870; a de São Vicente terá funcionado até 1874, altura em que ainda há registo de uma criança ali exposta. Chamava-se Policarpo. A partir dessa data o fenómeno do abandono continuou, mas, de acordo com os registos de batismo, as crianças eram deixadas à porta das casas, das azenhas, das capelas (a Senhora da Orada é referida várias vezes) ou em qualquer local onde houvesse alguém que as acolhesse.  
Maria Libânia Ferrreira

3 comentários:

José Barroso disse...

Não conheço as estatísticas, mas acho que os nascimentos no seio de famílias (ou simplesmente de pessoas) que não têm condições económicas ou psíquicas para se responsabilizarem pelos filhos, ainda serão elevados; na verdade, eles serão sempre demasiados, porque o que seria bom é que não houvesse nenhum caso. Era sinal que toda a criança poderia nascer e crescer com os pais biológicos. Mas isso seria num mundo ideal que não existe. Todavia, a chaga que estes casos ainda representam na sociedade, salvo algumas exceções, está hoje muito mais atenuada porque as adoções têm critérios mais rigorosos; e, quando são acolhidas por instituições, as crianças são muito melhor tratadas; porque essas instituições têm a tutela do Estado que, nos nossos dias se preocupa muito mais com este problema. Em suma, o Estado está mais humanizado.
E isso não deixa de ser curioso, porque passamos a vida a apregoar que estamos cada vez mais alienados; que só queremos é telemóveis e computadores; e que estas máquinas acabam por nos robotizar também, etc., etc. Bem, mas aqui só temos que apelar à nossa inteligência e usar a nossa razoabilidade!
Mas este tema dos nascimentos em situação precária (seja qual for o tipo de precariedade), levanta muitas outras questões, como a da afetividade entre a criança e a mãe biológica (se a conhecer); ou entre ela a mãe adotiva; ou mesmo o polémico problema do aborto.
Em relação a este último, ninguém me encomendou o sermão, mas, já agora, para encerrar, apenas queria dizer que sempre me manifestei contra, por uma questão de consciência; embora, obviamente, seja a favor das outras formas de controlo dos nascimentos, que, por sua vez, nos leva à questão da paternidade (e maternidade) responsáveis.
No aborto, tudo pode ser discutível; pode ser apenas a questão do ovo e, portanto, de simples células (se bem que, quando ele é feito já existe um feto); pode ser tudo o que se quiser. Para mim, porém, o momento da conceção muda tudo!
É a minha opinião. Que pode não ser coincidente com a opinião de uma mulher que, eventualmente, o pratique. Mas nada tem a ver com penalização e sim com compaixão.
Abraços, hã.
JB

José Teodoro Prata disse...

A Libânia terá fundamentado o que escreveu nalgum estudo, mas parece-me que o abandono de crianças seria mais por fuga à reprovação social (relações fora do casamento) do que por necessidades materiais. Aliás, algumas famílias pobres (era quase toda a gente) até acolhiam crianças enjeitadas porque não tinham filhos ou os seus lhes tinham morrido todos ou quase todos (na Paradanta vivia uma ama que fazia disso o seu ganha-pão; até ao Fundão ia buscar crianças; morriam quase todas). Nas famílias pobres, os filhos eram o único amparo dos pais, se estes chegassem à velhice.

M. L. Ferreira disse...

De facto, o José Teodoro tem alguma razão. Numa consulta mais recente que fiz, muitos dos expostos em SVB traziam consigo algum enxoval: baetas, jaqués, peças de linho,carapuços,xailes, etc. Algumas traziam mesmo alguns alimentos (principalmente açúcar) e até algum dinheiro. Esta descrição levou-me a pensar que os "enjeitados" não seriam apenas crianças de famílias muito pobres, mas muitas seriam resultado de relações ilícitas. É fácil imaginar porquê.
É muito otimista o José Barroso quando diz que as crianças institucionalizadas são atualmente mais bem tratadas. A julgar pelas notícias que nos chegam pela comunicação social (maus tratos físicos, abuso sexual, etc), nem sempre será assim.
É pena que o Estado não invista mais na capacitação das famílias para poderem exercer convenientemente as funções parentais, e prefira gastar dinheiro em instituições cujos resultados nem sempre são positivos. Mas há casos e casos, e por vezes é mesmo necessária esta solução. E nem tudo é mau...