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sábado, 23 de setembro de 2023

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José Nunes Caetano

José Nunes Caetano nasceu no Casal da Serra, a 22 de fevereiro de 1895. Era o filho mais velho de Pedro Caetano e Joaquina Nunes, cultivadores.

Assentou praça no dia 19 de junho de 1915 e foi incorporado no dia 14 de janeiro de 1916, no 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21 de Castelo Branco. Era analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro.

Pronto da instrução em 29 de abril de 1916, embarcou para França no dia 21 de janeiro de 1917, integrado na 6.ª Companhia do 2.º Regimento de Infantaria 21, com o número 507, placa de identificação n.º 9920.

No seu boletim individual de militar do CEP consta o seguinte:

a)    Baixa hospitalar em 22 de abril de 1917, com alta em 22;

b)    Diligência para o posto de retaguarda, em 20 de janeiro de 1918, diligência para a frente em 5 de fevereiro;

c)    Baixa à ambulância n.º 4 em 13 de outubro de 1918; alta em 18, seguindo para a sua unidade;

d)    Regressou a Portugal no dia 5 de março de 1919, indo domiciliar-se no Casal da Serra.

Passou à reserva ativa em 11 de Abril de 1928 e à reserva territorial em 31 de Dezembro de 1936.

Família:

José Caetano casou com Felicidade da Conceição, no dia 26 de janeiro de 1925, mas a esposa morreu de parto no dia 1 de Novembro do mesmo ano. Voltou a casar com Ana dos Anjos, em 23 de Fevereiro de 1930, e tiveram quatro filhos:

  1. Antónia dos Anjos que casou com Albertino Barroso e tiveram 3 filhos;
  2. Maria dos Anjos que casou com Joaquim Caio e tiveram dois filhos;
  3. Salete dos Anjos que casou com António Dias e tiveram uma filha;          
  4. Albino Pedro que casou com Albertina Amoroso e tiveram quatro filhas.

«O meu pai era duma família muito pobre e era o mais velho de quatro irmãos. Quando tinha sete anos puseram-no logo a servir como pastor, numa casa da Vila. Diz que o patrão o mandava com o rebanho para a Serra e ele ficava por lá sozinho, a dormir no meio do gado. Diz que, para espantar o medo, se punha a cantar; que ele sempre cantou muito bem, mesmo depois de homem feito.

Quando o meu pai foi para a tropa, diz que a Alemanha declarou uma guerra muito grande aos outros países e o Afonso Costa, que era quem mandava cá em Portugal, vendeu os soldados portugueses para irem para a França.

Ele falava pouco desses tempos, mas diz que passaram por lá muita miséria, porque não havia nada que comer. Às vezes até fugiam e iam durante a noite por aquelas baixas à procura de qualquer coisa que lhes enganasse a fome; mas o mais das vezes a única coisa que conseguiam achar era uns nabos e comiam-nos mesmo crus e tudo. Mas diz que os graduados andavam bem comidos e bem bebidos. Um dia, uns mais afoitos foram espreitar a cozinha deles e viram que tinham lá de tudo, do bom e do melhor. Eles é que tiveram muito medo e não conseguiram roubar nada.

Para além da fome que passaram, o que mais lhe custou a ver naquela guerra tão feia foi os que eram feridos ou mortos ficarem ali tanto tempo ao abandono, caídos no chão, no meio da lama, e pensar que o mais certo era acontecer-lhe o mesmo a ele. Ainda me lembro de o ouvir cantar uns versos que ele tinha feito lá na França, que eram assim:

Mãezinha, que horroroso aquilo foi,

Eu lutei, é verdade, não o nego,

Todos me dizem que eu fui um herói,

Mas eu apenas fiquei cego.

 

Os gases, as granadas e os morteiros

Deixam toda a terra envolta em chama,

E os meus pobres companheiros

Envoltos em cal, sangue e lama.

Ainda hoje penso muitas vezes como é que o meu pai, que não sabia uma letra, fez assim uns versos tão lindos!

Diz que um dia houve lá um bombardeamento tão grande, perto de Lille, que só se viam as mulheres a fugirem com os filhos ao colo, ou pela mão, para se esconderem dentro duma igreja. Quando souberam, os alemães atearam fogo à igreja e morreram lá aqueles inocentes todos queimados. Contava isto sempre com a lágrima no olho e dizia que foi a maior barbaridade que um homem podia ter visto na vida.

Quando regressou da guerra, casou com uma rapariga de São Vicente que se chamava Felicidade, mas como por cá havia pouco onde ganhar a vida, foi para a Espanha trabalhar nas minas. Passado pouco tempo, recebeu lá a notícia de que a mulher tinha morrido de parto, ela e o menino. Alguns anos mais tarde casou com a minha mãe e tiveram quatro filhos.

Foi sempre muito bom pai. Muito nosso amigo, mas impunha um grande respeito e nós sabíamos que, quando dava uma ordem, só falava uma vez. Gostava de nos ver sempre asseados e rezava sempre connosco antes de comermos e de irmos para a cama.

E fez questão de nos meter a todos na escola, que era a melhor ferramenta que ele nos podia deixar; mas só eu é que aprendi alguma coisa, porque os outros meus irmãos não tinham queda para as letras. Ao meu irmão até lhe disse que, nem que lá andasse até ir para a tropa, havia de fazer, nem que fosse, a 3.ª classe; mas por fim teve que desistir. Foi o maior desgosto que lhe podiam dar.

E também era muito sério. Uma vez foi festeiro e naquele ano tinha havido aí uma invernia tão grande que o povo não tinha muito para dar para a festa. Quando chegaram ao fim das contas, os ganhos não davam para a despesa. Ele foi ter com o Senhor Vigário e pediu-lhe que perdoasse parte daquilo que pedia por ter feito a festa, mas ele disse logo que se arranjasse como quisesse, mas que não perdoava nem um tostão. O meu pai não teve mais nada, pegou numa corrente de ouro que tinha e tanto lhe custara a ganhar e vendeu-a para pagar a missa e a procissão.

Era muito trabalhador, mas naquele tempo havia pouco quem desse que fazer a um homem e ele teve que abalar outra vez para a Espanha. Ainda por lá andou uns poucos de anos, mas depois arranjou trabalho nas minas da Panasqueira e foi para lá. Ainda lá esteve sete anos, mas aquilo era um trabalho muito duro e como ele quando veio da guerra já trazia o mal dos pulmões, o pó da mina ainda lhe piorou a doença. Ainda viveu uns anos, mas sempre muito doente.

Em vida nunca lhe deram a pensão por ter andado na guerra. Só depois de morto é que a minha mãe um dia foi a Castelo Branco e, quando mostrou a caderneta dele, um senhor até lhe disse assim:

- Parece impossível como é que o seu homem com uma caderneta destas, tão limpinha, não começou logo a receber a pensão!» (testemunho da filha Maria dos Anjos).

José Nunes Caetano faleceu no dia 29 de Novembro de 1969; tinha 74 anos.

(Pesquisa feita com a colaboração da filha Maria dos Anjos)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra