Foram assim as nossas jornadas, em 2012, há 12 anos. Este ano vamos realizá-las a 22 de setembro, na Partida. Estamos todos convidados!
Não sou nostálgico. Se o fosse, escreveria que eramos felizes e não o sabíamos!
José Teodoro Prata
Enxidros era a antiga designação do espaço baldio da encosta da Gardunha acima da vila de São Vicente da Beira. A viver aqui ou lá longe, todos continuamos presos a este chão pelo cordão umbilical. Dos Enxidros é um espaço de divulgação das coisas da nossa freguesia. Visitem-nos e enviem a vossa colaboração para teodoroprata@gmail.com
Foram assim as nossas jornadas, em 2012, há 12 anos. Este ano vamos realizá-las a 22 de setembro, na Partida. Estamos todos convidados!
Não sou nostálgico. Se o fosse, escreveria que eramos felizes e não o sabíamos!
José Teodoro Prata
É o lugar mais conhecido do Casal (quando mo perguntam e digo que moro em frente da taberna da Amália, ficam logo a saber onde é a minha casa), mas a fama já vem do tempo do pai, quando ainda era a do Marcelino, com outro ar e outra freguesia.
Atualmente é ponto de encontro, quase
só de mulheres, para um café e dois dedos de conversa; nas tardes de verão há
quem se demore na esplanada a beber um cai-bem,
refresco feito com uma mistura de refrigerante gasoso e xarope de groselha,
receita caseira. Mas isto são coisas dos tempos modernos, que, há pouco mais de
cinquenta anos, nenhuma mulher se atrevia a entrar na taberna, mesmo que fosse
para ir chamar o homem, esquecido a matar a sede depois de uma tarde de domingo
a jogar à malha. Por isso mandavam os filhos, se já se fazia tarde para a ceia,
que às vezes também eram encorridos para casa, apenas pelo apontar de um dedo e
o olhar esbugalhados de quem quer afirmar a autoridade do chefe da família. Eles
iam ficando sempre mais um pouco…
Mas havia o Ti Miguel Jerolme, um andarilho toda a vida, sempre
de um lado para ao outro à procura das melhores rezes para criar ou vender a
quem lhas rogasse nos mercados e nos talhos. Era uma paz d’alma, amigo de toda
a gente; também do Ti Marcelino, quase da mesma criação.
Quando deixou de andar por lá, no
negócio do gado, era raro o dia em que não aparecesse no Casal, quem sabe se
num chamamento do coração ao ninho onde se criou, ali a dois passos, e ficava
até se fazer noite, entremeando a conversa com mais um copinho. Vendo-o magrito,
não fosse o vinho cair-lhe na fraqueza, a Tia Trindade oferecia-lhe muitas
vezes uma bucha, quase sempre um bocado de pão com uma mancheia de azeitonas ou
uma talhada de queijo, e ele não dizia que não.
Quando começava a passar da hora, ia-lhe
dizendo: «É melhor ir andando, Ti Meguel, que se faz tarde e a sua mulher já
deve estar ralada…». Mas ele nunca tinha pressa de abalar: «Já vou…», e ia-se
deixando ficar, sentado num dos bancos corridos encostados à parede. Até que,
já noite escura, aparecia a Tia Laurentina com a lanterna na mão, e parecia ele
que via Deus: levantava-se logo, com a alegria de uma criança confiante na mãe
e, com o equilíbrio possível, caminhava atrás dela, pela vereda que os levava até
casa, no outro lado do ribeiro. E era assim, muitos dias…
Após a morte da Tia Laurentina, foi a
Chão, a última das filhas em casa, que, com a mesma dedicação e amor da mulher,
lhe serviu de estrela, alumiando-lhe as noites escuras no regresso, desde o
Casal da Fraga da sua infância, até ao Casalito onde se tinham criado os dez filhos que Deus lhes deu.
O Casal do Baraçal, já tão diferente, visto do Casal da Fraga (apenas as casas em primeiro plano, ao fundo é já a Devesa)
Nota: O senhor Miguel Jerónimo nasceu no Casal da Fraga, em 1905, numa casa duma travessa da rua de Santa Bárbara, uma das mais antigas do Casal, que ainda é habitada. Era filho de António Jerónimo Lopes, já aqui nascido, e de Maria Josefa, natural dos Pereiros. Teve oito irmãos. À exceção de uma irmã, todos se criaram, casaram e terão tido filhos. Do casamento com a senhora Laurentina Hipólito teve dez filhos, todos criados até à idade adulta, e só o Padre Zé e a Conceição (Chão) não deixam descendência. Será, por isso, uma das famílias com mais parentes em São Vicente. Faleceu em 1 de junho de 1981, poucos anos depois da mulher.
ML Ferreira
Foi em fevereiro de 2013. A Junta de Freguesia (não sei se mais alguma instituição) organizou uma tertúlia na casa Hipólito Raposo. Foi bonito. De vez em quando alguém recorda aquele convívio!
Foi tudo perfeito: taberna, comida, boa disposição, histórias...
O Casal da Fraga não é
um casal mas três: Casal do Baraçal, Casal da Fraga e Casal dos Ramos. Num
passado recente existia ainda o Casal do Monte do Surdo, que agora sobrevive
apenas nas cadernetas prediais, estando na linguagem comum incorporado no Casal
da Fraga.
Há cerca de 300 anos,
haveria apenas uma família de proprietários em cada casal (exceto no do Baraçal,
que não surge nas fontes). Todo o vale
onde corre o ribeiro que atravessa a estrada perto do entroncamento para os
Pereiros e Partida era propriedade do Conde de São Vicente, sendo a mais rica
das que tinha na freguesia. Os rendeiros viviam na casa, agora em ruínas, que
existe um pouco abaixo do referido entroncamento. O mais ilustre destes
rendeiros foi João Rodrigues Lourenço Caio, natural do Louriçal, que casara com
a filha do rendeiro anterior, José Leitão Paradanta. Chegou ao importante cargo
local de Capitão de Ordenanças da Vila, no tempo das Invasões Francesas
(1807-1812).
No Casal da Fraga, numa
casa que existiria na zona da atual residência do Comissário Barroso ou nas
proximidades, moraria Duarte da Fraga, cerca de 1700, e outros Fragas ali
continuaram a viver, ao longo de todo o século XVIII. Na casa em frente, que
foi do sr. Miguel Leitão e hoje é do filho Pe. José Augusto, existem as mais antigas
oliveiras de São Vicente. Fraga designa uma rocha ou uma forja de ferreiro.
Qual destas terá dado o nome ao casal? Ou nenhuma delas e Fraga vem do apelido
familiar desta família que ali viveu, com esse apelido, mais de um século?
Do Casal dos Ramos veio
a esposa de Manuel Rodrigues Fraga, chamada Luísa Maria Leitão (nascida cerca
de 1750), o que nos permite concluir que ali viveria pelo menos outra família.
Certo é que o casal foi crescendo, beneficiando do estrangulamento urbano provocado na Vila pelas casas senhoriais que detinham a maioria dos terrenos em redor da povoação: Casa Cunha, Visconde de Tinalhas e Casa Conde.
Em 1970, um ano após a
passagem do Presidente do Conselho pela Vila, a inaugurar a barragem e os
melhoramentos que a acompanharam (eletricidade e redes de água e esgotos), os habitantes do Casal decidiram que já era tempo
de acabar com um dos maiores perigos que haviam vivido durante séculos: a
travessia da ribeira pelas passadouras. Fizeram um peditório entre si e
contruíram um pontão sobre a ribeira, mais tarde alargado pela Junta de
Freguesia. Só o projeto custou 100 contos! E quando começaram as multas por
lavar roupa na ribeira, as mulheres do Casal foram com as da Vila numa
camioneta a Castelo Branco, falar com o Governador Civil e o Presidente da
Câmara. Não ganharam lavadouros, como as da Vila, mas não houve mais multas.
Anos depois, com a Vila
já eletrificada, tiveram de pagar do seu bolso a rede de postes e fios que
finalmente levou a eletricidade a suas casas. Até 1980, dos poderes talvez
apenas tenham recebido de graça a fonte que a junta edificara, em 1960, no que
ficou a ser chamado o Largo da Fonte. Até o pequeno pontão para o Casal do
Baraçal, sobre o ribeiro que desce do Monte do Surdo para a Ribeirinha, foi
construído pelo António Pereira.
Atualmente, o Casal da
Fraga tem arruamentos pavimentados, redes de água e esgotos, muitas casas novas
ou recuperadas, uma fábrica de engarrafamento de água, um restaurante, uma
taberna, uma associação que organiza a festa da Santa Bárbara, com sede própria,
e ganhou o estatuto de uma povoação autónoma e não apenas um sítio da Vila. Tem
pouca população jovem, como todo o interior, mas mantém o espírito bairrista e
ativo que sempre o caraterizou.
José Teodoro Prata
Terão
muito de fantasia as memórias dos dias felizes da infância, quando acompanhava
a minha mãe à Ribeira para a lavagem da roupa da semana (na verdade, não seriam
dias fáceis, principalmente se era inverno).
Chegávamos
cedo, pela fresca, para apanhar a água mais funda e a pedra maior, mas, às
vezes, os melhores lugares já tinham em cima alguma peça de roupa deixada de
véspera ou de madrugada, sinal de que o lugar estava guardado. Normalmente esse
sinal era respeitado, se não, podia ser pretexto para grandes discussões e
zangas entre as mulheres.
E
não tardava que as margens, ao longo da Ribeira, se enchessem de lavadeiras, de
pés enfiados na água ou ajoelhadas em pedras que cobriam com alguma peça de
roupa grossa para tornar menos penosas as horas passadas naquela posição, a
ensaboar, esfregar, passar por água, ensaboar de novo… até que a relva, à roda,
se enchia de roupa a corar. Enquanto esperavam, as conversas fluíam sobre as
coisas da vida, algumas vezes da vida alheia, que as delas pouco tinham para
contar…
Nós,
as crianças, divertíamo-nos a chapinhar nos açudes, a fingir os primeiros
gestos de nadar ou a perseguir libelinhas e alfaiates, que quase sempre corriam
mais que nós; os rapazes pescavam, um anzol improvisado na ponta de uma linha
presa a uma cana. Naqueles dias, de combinação arregaçada e água pouco acima
dos tornozelos, via-me na praia da Nazaré ou da Figueira da Foz, coisa de
ricos, de que mal tinha ouvido falar, mas imaginava tal e qual a nossa Ribeira.
Passaram
alguns anos, até que em 1966 começaram as obras para a construção da barragem
do Pisco, no leito da Ribeira. Foi um acontecimento importante para a nossa
terra. Nunca tínhamos visto tantas máquinas e tanta gente junta a trabalhar. A
Vila ficou diferente, cheia de pessoas vindas de fora, principalmente do
Alentejo. No início todos olhávamos esses estranhos com desconfiança,
principalmente porque não iam à missa aos domingos e até nos diziam que era
perigoso falar com eles porque eram comunistas; mas a pouco e pouco fomos começando
a apreciar outros aspetos da sua maneira de ser, sobretudo a simpatia e facilidade
em relacionar-se connosco, que também lhes éramos estranhos. O contacto com
pessoas diferentes foi importante para alguma abertura nas mentalidades, ainda
muito fechadas, que tínhamos na altura.
Três
anos depois de terem começado as obras, em março de 1969, a Barragem foi
oficialmente inaugurada pelo Governador Civil de Castelo Branco, mas, para nós,
o dia mais importante foi só em setembro, quando cá veio o Presidente do
Conselho, Marcelo Caetano. Nesse dia fomos todos, para lá da Fábrica, receber o
Senhor Presidente, e era um mar de gente por aquela estrada fora. Já o conhecíamos
do retrato na parede da escola ou das Conversas em Família, mas vê-lo em carne
e osso, fora da televisão, era outra coisa e fazia da nossa terra o centro do
mundo.
Quando
a festa acabou e Castelo Branco e outras povoações aqui à roda começaram a
beber a água da Barragem, saiu uma lei que proibia toda a gente de lavar roupa
na Ribeira. Sem alternativa, tanto as mulheres da Vila como as do Casal da Fraga
não tiveram outro remédio que desafiar a lei e as ordens do guarda-rios, que aparecia
quando menos se esperava, fardado a rigor, a impor autoridade. Ao princípio só
assentava o nome das mulheres num papel, mas avisava: «Para a outra vez, se a
apanho, passo-lhe a multa. Olhe que são oitenta mil e quinhentos!». «Ó senhê Manel,
onde é que uma pobre como eu, que nem água tem em casa, vai lavar a roupa de
tanto filho?», era a questão de muitas. E o senhor Manuel, o guarda-rios, ia
fazendo “vista grossa”.
Mas
quando a Maria da Silva e a Celeste Pique foram multadas e levadas a tribunal,
enfrentaram o juiz com a coragem de quem tem a razão do seu lado. A Mena, filha
da Maria da Silva, diz que ainda se lembra de ver mãe, sentada no tribunal a
reclamar: «Se queriam beber a nossa água, tivessem feito a barragem lá mais
para cima. A Ribeira é nossa e é lá que havemos de continuar a lavar, que não
temos outro sítio!»
Revoltadas
com tanta injustiça, as mulheres resolveram ir a Castelo Branco protestar. A
Luz “da Esperança” ainda se lembra: «Juntámo-nos todas e alugámos um autocarro,
tudo pago à nossa conta, e fomos protestar em frente do Governo Civil e da
Câmara. Quem organizou a manifestação e foi falar com o presidente foi o Zé
Eletricista, que sabia falar melhor.» O que ele terá dito já ninguém sabe
dizer, mas a verdade é que as multas foram retiradas e o processo não seguiu
para a frente.
Entretanto
a Junta de Freguesia mandou fazer um lavadouro comunitário no Quintalinho, mas deixou
as mulheres do Casal sem alternativa à Ribeira. Na Vila, a solução também não
foi bem aceite por ninguém. Habituadas a lavar na água a correr, as mulheres
não gostaram daquela modernice: a roupa não ficava tão bem lavada nem o cheiro
era o mesmo como quando a lavavam na água limpinha e fresca que corria da
Senhora da Orada. Segundo se dizia, havia até quem tivesse visto piolhos por
cima da água.
E
durante anos, continuaram a ver-se mulheres, de bacia à cabeça, a subir e a
descer os caminhos dos dois lados da Ribeira. A pouco e pouco, com os tanques
de cimento e depois as máquinas de lavar roupa em cada casa, essa visão foi
desaparecendo completamente. Hoje é tudo mais cómodo, mas ainda há quem diga
que não é a mesma coisa…
Maria Libânia Ferreira